"Tenho vergonha de dizer: acho que estou louca"
Rita G. Neves e Antonela Andrade
9 Janeiro 2023
O sol que entra pela janela do escritório ilumina toda a sala e aquece o ambiente. O sofá de pele, encostado a um canto queima ao primeiro toque. É aqui que se sentam os pacientes. Nas paredes há uma imensidão de arte e as prateleiras enchem-se de livros educacionais. O pequeno espelho do lado direito, reflete os raios da luz natural. A chuva deu tréguas. Está um dia simpático. A atmosfera é convidativa e acolhedora. É aqui que Liliana passa os seus dias, à conversa com quem a procura.
Liliana Leite é psicopedagoga na Clínica Cuidar para Crescer. Construiu-a com o sonho de cumprir o seu propósito. “A minha vida são crianças e adolescentes... são assuntos que me trazem muita reatividade emocional”.
A especialista da pequena vila de Mozelos, tirou o curso de mediação familiar e frequenta agora, após mais de 20 anos no ativo, um mestrado em psicologia de forma a completar o seu projeto. Desde os 15 anos que percebeu que a sua área “sempre foi querer ajudar os outros”. Considera-se conservadora face às novas ideias do século mas, no olhar mostra amor pelo que faz e demonstra-o na forma de falar. É assertiva, não volta atrás uma única vez.
Aos 41 anos regressa ao frenético ambiente universitário. Encontra agora colegas com menos vinte anos, recém-licenciados, sem experiência e com ânsia do futuro. Li, como lhe gostam de chamar, alia a experiência que a profissão lhe deu com o novo desafio e realidade do que é estudar na universidade. Desta vez, com outra geração.
O avião que há duas horas partiu da Madeira, aterrou na grande e movimentada Lisboa. Ouve-se o barulho ensurdecedor do trânsito. O cheiro a maresia é agora substituído pelo ar poluído dos veículos que circulam na capital. Foi o choque que Francisca recebeu ao mudar de casa para prosseguir os estudos no Ensino Superior e construir um futuro. Para além do afastamento da vida na ilha, a jovem é mais uma na lista imensa de estudantes que passou por dificuldades de integração ao ingressar na universidade.
Francisca tem 22 anos e finalmente sente-se mais ambientada, contudo é notável o desconforto ao relembrar os dias difíceis que passou quando se viu pela primeira vez sozinha, desamparada... Adulta.
Em Portugal, os jovens atingem a maioridade civil aos 18 anos, porém, atualmente e mais que nunca, a transição para a vida adulta vai muito além da idade. A transferência para o Ensino Superior acaba por acompanhar a passagem para uma vida pré-adulta. Fruto da sociedade em que vivemos e reunindo as diferenças e ideias que os novos tempos trouxeram, o desenvolvimento psicossocial mostra cada vez mais que a “pré-adultícia” não reflete o que é expectável numa pessoa nesta fase da vida.
Ensino Superior pressupõem exigências superiores
A entrada no ensino superior é precisamente o momento de transição que gera mais stress e uma maior instabilidade ao nível da saúde mental nos estudantes.
A especialista reflete que “até atingir a maior idade parece que andamos a brincar no ensino. Chegamos aos 18 e levamos com um balde de realidade: entras num curso que muitas vezes não sabes se é aquilo que gostas, enfrentas metodologias de ensino completamente diferentes. Estás no ensino superior. Tens que ter boas notas, não podes chumbar, tens de ser responsável, tens que trabalhar, tens que ganhar dinheiro, o mercado é competitivo. Se não fores bom, ficas de fora!”
Disse-o de forma muito rápida. Para. Respira e prossegue: “Cria-se a tempestade perfeita para vir a ter problemas de ansiedade, depressão e burnout”.
O que é o Burnout num estudante?
