Despir-se para viver
A porta abre-se. O cheiro a roupa lavada envolve o ambiente. O espaço é simples, acolhedor e sem grandes luxos. Sara guia-nos até à cozinha e convida-nos a sentar. Enquanto nos oferece água, fala com naturalidade, mostrando o seu à vontade.
Não há ostentação. Apenas a casa de uma mulher que nos recebe no fim de mais um dia, sem filtros nem fingimentos.
“Diário de uma striper”, de Bruno Neves, levou Sara a olhar para o mundo do erotismo com outros olhos. O livro pareceu-lhe “bastante interessante” e, mais que isso, mostrou-lhe que havia uma história possível para si naquela realidade.
Através de um pequeno anúncio no jornal, tudo começou. “Procuram-se stripers”, dizia, discreto, entre arrendamentos e publicidades. A curiosidade falou mais alto. Tinha 18 anos acabados de fazer. Respondeu, sem grandes expectativas, e acabou por entrar numa casa em Ovar. Os primeiros tempos não foram fáceis, Sara “não tinha experiência em dança”. “Aos poucos e poucos” foi aprendendo a dança do varão, ambientando-se ao local e à rotina.
Naquela casa, como em tantas outras, o trabalho centrava-se em “beber copos”. Era esse o verdadeiro negócio. Sentava-se com os clientes, bebia, ria e mantia a conversa viva. “Ganhava-se muito dinheiro a beber copos”, conta sem rodeios.
“Ao contrário do que as pessoas pensam, nessas casas, só se prostitui quem quer. Há prostituição, mas não é obrigatória. Não era obrigada a nada”
Sara
Uma vez ou outra, era chamada para os VIPs. Salas mais reservadas, onde a música era mais baixa e o ambiente mais íntimo. Mesmo ali o limite era claro. “Dançava, trocava palavras, nunca passou disso”. Havia colegas que se envolviam com clientes, mas Sara nunca quis.
Os clientes eram fornecidos pela própria casa, mas, com o tempo, alguns tornaram-se habituais. “Tinha clientes certinhos meus. Iam lá só para me ver a mim”, partilha sem vaidade. Nunca teve problemas com eles. “Pelo contrário. Sempre fui bem tratada. Eram muito simpáticos, muito agradáveis”. Ainda hoje se lembra de um em particular. “Vi um cliente a desgraçar a vida. Gastava 10 mil euros por noite, todas as semanas. Tinha uma empresa que acabou por falir”.
No convívio entre colegas, havia uma tensão surda feita de olhares e comparações. “Havia concorrência sobre quem tem o corpo mais bonito, quem tem mais clientes”, admite. Mas não era nisso que se focava. “Eu sempre fui de ajudar as colegas e não de competir”.
Aos 26 anos, Sara começou a trabalhar num restaurante erótico. Um restaurante comum, mas com uma particularidade. Durante o jantar, os clientes presenciavam espetáculos de danças eróticas e os empregados de mesa serviam os clientes em lingerie.
Trabalhava ali quatro noites por semana: quartas, quintas, sextas e sábados. Entrava às 22h. “Tinha espaço para tomar banho, arranjava o cabelo, maquilhava-me. Usava disfarces de enfermeira, de militar, bombeira, tudo e mais alguma coisa”. Cada noite fazia duas danças e, por isso, recebia 50€. Mas o verdadeiro rendimento vinha dos extras. “Por cada table dance recebia 40€”. Dançava de forma mais próxima junto às mesas, mas sempre com os seus limites bem definidos. Um equilíbrio entre o desejo e a distância.
Há cerca de 6 anos, Sara deixou os palcos e dedicou-se às massagens eróticas. “Não há sexo. Eu apenas faço uma massagem onde estou toda nua e, no final, faço uma descompressão manual”, explica. Trata-se de uma massagem relaxante, mas com uma vertente sexual. “Recebo-o em lingerie à porta e depois vou me despindo durante a sessão. Toco nos órgãos sexuais para excitar o homem. Podem tocar-me, mas com limites”.
O momento termina sempre com uma descompressão manual, embora admita que tem alguns extras para quem os pede e paga. Ainda assim, nem sempre é fácil manter o equilíbrio. “É mesmo chato quando eles querem a massagem toda focada no pénis. Estou ali uma hora, meia hora, e o tempo não passa”.
Grande parte dos clientes, segundo conta, são homens casados, geralmente na casa dos 40. “A maioria procura o que não tem em casa. Corpos bonitos, mulheres quentes”. Por vezes, também recebe casais. “Já me envolvi com alguns”, revela sem pudor.
Entre os pedidos, alguns são difíceis de esquecer. O pior de todos foi quando um cliente lhe pediu para defecar em cima da cara. “Vinha com essa ideia da China, que lá era muito normal e que já o tinha feito. Disse-lhe que não, nem pensar”. Outros momentos são menos grotescos e mais caricatos. Ri-se, ao recordar um cliente que insistiu em vestir as suas cuecas. “Achava que ficava sensual. Eu disse-lhe ‘não, por favor, não vista’, mas ele insistiu tanto que acabou por fazê-lo. Eu nem sabia se havia de rir ou de chorar. Ficava tão ridículo com a minha cueca fio dental”.
Nem sempre, no entanto, tudo corre bem. “Já houve um cliente que me tentou violar”, confessa. A partir daí, começou a tomar precauções. “Tenho uma câmara oculta para o meu marido conseguir ver se algum cliente tenta abusar de mim. É um relógio que tem uma câmara escondida”. Quando algum cliente ultrapassa os limites, é direta:
“Só digo: vista-se e saia já, antes que eu chame o meu marido”
Além das massagens, Sara também anima despedidas de solteiro. Um serviço que, segundo ela, compensa bem. Cobra 300 euros por evento, e a sua performance dura cerca de 15 minutos. “São muito bem pagas”, diz. “Uma vez fui vestida de empregada de mesa porque era a profissão do noivo. Foi engraçado.”
