Os filhos não são para todos?

Gestação de substituição é uma resposta em suspenso

"Quando vão ter filhos?" é o que mais se pergunta aos casais, mas nunca nos lembramos de perguntar se os podem ter. Andreia sabe que é infértil desde os 11 anos. Vânia e Liliana perderam o útero. As três não podem gerar uma criança. Supostamente, não podem ser mães. O projeto de parentalidade de cada uma é possível com a gestação de substituição.

Liliana perdeu nove fetos até conseguir ter gémeos. Vânia teve os filhos à primeira tentativa. Ambas recorreram à gestação de substituição na Ucrânia. Já Andreia continua à espera que o processo seja possível em Portugal. Tal pode acontecer com a nova regulamentação, que sai até 30 de junho.

Um "milagre autêntico"

As 15h00 são marcadas em Francelos pelo serpentear do comboio ao longo da linha Porto-Aveiro. A paragem do comboio na Travessa das Marinhas enche-se por silvos agudos. Os sinais sonoros alertam as pessoas para não passarem a linha. O aviso é irrelevante. Não se vê ninguém.

Um carro entra devagarinho numa rua paralela à linha e estaciona. Parece não querer incomodar a inércia. Mas, mal a condutora abre a porta, o ambiente é preenchido pelo balbuciar de um bebé. É Dinis, filho de Patrícia Almeida. Vêm visitar Andreia e Alfredo. Os quatro não têm qualquer ligação familiar. O que os une é a infertilidade de Andreia e a vontade de Patrícia de os ajudar a serem pais.

“Eu disse logo ao Alfredo mal começamos a namorar que não podia ter filhos”. Andreia Oliveira, de 36 anos, descobriu aos 11 que não poderia gerar uma criança. Foi numa consulta no IPO que recebeu o prognóstico. “Foi por causa da leucemia. Lembro-me de ser pequenina, mas na altura a infertilidade não teve grande peso”. Depois, foi sempre crescendo com esta ideia. “Imaginava que nunca iria construir família”.

“Quando me disseram que não podia ser mãe, explicaram-me que só ia conseguir ter um filho com a gestação de substituição. Com 11 anos, até falei com a minha irmã: ‘ó mana, podes ser a minha gestante?’. Ela dizia sempre: ‘nunca conseguiria fazer uma coisa dessas’”. Andreia nunca mais tocou nesse assunto. Não sabia sequer se era possível.

Idealizava-se como uma mulher solteira e a viver para o trabalho. Não estava nos seus planos conhecer Alfredo, casar e querer ter uma família. No entanto, o futuro tinha outras ideias para Andreia. Em 2013, conheceu Alfredo num bar e, passado um ano, iniciaram uma relação. “Quando começamos a viver juntos, aí sim a vontade de ser mãe começou a ter mais peso”.

A adoção foi sempre prioridade para o casal que já se encontra num processo de adoção efetiva. Apesar disso e mesmo tendo consciência que a probabilidade de engravidar naturalmente era reduzida, o casal recorreu a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) – procedimentos que auxiliam a reprodução. Segundo o último relatório de atividade desenvolvida pelos centros de PMA, em 2018, 3.1% dos bebés que nasceram em Portugal foram fruto destas técnicas. Nesse ano, em cerca de 86 mil crianças, nasceram aproximadamente três mil.

Esta realidade é a de “muitos casais portugueses”. De acordo com Alberto Barros, especialista em Genética Médica pela Ordem dos Médicos, “cerca de 15% dos casais portugueses em idade reprodutiva têm problemas ao nível da fertilidade”. A infertilidade é uma questão quando um casal ou indivíduo é incapaz “de conseguir uma gravidez, ao final de um ano de atividade sexual regular, sem qualquer tipo de contraceção, com o objetivo de engravidar”.

Os tratamentos de PMA despertaram um maior desejo de Andreia e Alfredo terem um filho biológico. Porém, “a médica disse-nos que não seriam eficazes”, declara Alfredo Pereira, de 39 anos. “A única hipótese é recorrermos à gestação de substituição”.

Foi “um grito de desespero” que desencadeou os primeiros passos dados ao nível da gestação de substituição, em Portugal. A Assembleia da República recebeu a carta de uma mulher que não podia ser mãe, porque sofria de uma doença. Ao contrário de muitas outras, a pessoa não tinha um tratamento que lhe permitisse gerar um filho. Então, em 2016, Portugal começou a tentar que a gestação de substituição se tornasse numa realidade. Em 2017, a realidade ganhou vida, mas só durante cinco meses e nenhuma criança foi concebida. O Tribunal Constitucional (TC) chumbou a legislação. Só em 2021 é que Marcelo Rebelo de Sousa aprovou a legislação em vigor.

