Estafetas brasileiros em Braga

Sonhos ao domicílio

Uma viagem de mota com os estafetas que, de rosto escondido pelo capacete e mochila às costas, lutam pelo "sonho europeu"

Braga é uma cidade movimentada e o típico desassossego citadino é de saltar à vista. Perto do principal centro comercial da cidade minhota, Braga Parque, todos parecem andar numa corrida contra o tempo.

À volta da Universidade do Minho, pelo contrário, o ambiente parece mais calmo porque poucos frequentam o Campus de Gualtar. Ouve-se muitos carros e algumas pessoas passam a pé, encaminhando-se para casa, talvez, por se se aproximar o final do dia.

Para uma das ruas sem saída que beira a Universidade passa uma mota.

À noite, salta à vista a cor amarela da mochila grande e quadrada carregada às costas de quem conduz.

Alguém desce da mota, a medo, com uma saca de papel selada em mãos.

Rafaela Bomtempo
30 anos
Nascida e criada em Mato-Grosso, no Brasil

Mora em Portugal há um ano
É estafeta há quatro meses

Cruzamo-nos pela primeira vez numa terça-feira ao fim da tarde, mas a brasileira diz só poder conversar noutro dia. Com a hora de jantar próxima, as entregas tendem sempre a aumentar.

Encontramo-nos com Rafaela pela segunda vez no centro comercial Braga Parque.

A estafeta só para às três da tarde para almoçar.

O que come, é à pressa.
Depois, o dever chama novamente.

Rafaela veio à procura de segurança e, na busca por estabilidade, agarrou-se ao primeiro emprego que encontrou: uma fábrica.

Montou componentes eletrónicos por oito meses, mas saiu.

“Eu não me adaptei, então para mim é mais tranquilo ser estafeta. É menos contacto.”

Foi o conforto que a fez trocar de trabalho, aliás, a própria refere que “em média” recebe, como estafeta, quase o mesmo “que recebia quando trabalhava na fábrica.”

De capacete nas mãos, Rafaela Bomtempo conta que a nova dinâmica exigida pela profissão de entregadora, lhe permite escolher os horários.

Há horas com mais pedidos que outras, mas, quantos e quando os faz, é totalmente da sua escolha.

"Eu posso simplesmente fechar a aplicação e não trabalhar. Sou eu que escolho."

Desde que chegou, mora na mesma casa que o irmão e, na dinâmica entre os dois, conta que a flexibilidade horária da sua parte é uma clara mais valia. “Quando o meu irmão está de folga, aproveito para sair e almoçar com ele.” O sorriso que lhe ilumina o rosto parece dar força para prosseguir com o que diz: “Desde que me tornei motogirl tenho mais facilidade em fazer com que os nossos horários se encaixem.”

De olhos postos na rua movimentada onde já se vão juntando também outros entregadores, Rafaela desabafa que nunca seria estafeta na terra natal pela "falta de segurança" .

" Aqui eu deixo a moto e entro nos prédios para fazer as entregas. No Brasil, eu nem andaria assim."

No passeio da entrada mais próxima à praça de alimentação do shopping, os entregadores das plataformas digitais são maioritariamente brasileiros, mas além disso, há algo que salta mais à vista:

Rafaela é a única mulher.

2 EM CADA 10 ESTAFETAS
SÃO MULHERES

Dados do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte (STIHTRSN)

Apesar de fazer parte da minoria, Rafaela diz não ter medo.

"Eu sinto-me confortável assim, sinto-me segura [enquanto estafeta]."

Matheus Castano
26 anos
Belo-Horizonte, Brasil

É estafeta há dois meses

Chega à entrada do Braga Parque enquanto conversamos com Rafaela.

De vermelho e sentado na mota também encarnada, Matheus não desvia o olhar do ecrã do telemóvel.

Na aplicação da Glovo,
anda de página em página.

Aumenta e diminui o preço por km
Mas... nada chega.

O tempo frio de dezembro contrasta com a personalidade calorosa do estafeta.

Apesar dos poucos pedidos, mostra-se otimista e, entusiasmado, compara Braga à terra natal, "BH". Belo-Horizonte fica no sudeste, mais longe da linha do equador, por isso, é uma cidade fria. "Mas lá não baixa de 15ºC . Aqui dizem que há dias em que faz -1ºC."

O frio intenso é uma das razões para Matheus optar por fazer entregas no horário diurno, mas a escolha não se deve apenas ao clima: com o aumento do número de estafetas nos horários noturnos, as entregas durante o dia rendem mais.

"Quantas mais pessoas pedirem e menos estafetas estiverem online, maior o valor da encomenda."

O telemóvel, seguro no suporte instalado no volante, toca de repente.

Matheus pede desculpa, envergonhado, antes de responder à notificação que chega. Do outro lado, um pedido de uma cliente, cancelado por seis vezes antes de chegar a si.