Liliana explica:
“É exatamente igual ao Burnout de uma pessoa que está a trabalhar. É quando se sente que as exigências no trabalho ou na faculdade estão acima das competências que eu acho que tenho. Verifica-se um desfasamento muito grande e entra-se em stress. Pensamentos como “eu não vou conseguir, eu não vou cumprir o prazo, eu não sou bom, o outro é melhor que eu, eu acho que não estou a conseguir...” invadem a nossa mente até atingir um quadro mais grave”: O desgaste da nossa própria saúde mental.
Uma grande parte dos jovens atualmente, chega os 18 anos e entra no ensino superior sem nunca ter trabalhado na vida. Poderá se dizer que cada vez serão menos resilientes? Para Liliana são apenas resultado de um ambiente socioeconómico mais facilitado e muito mais protegido. “Pais que foram outrora maltratados, agora protegem. Pais que sabem o que é passar por dificuldades, agora têm dinheiro e até facilitam um carro... uma mesada boa.” Na ótica da profissional, “aprendem desde muito cedo a não dar valor às coisas, a não dar valor ao trabalho, a não se esforçarem.”
No mundo da psicologia, existe uma multiplicidade de fatores que servem de gatilho para algum tipo de psicopatologia. A mudança digital e o brutal desenvolvimento das tecnologias vieram agravar também toda a pressão que é colocada à sociedade em geral e aos jovens em particular. “Toda a pluralidade de fatores faz com que a sociedade esteja extremamente acelerada. Tudo tem de ser para ontem”. Não existe tempo para parar... e pensar. “Uma sociedade acelerada é uma sociedade ansiosa, é uma sociedade stressada que cria pais stressados e por sua vez crianças stressadas. Todos nós ansiamos o futuro próximo.”
A respiração começa a aumentar, o suor sente-se na pele, “não consigo dormir, não consigo comer... às vezes é difícil respirar”, é assim o retrato da ansiedade de Francisca Carvalho.
Não tinha ninguém em Lisboa, a falta de casa, da família e dos amigos era insuportável. “O meu primeiro ano foi horrível, não gostava da faculdade, não conseguia fazer amigos”. O cenário do ano em que Francisca se mudou e a adaptação à nova vida universitária não foi fácil... admite que pensou mesmo em desistir.
Perante este quadro, a psicopedagoga explica que quando existe stress, há uma ativação psicofisiológica que aumenta o batimento cardíaco, que, por sua vez, afeta a respiração e num ciclo vicioso “começa-se a ter pesadelos, insónias” e, com o aumento dos sintomas, atinge-se quadros psicopatológicos de ansiedade e depressões graves.
Francisca compreende este panorama. “Andava sempre muito em baixo, super cansada, não tinha força, simplesmente não conseguia fazer absolutamente nada”. Como muitos outros, a estudante escondia a angústia por trás de um sorriso e, apesar de saber que algo se passava “não queria ir para o médico dizer... Olhe, acho que estou louca!”
Alguma ansiedade é perfeitamente normal! O que distingue normal e sinal de alerta?
Segundo o estudo lançado pela Universidade de Évora, quase metade dos casos foram diagnosticados após o início do surto Covid-19. A pandemia veio trazer ao de cima aquilo que andava há muito mascarado, “Saúde mental não é uma coisa de agora”. Sempre houve pessoas com depressão e com ansiedade. Sempre houve crianças hiperativas ou com défice de atenção, “só que estas eram apelidadas de preguiçosas”. “As pessoas com depressão não podiam ter depressão... isso não era um problema”, recorda Li.
Se tens uma doença física, ficas em casa. E se tens uma doença de cabeça?
"Ninguém fica em casa por isso”.
A saúde mental em Portugal é um problema
Portugal é o segundo país com a mais elevada prevalência de doenças psiquiátricas da Europa e com maior taxa de medicação, sendo apenas ultrapassado pela Irlanda do Norte (23,1%), pelo que consta nos relatórios da World Phychiatric Association. A Organização Mundial de Saúde diz que 33% da população mundial sofre de depressão ou ansiedade.