“Pelo mundo fora, criaram-se dois grandes modelos de gestação de substituição: um modelo altruístico e um modelo oneroso”. O professor da Faculdade de Direito de Coimbra, Rafael Vale e Reis, refere que o modelo português assenta na “vontade da gestante de ajudar um casal que não pode gerar uma criança”.

Em certos lugares, como nos Estados Unidos da América e na Ucrânia, admite-se que a gestação de substituição não seja altruística, mas de natureza onerosa. "Isto significa que a gestante pode receber uma remuneração dentro dos limites da lei. A gestante é considerada uma prestadora de um serviço”.

A gestação de substituição é comummente confundida com a "barriga de aluguer". Os dois conceitos significam o mesmo, mas o segundo é errado. O termo "barriga de aluguer" tornou-se popular, nos anos 90, com a transmissão da telenovela brasileira com este nome. A expressão deixou de ser usada, porque na gestação de substituição "não há um contrato de aluguer de barrigas".

Em casa, Andreia e Alfredo têm um quarto a mais. É um escritório, mas acreditam que o espaço vai ser para o futuro filho. A par dessa ideia, “não existe rigorosamente nada” que materialize a vontade de criarem uma criança. Todas as divisões permanecem nuas da realidade que desejam. Não querem gerar expectativas até terem certezas absolutas. Vivem entre os pretos e brancos das paredes e retratos que ocupam a casa à espera de que cheguem as cores garridas das roupas e brinquedos de um “pimpolho”.

“Ato de bondade extrema”. “Milagre autêntico”. É assim que Andreia e Alfredo descrevem a gestação de substituição. Este “ato de altruísmo” tornou-se “algo mais palpável” com o surgimento de Patrícia Almeida.

“A Patrícia namorava com um amigo nosso e veio cá a casa mostrar-nos o filho. Ela tinha percebido que nós gostaríamos muito de ter um filho biológico e, durante o almoço, mostrou-se pronta para ajudar, quando houvesse legislação”, conta Andreia. Assim, o casal deparou-se com a tal “luz ao fundo do túnel”, nos fins de outubro de 2021. Patrícia surgiu como o travão da “montanha-russa” em que viviam e carrega agora a promessa de “um milagre”.

Esta esperança intensificou-se em dezembro de 2021. Foi publicada a nova legislação da gestação de substituição. “Quando a lei saiu, fui lê-la no Diário da República. Eu estava a trabalhar e tive ali um momento entre uma cliente e outra”, descreve Andreia. “Eu ajoelhei-me e comecei a chorar e a chorar, mal percebi que ia mesmo acontecer”.

Patrícia Almeida, de 27 anos, decidiu ser gestante “aproximadamente seis meses depois de ter parido” o filho. A mulher é movida por duas razões. “Consigo ajudar alguém que tem tudo para ser uma excelente mãe e a isso junto também a minha vontade de querer voltar a passar por um parto, sendo que não quero mais filhos”.

A candidata a gestante partilhou a sua decisão com a família e amigos “com muita naturalidade”. “Esta é uma decisão minha, da Andreia e do Alfredo e quem sabe quem eu sou percebe, e isso é o que importa”.

Patrícia nunca ponderou voltar atrás na sua decisão e admitiu conseguir separar bem o que é gerar a criança e o que é ser a mãe. “Desde que decidi que gostaria de ser gestante, não me ocorreu sequer pensar que o bebé seria meu”. Mesmo agora ao falar do assunto, sabe que o filho será de Andreia e de Alfredo. “Não é meu. No máximo, sou madrinha”.

"Bora lá trazer
bebés ao mundo"

A 1 de agosto de 2017, os jornais davam conta que a gestação de substituição já podia ser praticada em Portugal. Ângela Querido, de 37 anos, e candidata a gestante, lembra-se desse dia como se fosse hoje. “Nós estávamos a jantar e deu a notícia no telejornal. Disse assim para o meu marido: ‘Ó pá, olha que fixe! Mais casais vão poder realizar o seu sonho de vida’”. Portugal não estava “tão atrasado” como Ângela pensava. “O meu marido concordou comigo e esperou que não fosse mais uma ‘lei de gaveta’. Eu fiquei contente, mas não liguei muito”.