"Eu disse-lhe para ficar tranquila.
Vou entregar o pedido."

E então começam as contas:
A viagem de dois quilometros dá a Matheus o lucro total de um euro e 70 cêntimos.

"Vale a pena", conclui ao bloquear o telemóvel.

O pedido que acaba de chegar ao telemóvel do entregador

Este entregador diz fazer entre 40 a 60 euros por dia mas "nem todos os dias são iguais". "Há dias em que faço cinco ou seis pedidos e já bati a minha meta."

Enquanto segura o telemóvel nas mãos, ressalta que nem todos os dias correm como esperado. Independentemente da instabilidade da atividade, Matheus admite querer continuar a ser estafeta.

"Tem pessoas que querem sair da atividade. Eu não."

Gosta da liberdade da profissão, mas, ainda assim, reconhece que são necessárias mudanças:

"O valor que recebemos por quilómetro devia ser fixo."

Para o brasileiro esta medida contribuiria para minimizar o valor que os trabalhadores das plataformas digitais têm de pagar para utilizar a app e as deduções que têm de fazer. Além disso, podia evitar uma "concorrência desonesta."

Contudo, e apesar de andar cerca de nove horas em cima da mota a fazer entregas, também trabalha num restaurante durante o fim de semana.

Matheus acumula duas profissões:

Além das entregas, trabalha num restaurante de sushi, também em Braga. É "prestador de serviços" durante os fins de semana e, quando os colegas precisam de se ausentar, é quem cobre as falhas.

De qualquer forma, vê na atividade de estafeta a sua fonte de rendimento principal. Para o recém-chegado, o dinheiro que faz com as entregas de porta em porta é preferível por ser superior a um ordenado base.

"A trabalhar numa empresa, com descontos, o ordenado chega em média a 700 euros.
Como estafeta eu ganho quase 1000 euros."

Atividades cumulativas além do trabalho como estafeta (em %)

Dados do estudo Impacto Social e laboral das plataformas digitais em Portugal
ISCTE, 2022

Dados do ISCTE sobre o impacto social e laboral das plataformas digitais em Portugal demonstram que, em 2022, apenas uma minoria (10%) dos entregadores de bens ao domicílio se dedicava exclusivamente à atividade.

O mesmo estudo indica que, dos estafetas estrangeiros em Portugal, 55% recorreram a plataformas como Uber Eats, Glovo e Bolt Food como alternativa a um primeiro emprego.

Dos restantes, 45% utilizaram as plataformas como porta de entrada no mercado laboral português.

Entre as motivações para colaborar com as plataformas, destaca-se:

Flexibilidade horária
Capacidade em gerar rendimentos adicionais

75% dos estafetas tinham situações profissionais anteriores passíveis de gerar rendimentos.

Motivos que levam os estafetas a trabalhar para plataformas digitais (em %)

Dados do estudo Impacto Social e laboral das plataformas digitais em Portugal
ISCTE, (2022)

Rafaela e Matheus inserem-se nos 40% que prececionam a flexibilidade horária como mais valia da atividade.

Mas, não são os únicos.

Luiz Ribeiro
52 anos
São Paulo, Brasil

É o terceiro estafeta brasileiro com que nos cruzamos

Luiz é forte adepto da independência horária proporcionada pelo ofício de entregar encomendas ao domicílio.

Não vê vantagens em ter um contrato de trabalho; muito pelo contrário.

“A partir do momento que há um contrato com uma empresa, é obrigatório cumprir regras.

Não adianta ter de correr como um doido no trânsito para ganhar o ordenado mínimo.”

Apesar do gosto pelo que faz, admite por vezes ter medo. Já teve um acidente e a recuperação não foi de todo fácil.

Evoca o episódio a custo: ficou com a perna e o rosto feridos, mas, mesmo assim, entregou todos os pedidos do dia sem falta.

“Continuei a trabalhar, porque senão, não ganhava.”

Para o estafeta, esse é o único inconveniente de trabalhar para plataformas digitais.

"Do ponto de vista legal, eles [os estafetas] têm direitos quando ocorrem acidentes, mas, claro, se não trabalharem, não recebem"
"Os estafetas são brutalmente explorados"
Francisco Figueiredo, chefe do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte

O Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte (STIHTRSN) realizou um estudo comparativo dos ganhos mensais de um estafeta "protegido por um contrato coletivo de trabalho" da Ibersol (prestadora de serviços à PizzaHut, KFC e outros) e um estafeta freelancer da Uber Eats.

Comparação do salário mensal
(em €)

Do salário estimado de 1,459 euros do estafeta Uber Eats é descontado o preço do combustível, aluguer de mota, mochila, entre outros.

Este trabalhador a recibos-verdes, ao contrário do entregador da Ibersol, não recebe subsídios e os direitos "são escassos".

