"Sejam Chorões": Os homens também choram
As estatísticas fornecidas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) lançam uma luz sobre a realidade complexa, e muitas vezes encoberta, dos suicídios em Portugal. Anualmente, estes dados revelam não apenas números, mas são também espelho da sociedade em que vivemos.

Segundo a INE, entre 2014 e 2021, Portugal tem apresentado taxas significativas de suicídio, uma realidade delicada, que ultrapassa números e estatísticas frias.
Patrícia Rodrigues, Membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) explica que, “ os comportamentos suicidas são cada vez mais recorrentes na sociedade contemporânea, independentemente da idade, género ou classe social. É um fenômeno complexo, influenciado por múltiplos fatores (biológicos, sociais, psicológicos…) e representa uma das principais causas de morte em todo o mundo”.
A psicóloga refere ainda que, "é importante especificar que, embora as tentativas de suicídio ocorram mais frequentemente por parte das mulheres, os homens tendem a escolher formas mais letais e agressivas (enforcamento, uso de armas de fogo…), o que diminui substancialmente a possibilidade de serem socorridos a tempo e as probabilidades de sobrevivência. A escolha de formas mais letais poderá dever-se a uma maior intencionalidade no comportamento. Portanto, a taxa de suicídio é mais frequente no sexo masculino, o que poderá dever-se a vários fatores”.
Luís Miguel Marinho esteve próximo de integrar o grupo de 1216 portugueses que tiraram a própria vida em 2014, um ano marcado pela mais elevada taxa de suicídio, de acordo com os dados do INE desde 2002.
Descreve que a sua “fase negra” é marcada pela perda da avó, pelas mudanças na dinâmica familiar e pela crise econômica de 2011. Aos 12 anos, as responsabilidades e reviravoltas do mundo levam-no a perceber que “a vida não é assim tão simples”. É no meio do caos na tenra idade, onde se vê obrigado a mudar de residência e a assumir responsabilidades, que entende o significado das pressões sociais e começa a questionar o valor da vida.
Entrevista a Luís Miguel Marinho
Entrevista a Luís Miguel Marinho
Patrícia Rodrigues destaca que “existe uma predominância da ideia do homem como o principal responsável pela segurança e sustento da família. Ora, qualquer crise económica, situação de desemprego ou outra dificuldade que coloque em causa esta responsabilidade, pode abalar drasticamente o equilíbrio psicológico do indivíduo do sexo masculino que se sente incapaz de cumprir o seu dever”.
O jovem olha para o teto, como quem faz esforço para recordar o passado. Revela que as cicatrizes invisíveis da responsabilidade que lhe foi imposta, eram uma carga demasiado pesada para ser suportada por ombros tão jovens.
“Antes da minha avó falecer e mudarmos de casa, o meu pai estava no estrangeiro. Isso fez com que tivesse de assumir o papel de homem da casa. Era o responsável por ajudar a minha mãe e os meus irmãos.”
O cenário não melhora quando o seu pai regressa. O pai de Luís arranja emprego na construção civil, mas a crise faz com que os salários entrem em atraso. Assim, as dificuldades financeiras acarretaram um peso nos braços da família Marinho.
Aos seus olhos, “a visão normativa dos sentimentos dos homens fez com que não exteriorizasse os pensamentos e procurasse ajuda”. Rapidamente a ideia do fim parecia estranhamente agradável e pacífica, em contraste com o desespero diário.
No clímax da pressão familiar, viu-se acorrentado pela incapacidade de atender a doença da mãe, que desenvolveu depressão pós-parto, e às necessidades dos irmãos. A 4 de agosto de 2014 estava pronto para acabar com a sua vida. “Queria, de alguma forma, fugir dos problemas. Sentia que não era digno de continuar a viver.” Gesticula e desvia o olhar ao lembrar da hesitação até ao último momento. "Ainda me lembro de ter algum sentimento de: “Será que eu consigo fazer isto?””. A intervenção de Raul, uns dos seus três irmãos, impediu a tragédia.
Luís Miguel não procurou ajuda, mas sim o desespero de uma mãe que quase perde o seu filho após uma tentativa de suicídio. "Não fui eu que procurei ajuda. Foi a minha mãe que depois da minha tentativa contactou a enfermeira responsável pela parte mais psicológica do meu centro de saúde local. Fui encaminhado para o hospital, e comecei o acompanhamento com um psicólogo e mais tarde, um psiquiatra." O caminho para a luz começou com um telefonema, uma súplica por socorro que ecoa até hoje.
A ajuda profissional permitiu-lhe criar uma armadura poderosa e crucial para que retomasse as rédeas da sua vida. Luís Miguel contém as lágrimas, morde a bochecha esquerda e reflete “não diria que os pensamentos acabaram, mas de alguma forma devo ter aprendido a lidar com eles com as ferramentas que fui adquirindo". Esclarece que não tem vontade de morrer. Os pensamentos que lhe aparecem de forma automática não tem qualquer poder e são controlados. Está no comando da situação.
Carlos Silva passou da linha do pensamento para a ação. Sobrevive por um acaso do destino.
“Aquilo que escolhi para me matar salvou-me a vida.”