“Acho que foi no dia 3 de agosto”, conta Ângela. Estava em casa à hora do almoço a varrer a sala e ouviu uma outra notícia relacionada com o tema. Pensou: ‘é isto, tem que ser este o passo a dar, eu tenho que me meter nisto’. Ângela já tinha, por três vezes, ajudado casais a constituir família, através da doação de gâmetas. “Já sabia o que era a parte da doadora e tinha a certeza que estar grávida para outra pessoa ia ser uma experiência fantástica”.

Ângela pegou no telemóvel. Ligou ao marido e informou-o: ‘eu preciso de falar contigo, quando chegares a casa. Tenho uma coisa muito séria para te dizer’. “Ele disse-me: ‘não me digas que estás grávida’. Eu respondi: ‘não, mas chega a casa e a gente conversa’”.

Já em casa, o marido perguntou-lhe: ‘vá, o que é que tens para me dizer?’. ‘O que é que tu achavas se eu quisesse ser gestante de um casal?’, propôs Ângela. “Ele olhou-me muito sério e questionou: ‘estás a falar a sério?’. Disse que sim. Ele deu um passinho para trás, voltou a olhar-me: ‘achas que estás preparada?’. ‘Sim’. ‘Não te vais arrepender?’. ‘Não’. ‘Tens a certeza?’. ‘Tenho’. ‘Então, vamos em frente’”.

Entregar a novidade à família foi fácil. Já se esperava que uma boa nova como esta se espalhasse rapidamente. Mas, até mesmo antes de Ângela contar a quem queria, a notícia chegou a todos através de uma reportagem. “Depois de as pessoas lerem, vieram dizer que isto era feito por dinheiro, quando era sabido que era uma coisa gratuita”.

Alguns amigos perceberam e outros não. Os que não entenderam foram desaparecendo aos poucos. “Não percebiam como é que o meu marido apoiava e como é que ele ia dormir na cama com uma mulher que estava grávida de outro homem”. “Não tem sentido nenhum. É tudo feito em laboratório”.

Num processo de gestação de substituição, é implantado um embrião no útero da gestante. O embrião é desenvolvido através de técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA) e surge da união do espermatozoide e do ovócito cedidos pelo casal beneficiário. Se um dos membros do casal não conseguir produzir gâmetas, os beneficiários podem recorrer a um banco público de ovócitos e espermatozoides.

Nem a patroa de Ângela gostou da situação e arranjou forma de não lhe renovar o contrato de trabalho. “Eu perdi o meu trabalho, porque a pessoa não tinha sentido de solidariedade nenhum. Achava que eu estava a fazer uma coisa horrorosa, porque deveria ser paga”.

Ângela recorreu à página da Associação Portuguesa da Fertilidade para obter informações sobre a gestação de substituição e foi lá que encontrou um casal. Começou a falar com a beneficiária do casal e decidiram combinar um café. Ângela queria perceber se havia algum tipo de afinidade. Não lhe fazia sentido realizar um processo com uma pessoa por quem não sentisse carinho. “Eu tinha de sentir o click com aquele casal”. E sentiu. Criou-se uma amizade. “Começamos a viver tudo muito ali os quatros e definimos muito bem os meses seguintes”.

O casal beneficiário submeteu o processo ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), entidade selecionada para supervisionar as gestações de substituição. Com um diagnóstico de infertilidade e com uma gestante selecionada, o casal beneficiário pôde recorrer ao CNPMA para dar início ao processo. Depois da Ordem dos Médicos certificar a infertilidade, a entidade administrativa entrevistou todas as partes envolvidas e aí assinaram o contrato.

No dia 10 de abril de 2018, o casal recebeu um telefonema a confirmar que o processo tinha sido aprovado e que podiam iniciar as técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). “A beneficiária ligou-me toda contente: ‘Ângela, nós conseguimos!’ e eu, que estava em casa, saltei, pulei e disse ‘boa! Vamos em frente’”. Nessa chamada telefónica, ambas decidiram marcar a primeira consulta.

“Isso nunca chegou a acontecer”. Duas semanas depois, foi publicado o chumbo do Tribunal Constitucional (TC).

 “O TC não veio dizer que a gestação de substituição era inconstitucional. O tribunal veio explicar que tem de ser criada uma legislação que fique dentro dos limites da Constituição Portuguesa”. O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Rafael Vale e Reis, aponta a “impossibilidade legal de arrependimento da gestante” como a principal das razões que levaram o tribunal a declarar a inconstitucionalidade do regime jurídico.