“Há uma sensação de que recebem muito, mas tem de gastar muito.”
Francisco Figueiredo, chefe do Sindicato dos dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte

 Sentado na mota alugada para fazer as entregas, Luiz espera por algum alerta das aplicações para que trabalha.

A rua Nova de Santa Cruz é uma das mais apetecíveis aos estafetas de Braga. Hoje passam por lá menos motas de entregas, mas é algo pouco comum de se ver.
Costuma ser um vai e vem infindável perto dos vários estabelecimentos da rua paralela à Universidade do Minho.

Dos 52 anos de vida, Luiz tem três de experiência como estafeta. Na sua pátria, era professor de biologia e especialista em administração de empresas.

De sorriso a rasgar-lhe o rosto, conta como surgiu a ideia de, no meio de toda a incerteza pandémica, se lançar às ruas de São Paulo como entregador. Foi a forma perfeita de conciliar uma fonte de rendimento com um gosto antigo: andar de “moto”. 

Finalmente...

Toca o  telemóvel.

O estafeta inclina-se ligeiramente para ler o pedido que acaba de chegar.

✓ Pedido aceite

A pausa é breve e logo retoma:

“Se estivesse a trabalhar com contrato, teria de parar [a conversa] para ir buscar o pedido agora mesmo.”

Luiz ironiza, entre gargalhadas.

"Assim não."

A saudade dos que ficam

Com a viagem para Portugal, muito é deixado para trás.

Os filhos aguardam.
A promessa feita à despedida é de um dia poderem vir a seguir a trajetória dos pais.

Mato-Grosso — Braga
7,804 km

Belo-Horizonte — Braga
7,746 km

Mesmo com a distância, Rafaela e Matheus lutam pela segurança dos que mais amam.

Rafaela deixou para trás dois filhos. Guarda-os na mente e no peito: “Eu quis vir porque os quero trazer para um lugar mais seguro”.

Também Matheus tem uma filha de sete anos no Brasil. Com expectativa, conta que o virá visitar em breve.

“Acho que ela vai gostar muito de Portugal, mando fotos de cá todos os dias.”

O sonho de ter a filha perto de si terá de ser adiado. Pelo menos até a filha completar 16 anos.

Por agora, Matheus vê-a através do ecrã do telemóvel - o mesmo que lhe permite fazer entregas. “Falamos todos os dias”, admite, deixando adivinhar um sorriso largo no rosto.

Matheus segue hoje os passos dos pais, também eles emigrantes. Considera-se, porém, mais "sortudo": “Agora é muito mais fácil falar, temos os telemóveis”.

“Hoje? Saudade? Mata-se por chamada.”

O telemóvel de Matheus "chama" para o Brasil todos os dias à meia noite.

00:00
+55 31 ****-****
A chamar...

Do outro lado do oceano Atlântico, a filha atende a "ligação" às nove;

É à hora a que o pai chega a casa depois das entregas.

21:00
+351 9** *** ***
A estabelecer a ligação...

Item 1 of 9

O Brasil é um país em desenvolvimento, ou, como os brasileiros o definem: "emergente".

Hoje, "sonho americano" é cada vez mais substituído pelo "sonho europeu".

É o caso de Matheus Castano, que deixou o emprego no Brasil em busca de segurança e qualidade de vida em Portugal.

"Vir para cá é melhor do que ir para os Estados Unidos.

Se quer dinheiro: Estados Unidos.
Se quer qualidade de vida: Europa."

Rafaela, Matheus e Luiz fazem parte de uma comunidade muito maior no país lusitano.

De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), os brasileiros são a maior comunidade estrangeira a residir em Portugal, perfazendo um total de 30%.

Contudo e contrariando o aumento significativo, o número de brasileiros trabalhadores das plataformas digitais tem vindo a diminuir.

Este fator é explicado pelo Sindicato da Hotelaria do Norte, que caracteriza a atividade como uma "ponte para a legalização".

"Procuram a sua sobrevivência e depois vão para outros setores."
Francisco Figueiredo, dirigente sindical

Apesar destes dados corresponderem a uma clara realidade, há ainda quem faça o contrário.

Rafaela trabalhou primeiro numa fábrica, mas abandonou esse trabalho para se dedicar a ser estafeta.

Gostava de um dia poder retomar os estudos "contábeis" na universidade.

Mas, por agora, as prioridades são outras.

Já Luiz tinha estado em território português durante a juventude e por isso tem, no seu dicionário pessoal, Portugal como sinónimo do sossego.

"Sonhos? Com 50 anos? Acho que já concretizei todos e agora tenho tranquilidade."

Créditos

Texto, fotografia, vídeos, infografismos e webdesign
Letícia Oliveira e Luciana Matos

Universidade do Minho, 2024