Ao olhar para os dados, percebemos que os números de burnout em estudantes está sempre a aumentar. Não se trata de tomar um antidepressivo porque estou triste, nem um ansiolítico porque estou agitado. “Isto é muito alarmante, tenho que saber atuar antecipadamente. É necessário trabalhar com as famílias para maior sensibilização e formação. Integrar e alertar para a possibilidade destes assuntos”.
Para a futura psicóloga, a resposta passa por “colocar um número grande de psicólogos e psiquiatras de todas as áreas ligadas à saúde mental nas instituições certas: escola, centros de saúde e hospitais.
Os preços da alimentação e da vida em geral aumentam de forma rápida. Uma família consegue recorrer a um psicólogo ou psiquiatra e pagar 30€, 40€ ou 50€ por uma consulta? Aliás, quem pode esperar seis meses por uma consulta de psicologia?
Outra madeirense, Mafalda Azevedo, 18 anos... adulta. Recém adulta. De qualquer das maneiras, entrou este ano letivo para o curso de Direito na universidade minhota. Se entrou ou não com o pé direito, um entrou na universidade e outro na ansiedade. “Para mim foi muito difícil. Sinto imensa pressão com as notas, existe muita rivalidade, todos querem ser o melhor. Todos contra todos.” Sentiu que não havia abertura por parte dos docentes e da instituição para ajudar. “Deveria de haver uma maior preocupação”.
Liliana viaja em pensamentos. Atualmente há muita gente a sair formada em Psicologia. Parece começar a ficar mais irritadiça ao lembrar que o sistema público parece não ter dinheiro para garantir um número suficiente de psicólogos no ativo para dar solução. “Uma escola com um universo de dois mil alunos num agrupamento, tem um psicólogo e meio, ou seja, um a tempo inteiro”. A falta de acesso aos mesmos, leva a que os jovens estejam mais fechados em si próprios... mais frios, distantes e calculistas. O problema da saúde mental aparenta retroceder.
Não se trata apenas de ouvir o corpo e perceber que algo está mal. “Estou cansado. É só isso.” Não é só isso. Já não se trata de ter vergonha de ir ao médico. A questão do acesso é algo ainda por resolver!
Tabela de preços do Gabinete de Psicologia da Universidade do Minho:
Individual |
Grupo |
|
---|---|---|
Externos |
40,00€ |
25,00€ |
Funcionários Uminho e Familiares |
35,00€ |
20,00€ |
Estudante Uminho |
30,00€ |
20,00€ |
Dá para sentir no seu olhar. Liliana está realizada. Tem nela a imensa vontade de dar a mão, principalmente aos mais jovens. A sala continua luminosa. Ainda é início da tarde. É difícil não se deixar inspirar.
A rotina de Mafalda e Francisca continua. Aprenderam a lidar com os sintomas que as atormentam. Apesar de jovens, ambas refletem uma mente mais madura e atenta para estas questões. Já lá estiveram. E conseguiram sair. O que para muitos pode ser uma realidade dura de abordar em casa, para Mafalda nunca foi. Apesar de colocar pressão em cima dos seus próprios ombros, os pais nunca a pressionaram por agora frequentar o ensino superior. “Andas na universidade, e então? Não é o fim do mundo!”
Para Liliana a mensagem sai-lhe de forma simples: “Independentemente das notas serem importantes, quando vão para o mercado de trabalho, não é efetivamente a nota que vai definir quem é bom profissional e quem não é. Mais importante está o poder de desenrasque e a resiliência. As habilidades emocionais têm de ser trabalhadas.” Sorri como se fosse óbvio o que vinha a dizer a seguir. “O que define ou não o sucesso... não é um valor ou um número na universidade! São as competências pessoais que cada um tem. A resiliência e a capacidade de lidar com as adversidades.”
Rita G. Neves; Antonela Andrade