“Foram ignorados. O regime jurídico de 2016 desconsiderou direitos fundamentais dos beneficiários, da gestante e da criança”, denota a professora auxiliar de Direito da Universidade do Minho, Diana Coutinho. “O quadro legislativo tinha algumas lacunas. Apresentava incongruências. A legislação tinha de ser alterada sob a pena de estar a violar princípios fundamentais e direitos constitucionais”.

Os dias que se seguiram foram preenchidos por esperança banhada na incerteza. Recuaram e tiveram de concluir que “não havia hipótese”. Não podiam iniciar uma gestação de substituição. “Percebemos que não ia para a frente. O processo ia ficar por ali. Foi duro”, admite Ângela.

Foi preciso tempo. Foram obrigados a fazer o luto de uma criança que nunca chegou a ser deles.

Em dezembro de 2021, avançou-se no retrocesso. Deu-se a atualização da legislação portuguesa. A nova lei difere em alguns pontos do quadro legal que entrou em vigor há cinco anos.

Rafael Vale e Reis é advogado e investigador do Centro de Direito Biomédico.

Rafael Vale e Reis é advogado e investigador do Centro de Direito Biomédico.

Diana Coutinho desenvolveu a tese de Doutoramento com o tema "gestação de substituição".

Diana Coutinho desenvolveu a tese de Doutoramento com o tema "gestação de substituição".

A nova lei vem responder ao principal motivo que levou ao chumbo das anteriores. Neste novo enquadramento legal, a gestante passa a ter o direito a arrepender-se até ao registo da criança e tem a possibilidade de a reclamar.

Carla Pinho Rodrigues é presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. O conselho supervisiona os processos de gestação de substituição.

Carla Pinho Rodrigues é presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. O conselho supervisiona os processos de gestação de substituição.

“O TC é que deveria explicar porque é que resolveu introduzir esta alteração. Aos olhos do CNPMA, entendemos que a gestante não deveria reclamar a criança. A gestante assina um contrato e tem que o cumprir. Nós discordamos com a possibilidade de arrependimento, mas temos de aceitar”, defende a presidente do CNPMA, Carla Pinho Rodrigues.

Enquanto gestante, Ângela não concorda sequer com o direito ao arrependimento. “Esse direito vai contra o superior interesse da criança e põe em causa o sonho que a gestante vende ao casal. A gestante vende um sonho. A gestante, quando diz ‘eu aceito carregar o teu filho’, está a dizer ‘eu vou ajudar-te a criar uma família’”. Se, no final da jornada, a gestante traz o bebé para casa, que família é que está a ajudar a criar? “Que sonho é que nós construímos? Não construímos sonho nenhum. Criamos dor, sofrimento e angústia”.

Ângela sabe que não vai ficar com a criança. Já se mentalizou. Verá o bebé como sobrinho. Está consciente de que, quando chegar “àquela altura, o sobrinho tem de ir para a casa dos papás. Não é na casa da tia que vai ficar”. “Se assim for, tudo se resolve”.

“No dia em que nos disserem que podemos realizar o contrato, o casal vai obviamente dar entrada com o pedido e vou junto com eles da mesma forma que eu fui há cinco anos”. Têm uma história. “É quase um casamento”. Para Ângela só faz sentido iniciar a gestação de substituição assim.

Enquanto isso, os casais portugueses podem recorrer à gestação de substituição noutros países e submeter-se a processos que não se assemelham aos de Portugal. Existem vários tipos de gestação no mundo com legislações diferentes.

“A legislação portuguesa não tem nada a ver com a legislação norte-americana, ucraniana, nem com a do Reino Unido”. Para Carla Pinho Rodrigues, a gestação de substituição só faz sentido como Portugal a constrói.

É um contrato gratuito. “É uma entrega solidária, voluntária, generosa, de uma mulher para com outra, que não consegue procriar, tanto por não ter útero ou por ter o órgão disfuncional ou por sofrer de uma doença grave”.

"A senhora prestou-me
um serviço"

Foto | Vânia Humberto

Foto | Vânia Humberto

Vânia Gregório, de 44 anos, estava muito nervosa no momento em que os seus gémeos iam nascer. 25 de setembro de 2019. A inquietação aumentou ainda mais quando descobriu que os bebés iam nascer por cesariana. O médico, que não falava português, explicou-lhe tudo por gestos. Vânia não demorou muito a perceber o que estava a acontecer, porque este tipo de imprevisto é regular na sua vida. Como enfermeira-parteira, conhece, de trás para a frente, a rotina do parto e os contratempos que podem surgir. Com os filhos não foi diferente.