Carlos Silva
Carlos Silva

Carlos Silva
Carlos Silva

Carlos Silva
Carlos Silva

Carlos Silva
Carlos Silva

Carlos Silva
Carlos Silva
No conforto do seu quarto, envolvido por uma atmosfera de luzes LED vermelhas e equipamentos gamimg, recebe-nos para nos falar dos tempos em que não via luz. Quarto esse onde passou “demasiadas noites a chorar agarrado a uma almofada, sem dormir”. A tristeza não foi algo que o assolou repentinamente, “antes disso não me lembro de estar realmente bem. Não me lembro de ser genuinamente feliz. Nunca olhei para isso como um problema”.
Foi-se acomodando neste sentimento, que para si era a normalidade. Vivia os dias isolado, mesmo partilhando a casa com os pais e a irmã. Em maio de 2019, ganhou certezas de que a vida valia cada vez menos a pena. Recorda, semicerrando os olhos e coçando a barba no fim da frase, “ver que de todas as escolhas que possas fazer nenhuma é a solução... Chegar à conclusão que tirar a própria vida é a solução é bater no mais fundo que… Não há mais poço para cavar além disso”.
Durante 4 meses viveu com a ideia da morte. A pesquisa na internet salientava que o mais rápido era um tiro na cabeça, Carlos descartou a opção por não ter acesso a uma arma, ri-se ao relembrar. “Eu só queria acabar com o meu sofrimento da maneira menos dolorosa possível. Pesquisei. Dentro das possibilidades, a que menos me doeria seria o enforcamento. Depois de desmaiar não sentiria mais nada…”
O sol brilha do lado de fora, a temperatura está amena. É sábado, dia 24 de agosto de 2019. Carlos acorda e a única coisa que consegue é chorar compulsivamente. A sua irmã bate na porta do quarto. Entra, senta-se na cama e abraça-o enquanto pergunta “O que se passa?”.
“Eu só abano a cabeça. Ela puxa-me para a cozinha e os cães, como o usual, fazem uma festa, como se as minhas poucas horas de sono tivessem sido anos. Lamberam-me a cara toda e em pouco tempo limparam todas as lágrimas. Mas de nada adiantou, o que sentia dentro de mim só me dava forças para chorar… Chorar… E chorar… A minha irmã saiu com o meu cunhado e a oportunidade pela qual aguardei durante dias, finalmente chegou até mim”, assim descreve a manhã que julgava ser a última, numa carta datada do 31 de agosto de 2019.
Desceu as escadas para pegar nas correntes. “Foram os 18 degraus mais longos da minha vida. O medo ficava maior a cada degrau. E no fim, simplesmente desapareceu”. Com as correntes na mão deslocou-se para o coberto. “Pendurei a corrente no corrimão e a seguir ao meu pescoço.” Ligou para a mãe e disse “Amo-te, desculpa…” Ligou para a recém ex-namorada e repetiu as mesmas palavras.
Tentou lançar-se duas vezes, sem sucesso. “Tentei lembrar-me de algo que me fizesse ficar ali sentado a olhar para a morte. Não consegui. Esforcei-me, mas naquela dia, nada me ocorria na memória. Nada me mantinha sentado ali. Então, ofereci o meu pescoço à morte, e deixei-me cair.”