Anuncia o seu trabalho em plataformas conhecidas como o “Rua 69”, “Classificados X” e até no OLX. Foi uma transição natural dentro do mundo do erotismo, mas nem sempre fácil. Lembra a época da pandemia, onde tudo parou. “Não havia absolutamente nada para trabalhar”, recorda. “Tinha muito medo do covid, era chamada mas nunca fui”.
Fonte: anúncio de Sara no site Rua69.com
A legalidade do trabalho é um assunto delicado e, para Sara, praticamente inexistente. “Nunca passei recibos verdes. Quando estive no restaurante erótico pediram-me, mas eu disse que então não queria trabalhar mais lá. Até que ele desistiu e me deixou trabalhar sem faturar.” Hoje, continua sem qualquer vínculo formal. “Legalmente não tenho nada. Não tenho nada registado. Estou, na Segurança Social, como desempregada”
A realidade é simples: oficializar o serviço afugentaria os próprios clientes. “Se eu fosse passar um recibo verde a um cliente, ele fugia pela porta fora. A maioria é casado, fazem tudo escondido”. A clandestinidade torna-se, assim, parte inevitável do negócio.
Durante algum tempo, Sara conseguiu guardar a sua profissão como segredo. No início, apenas a mãe sabia. Quando começou a trabalhar no restaurante erótico, a irmã descobriu. “Nunca me disse como, nem quem lhe disse. Correu pela família”, recorda. “Eu sei que toda a gente sabe, mas ninguém fala sobre isso”.
A relação com a família sempre foi difícil. “O meu pai é narcisista, sempre me tratou mal. A minha mãe é uma pessoa com muitos problemas psicológicos e não demonstra grandes emoções”. O episódio mais marcante aconteceu num parque de estacionamento, à saída de um hospital. Nessa altura, Sara vivia uma depressão profunda. O pai quis interná-la à força. Quando os médicos recusaram, explodiu. “Puxou-me do carro, agarrou-me pelo pescoço. Tentou esganar-me. A minha mãe ainda tentou intervir, mas levou um murro e ficou com os óculos partidos”. Foi por pouco que não acabou em tragédia. Só o medo de quem passava travou o pior. “Disseram que iam chamar a polícia e ele largou-me”. A partir desse dia, Sara, nunca mais voltou a casa. Ela e a mãe foram viver para a casa da tia, a única familiar que as acolheu no meio daquela confusão.
O ambiente familiar é apenas mais uma camada de julgamento num lugar onde as aparências ditam regras. “Sou de uma aldeia e as pessoas pensam que sair à noite já é para prostitutas, quanto mais trabalhar no ramo”. Sara aprendeu a viver com o preconceito, mas não esquece o peso de vir de uma família “muito complicada”.
No meio de um ambiente familiar carregado de tensão e mágoas, há um ponto de equilíbrio na vida de Sara: o marido. Enquanto conversamos, ele aparece. De imediato, o rosto de Sara ilumina-se. “Estás aí com uma pose. Pareces uma atriz da televisão”, comenta Eduardo num tom divertido.
Estão juntos há dez anos, e, apesar dos altos e baixos, é nesta relação que Sara encontra estabilidade. Mas nem tudo foi simples, principalmente quando decidiu seguir a carreira pelas massagens eróticas. “Foi muito complicado. Discutimos muitas vezes, ele não queria que eu fosse”. Durante algum tempo, o tema era uma ferida aberta entre os dois. “Ao início foram discussões atrás de discussões. Ele não queria por nada que eu trabalhasse neste ramo”.
A confiança foi algo construído. Hoje, Eduardo aceita o trabalho de Sara e apoia-a. “Agora já aceita bem. Confia em mim. Sabe que eu sou incapaz de o trair. Ele ajuda-me muito”. Há um entendimento silencioso entre os dois, um equilíbrio que resiste às opiniões externas, inclusive da família. “Pouco me importa o que a minha família pensa ou deixa de pensar. A única pessoa que me preocupa no que possa pensar é o meu marido. Levo a opinião dele em consideração”.
Entrou neste mundo movida por inseguranças profundas. “Se eu voltava atrás e não fazia isto? Acho que faria. Eu fi-lo, principalmente, porque não tinha autoestima nenhuma. Adoro dançar. Queria sentir-me desejada”. Mas o brilho inicial foi-se esbatendo com o tempo. A realidade revelou-se dura. “Depois de um tempo começamos a perceber que somos apenas carne para os homens. Isso faz-me sentir mal.”
Com a experiência, vieram os conselhos, duros mas sinceros: “Se tivesse de aconselhar uma amiga a entrar ou não neste mundo diria-lhe ‘Não te metas nisto, não vale a pena’. Depois de estarmos aqui metidos, é muito difícil sair”. Há uma lucidez amarga nas palavras. Como quem já sabe o peso das escolhas, mas aprendeu a carregá-las com firmeza.
Apesar de tudo, não pensa em parar tão cedo. “Espero continuar por mais 10 anos”, afirma, consciente de que a longevidade nesta área depende do corpo. “Dou muita importância ao corpo, porque sempre vivi dele”. Aos 40 anos, mantém uma rotina exigente. “Faço exercício físico de manhã e faço dieta. Não como praticamente nada. A minha dieta é passar fome”. Diversos esforços para manter a imagem que o trabalho requer e prolongar, o máximo possível, o tempo que lhe resta neste meio.