Vânia idealizou um parto vaginal. Apesar da realidade contrariar as expectativas, estava aliviada. Não era ela quem ia passar pela cesariana. Só seria uma mera espectadora. A sua função ali era esperar que lhe trouxessem as crianças.

Na sala de partos, Vânia ouviu o choramingar de um dos gémeos. Foi um sinal de vida. A gestante de Vânia tinha acabado de “dar à luz” Eros.

Num piscar de olhos, a criança foi-lhe colocada nos braços. “Ainda ontem eu estava em Portugal e tu já estás aqui”, pensou Vânia. Aquele foi o primeiro contacto que alguma vez a mãe teve com aquela criança.

“Bem-vindo ao mundo! Tu és o Eros, porque eu escolhi o teu nome e eu sou a Vânia. Agora, vamo-nos conhecer e o amor vai crescer daqui para a frente, a cada dia, mais e mais”.
Vânia Gregório

“Eu estava emocionadíssima. Aliás, até tinha pensado fazer um filme e nem o fiz tamanha era a emoção. Eu lá fiquei a vesti-lo, toda encantada, a pensar ‘meu Deus, já nasceu! Como é que é possível? E está quase a nascer o próximo!’”. Foram precisos apenas três minutos até Énia nascer. Foram precisos apenas três minutos para Vânia viver novamente aquilo que queria há mais cinco anos. Não foi preciso muito para perceber que aquela “dinâmica de dois” não ia ser lá muito fácil.

Chegar à gestação de substituição implicou que Vânia confrontasse, por momentos, a finitude da vida. Já com um filho, Enzo, Vânia e o marido, Humberto Gomes, de 42 anos, queriam alargar a família. Isto não poderia voltar a ser feito “naturalmente”.

A adoção já fazia parte da vida do casal antes de Enzo nascer. O processo de adoção não estava a ser o que esperavam. Nem antes nem depois de serem pais. Acabaram por desistir.

Vânia e Humberto também não podiam recorrer às técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Já tinham utilizado esta opção para gerar o primeiro filho, mas não podiam voltar a repetir a peripécia. O primeiro e único parto de Vânia desencadeou um conjunto de acontecimentos que resultaram na remoção do útero. Não poderia voltar a conceber uma criança.

O casal tentou mascarar o desejo de voltar a serem pais com o prazer das viagens. “Viajar e conhecer sítios novos foi sempre algo que nos uniu muito”. Numa dessas viagens, Vânia teve de ser operada de urgência. Não sabia se ia ou não sobreviver. “Ia morrendo. Mas, quando acordei e percebi que afinal estava viva, decidi que o meu caminho não era por ali. Eu estava a tentar esconder aquilo que, na verdade, eu queria mesmo. Queria ser outra vez mãe”.

A gestação de substituição chegou a Humberto de forma inesperada. “Foi a Vânia que chegou ao pé de mim e disse ‘estou decidida e vamos fazer assim’. Ela pesquisou na Internet, decidiu, e a mim informou-me”. A novembro de 2018, iniciaram o processo na Ucrânia. Sete meses antes, a gestação de substituição tinha deixado de ser uma realidade em Portugal e os casais foram obrigados a procurar alternativas no estrangeiro.   

Ao contrário do que acontece em território português, a Ucrânia admite que qualquer casal heterossexual com problemas de fertilidade, independentemente da nacionalidade, possa recorrer à gestação de substituição no país. Esta possibilidade abre portas ao “turismo de reprodução”.

Há uma ideia generalizada de que estes fluxos de procriação possam iniciar-se em Portugal. A lei portuguesa permite a gestação de substituição a casais heterossexuais e homossexuais femininos que residam no país, sem estipular um tempo de residência.

Tal como na legislação portuguesa, o principal pré-requisito das clínicas ucranianas, para que os casais possam iniciar o processo, é a infertilidade. As mulheres beneficiárias têm de apresentar problemas no útero, ausência de útero ou situações clínicas que as impeçam de procriar.

Vânia e Humberto inseriam-se nos requisitos. O processo arrancou e escolheram a gestante. Foi tudo tratado através da agência. “Nós não sabíamos nomes. Tínhamos códigos, fotografias e algumas características da pessoa, nomeadamente, o que é que faz, a profissão, a idade, coisas assim”, esclarece Humberto.