Acordou deitado na sua cama. Sorri e balança a cabeça em sinal de negação ao dizer que o seu primeiro pensamento foi “não tem como eu estar aqui”. Estava surpreendido por ter falhado, confuso de como tinha acontecido. Mais tarde percebeu que, ironicamente, a corrente que comprou tinha um defeito de fabrico que fez com que um dos elos se abrisse e o seu corpo caísse desacordado no chão. Contudo, o sentimento permanecia. “Eu não queria ajuda, eu queria morrer.”
Carlos foi internado na ala psiquiátrica, mesmo contra a sua vontade. “Não queria estar lá. Usei muitas vezes o argumento de que era maior de idade.” No dia que entrou no hospital ouviu “das coisas mais queridas que alguém já me disse. O médico disse-me que podia ter de ir a tribunal lutar pela minha vida, mas que naquele dia, eu ficava ali.” Contrariado, ficou.
Inicialmente, resistiu a colaborar. Com o tempo percebeu que a única forma de conseguir sair dali era mostrar-se minimamente participativo, mesmo que não acreditasse que resolveria alguma coisa. Foi na ala psiquiátrica, onde o contacto social era extremamente restrito e em trabalho com a equipa médica “constituída por profissionais incríveis” que reconheceu e assumiu o problema.
Entrevista a Carlos Silva
Entrevista a Carlos Silva
Quando voltou para casa, refere com expressão de abominação total, “o que mais doeu foi o olhar de pena. No meu trabalho, o que era suposto ter ficado entre mim e a chefia, era de conhecimento geral. Em casa os meus pais tinham cuidado na maneira como falavam e agiam. Ninguém na situação quer isso. Preferia ser odiado do que tivessem pena de mim.”
Quatro anos depois, confessa que se sente grato por a corrente ter “rebentado”, mas que não se arrepende de o ter tentado. Foi uma escolha que fez parte da sua jornada e permitiu quebrar o ciclo infernal da tristeza que, talvez, de outra forma, nunca se teria rompido.
Acrescenta, muito apressado, que não voltaria a fazê-lo. Tem na mente, bem marcado, que todas as vidas valem a pena, e que a tristeza estará sempre presente em alguns momentos. “A maioria do tempo vivemos apáticos. Depois se acontece algo bom ficamos felizes. Se acontece algo mau ficámos tristes. Ninguém é feliz o tempo todo. Estar triste e chorar é normal.”
Carlos cresce numa sociedade onde homens “não dão parte fraca”. Cultivou nele o sentimento de que falar "com o coração" era algo errado, proibido ao sexo masculino. “Sempre me foi instruído que o homem não chora, o homem tem de ajudar e não ser ajudado, os sentimentos do homem são apenas dele...” Atualmente, desconstruiu essa visão e acredita que a maneira como foi criado pode levar “o homem a um estado de limite muito maior”. Frisa ser importante educar as gerações futuras, “desde o início, que independentemente do gênero, chorar não é sinal de fraqueza, mas sim de força".
“Sejam chorões… Peçam ajuda. A melhor parte de aprender é… Saber que temos pessoas que se importam connosco”, a voz treme de emoção e os olhos enchem-se de água.
Se enfrenta dificuldades emocionais, ou conhece alguém nessa situação, saiba que há ajuda disponível.
- SOS Voz Amiga:📞 Telefone: 21 354 45 45 / 91 280 26 69 / 96 352 46 60🌐 www.sosvozamiga.org
- Telefone da Amizade:📞 Telefone: 22 832 35 35 / 808 22 33 53🌐 www.telefone-amizade.pt
- Chat de Apoio à Vida:💬 www.apoioavida.pt