“Durante o processo de seleção, as pessoas são só códigos, acabam por ser um número e não existe nada mais do que isso", conta Humberto. Só souberam o nome da gestante aquando da assinatura do contrato, na Ucrânia. “Fomos conhecê-la para que comprovasse que éramos o casal a quem ia entregar a criança. Tinha a perfeita consciência do que estava a fazer”.

Em Portugal, esta “seleção por catálogo” não existe. “Não há um banco de gestantes. Não há, nem pode haver, até porque também há aqui uma obrigação de confidencialidade", expõe a presidente do Conselho Nacional de Procriação Mediamente Assistida (CNPMA), Carla Pinho Rodrigues. "A mulher será gestante no âmbito de um processo de gestação de substituição, mas o seu estado não é público, nem deve ser sabido que está a gerar um filho que não é dela”. Os casais têm assim de procurar uma gestante. O quadro legal português sugere que a gestante seja, inclusive, próxima ou familiar dos beneficiários para facilitar o processo de escolha e para diminuir o risco de arrependimento.

A gestante de Vânia e de Humberto não era próxima. Não era da família e até estava a mais de quatro mil quilómetros de distância. De mês a mês, o afastamento diminuía. Recebiam um email a dar conta de como estava a correr a gravidez. Recebiam a certeza de que o momento em que iam conhecer os filhos estava cada vez mais próximo.

“É extraordinário. Nunca estivemos tão agarrados ao e-mail na nossa vida”. No dia 18 de fevereiro de 2019, o casal estava ainda mais sedento de novidades. Iam descobrir se a gestante estava ou não grávida. Ao final da tarde, ainda não sabiam de nada. Já previam uma “notícia negativa”. Vânia dizia para Humberto: “fogo, para pagar somos os primeiros e para saber somos os últimos”. Mal sabiam que a surpresa vinha a dobrar. 

Vânia estava a fazer o turno da tarde no hospital e, quando abriu o email, deu “pulos de alegria”. Estava contentíssima. Iam ser pais outra vez. "Mas, quando eu abro a net e vejo os resultados, eu ia morrendo. A sério. Sentei-me e pensei: ‘ai, meu Deus! Tu não vais conseguir. Tu não vais conseguir’”. Logo que viu os valores, percebeu que “a probabilidade de serem gémeos era enorme”.  

“Depois, eu liguei ao Beto, ao meu marido, e disse ‘parabéns, parabéns, vamos ser pais outra vez. Mas Beto, prepara-te, estás sentado? Estás sentado? Beto, prepara-te’, porque ele não percebe nada, não é da área da saúde como eu”. “’Humberto prepara-te porque é assim, eu posso estar tremendamente enganada, mas nós vamos ter gémeos. E ele ia morrendo, claro, foi assim uma coisa terrível”. Não estavam à espera. “Mas era melhor dois do que nenhum”.

Vânia e Humberto decidiram transferir dois embriões para o útero da gestante. Achavam que “só iria sobreviver um”. Tinham feito o mesmo com o primeiro filho, quando estavam a tentar engravidar. Só que se esqueceram que Vânia “tinha 35 anos e a gestante 24”. “E, pronto, o que pega tudo estaca”.

Dali a sete meses, Eros e Énia nasceram. Nasceram de uma mulher que foi paga para carregar e pari-los. Para Vânia e Humberto, o amor “não foi diferente”. O serem pais “não foi diferente”. O que foi? Foi difícil, sobretudo, pelos obstáculos criados pela lei portuguesa.

“Sempre achei que o amor não seria distinto por carregá-los ou não na minha barriga. Quando os vi, tive a certeza que era exatamente o mesmo sentimento que vivi quando o primeiro filho nasceu de mim”.
Vânia Gregório

Agora, os gémeos já têm dois anos. “São uma coisinha linda”. A gestante não faz parte das suas vidas. Enviam apenas fotografias a cada aniversário. São-lhe gratos, mas não aceitam uma gestação de substituição na qual a gestante interfere com o dia a dia da família. Por isso, acham que este processo não deveria ser “um voluntariado”.

“É um serviço. A senhora prestou-me um serviço e eu paguei-lhe, com o devido respeito”. Para Vânia, isso não quer dizer que não haja empatia. 

Eros, segundo filho do casal | Foto cedida pelo casal

Eros, segundo filho do casal | Foto cedida pelo casal

A família de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

A família de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

Énia, primeira filha do casal | Foto cedida pelo casal

Énia, primeira filha do casal | Foto cedida pelo casal

Énia, Enzo, Eros. Os três filhos de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

Énia, Enzo, Eros. Os três filhos de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

Eros e Énia nasceram através da gestação de substituição | Foto cedida pelo casal

Eros e Énia nasceram através da gestação de substituição | Foto cedida pelo casal

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Eros, segundo filho do casal | Foto cedida pelo casal

Eros, segundo filho do casal | Foto cedida pelo casal

A família de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

A família de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

Énia, primeira filha do casal | Foto cedida pelo casal

Énia, primeira filha do casal | Foto cedida pelo casal

Énia, Enzo, Eros. Os três filhos de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

Énia, Enzo, Eros. Os três filhos de Vânia e de Humberto | Foto cedida pelo casal

Eros e Énia nasceram através da gestação de substituição | Foto cedida pelo casal

Eros e Énia nasceram através da gestação de substituição | Foto cedida pelo casal

A solidariedade e proximidade que se encontram na base da gestação de substituição em Portugal é vista como um perigo para o casal. “Seria como adotar o filho do vizinho e dizer-lhe, todos os dias, como é que o filho está”, assegura Humberto. “Em vez de sermos um casal, seríamos um casal e mais não sei quem”.

Para o casal, a intimidade estabelecida entre a gestante e os casais beneficiários “gera inevitavelmente vínculos”. “Se fossemos próximos da nossa gestante, iria haver ligações difíceis de quebrar”, acredita Vânia. “E os pais querem os filhos para eles. Não querem os filhos dos outros”.

“Assim que os nossos filhos tiverem capacidade de perceber, nós iremos contar. Guardamos as fotografias da senhora para mostrarmos e para explicarmos tudo. Nunca foi o nosso objetivo mentir”.  Por agora, Vânia e Humberto só querem ver os filhos crescer.

"Os meus filhos estão
cá à sétima tentativa"

Foto | Liliana Antunes

Foto | Liliana Antunes

“Eu e o Gonçalo casamos com o intuito de sermos pais. Entretanto, eu consegui engravidar e, no fim da gravidez, tive uma rasteira”. Liliana Antunes, de 36 anos, na primeira gravidez, pariu um filho morto, perdeu o útero e esteve quatro dias em coma. Liliana “ficou viva”. O primeiro filho “não conseguiu ficar”.

“’Se me quiseres deixar, deixa-me. Eu já não te posso dar o melhor que nós queremos’”. Esta foi a primeira mensagem que Liliana deixou ao marido, Gonçalo Gomes, depois de acordar do coma.

Segundo a PORDATA, em 2021, cerca de três em mil bebés nasceram sem vida ou morreram na primeira semana. Nesse ano, nasceram aproximadamente 80 mil crianças. Cerca de 240 não sobreviveram.

Depois da perda de um filho, há pais que deixam este projeto de vida de lado. Há outros que perseguem insistentemente este desejo. Liliana sempre quis “estudar, casar e depois ter filhos”. Quando não conseguiu conceber “o seu melhor”, “a única coisa que pensava nem era arranjar trabalho, nem arranjar isto, nem aquilo. Era, simplesmente, ter filhos”. Era ter alguma coisa que a suportasse.

“Lembro-me perfeitamente de dizer às técnicas do hospital que eu não iria parar até que tivesse alguém em casa e elas só me diziam que ainda estava tudo muito vivo e que eu tinha de fazer o luto. E eu dizia-lhes ‘o luto de quê se eu nem sequer conheci o meu filho? Eu não consigo fazer luto do que eu nem sequer conheci’”.
Liliana Antunes

Gonçalo e Liliana decidiram seguir pela adoção. Nacional ou internacional. Os “grandes do nosso país” disseram-lhes que não estavam aptos para adotar fora de Portugal. O casal começou a perceber que estava “a ser posto de parte”. Lá tiveram de riscar a adoção dos seus planos. Por arrasto, veio a gestação de substituição a um custo elevado.

Foi no início de 2016 que puseram em cima da mesa a hipótese de recorrerem à gestação de substituição. Não podiam fazê-lo em Portugal. Foram à Ucrânia.

Liliana Antunes com o marido e os dois filhos | Foto cedida pelo casal

Liliana Antunes com o marido e os dois filhos | Foto cedida pelo casal

Enquanto Soraia espreita o que a mãe anda a fazer, Salvador passarinha pela casa com roupas nas mãos. Os “gaiatos” andam sempre atrás de Liliana, mas “são a cara do pai”.

Soraia está sempre a atirar beijinhos. Salvador gosta muito de acenar. São as crianças que desequilibram a quietude transmitida pelo espaço. Os risos, os passos, a galhofa e as cores vibrantes quebram o sossego e a uniformidade.

A casa de Liliana reveste-se de tons castanhos. Há madeira aqui e acolá. Até nas paredes e nos tetos. Parecem viver num recanto que pertence à natureza. Não é uma casa mágica, nem uma de brincar. Mas são as brincadeiras dos gémeos que lhe dá vida.

Soraia e Salvador celebram três anos | Foto cedida pelo casal

Soraia e Salvador celebram três anos | Foto cedida pelo casal

Até que Liliana e Gonçalo tivessem os gémeos, precisaram de sete gestações, perderam nove filhos e recorreram a três gestantes. Tudo isto em três anos.

“Os meus filhos estão cá à sétima tentativa”, confessa Liliana. “Nós chegamos a um ponto em que ligamos aos responsáveis da clínica e dissemos: ‘vocês estão a enganar-nos! Vocês estão a criar uma coisa que nunca vai ser nossa’”. Até a clínica já se questionava o porquê das perdas sucessivas, tanto que os filhos de Liliana “estão cá por oferta”. A clínica pagou a sétima e a oitava tentativa de gestação.

Jorge Gato, investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências para a Educação da Universidade do Porto, reconhece que os motivos que levam os casais a serem pais podem ser "um pouco egoístas".

Jorge Gato, investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências para a Educação da Universidade do Porto, reconhece que os motivos que levam os casais a serem pais podem ser "um pouco egoístas".

“Mas o que motiva tanto as pessoas a querem ter filhos, hoje em dia? As pessoas encaram a parentalidade como um processo de crescimento pessoal e de enriquecimento emocional”, justifica o investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências para a Educação da Universidade do Porto, Jorge Gato. “Atualmente, ter um filho vai aumentar a minha qualidade de vida, vai proporcionar-me experiências positivas, vai permitir-me crescer como pessoa e acompanhar o crescimento de outra". Este querer pode não ser "assim tão linear”. E pode ter repercussões.

O casamento de Liliana e Gonçalo não escapou ileso. “Foram muitas tentativas. Eu e o meu marido chegamos a nem olhar um para o outro. Chegamos a sentir raiva”. Liliana perguntava-lhe: ‘porque é que connosco funcionou à primeira e agora lá não funciona?’. “Era muito frustrante. Para nós não nos cruzarmos, eu trabalhava, muitas vezes, das sete da manhã às dez da noite”.

A revolta era tanta que Gonçalo deixou de querer saber o que se passava ou não na Ucrânia. “Não lhe vou mentir, o meu marido só soube que a minha gestante estava grávida quando ela estava de três meses”. A raiva desapareceu quando os gémeos nasceram.

20 de março de 2019. Já na Ucrânia, Liliana e Gonçalo foram para o hospital. Lá, souberam que as crianças nasceram mais cedo. “Caí quase ao chão e disse: ‘não me acredito! E não assisti ao parto?’”. Soraia “nasceu um bocadinho com pressa”. Mas não nasceu tarde, nem a más horas. Nasceu no momento certo. Era o aniversário de Liliana.

“Enquanto não os vi, enquanto não olhei para eles e disse ‘estão aqui, são meus’, eu não acreditei. Já tinha corrido tudo tão mal que eu não acreditei que aquilo fosse acontecer”.
Liliana Antunes

Liliana e Gonçalo estiveram na Ucrânia, até 16 de abril, a tratar da “papelada” oficial para comprovarem que os filhos eram deles e para puderem voltar a Portugal. Nesse mês, entre entregar papéis, fazer testes de ADN, mudar fraldas e dar biberões a duplicar, ainda conseguiram acalmar a sua situação e fazer as pazes.

“A partir do momento em que vimos aquelas crianças, foi a melhor coisa”. Liliana continua a dizer que “aquela revolta morreu ali”. “Ficou lá. Ficou na Ucrânia. Não lhe foi permitida entrada no avião para cá. E lá deve ter desaparecido”.

Quando a gestação de substituição é realizada fora de Portugal, apenas o homem do casal beneficiário é reconhecido como o pai das crianças. À luz da lei portuguesa, a mulher beneficiária não é a mãe. Em Portugal, para que seja reconhecida como tal, o casal tem de passar por um processo de adoção daqueles bebés. A adoção é realizada como qualquer outro procedimento adotivo.

“As crianças lá estavam registadas em meu nome, a mãe, e do meu marido”, informa Liliana. “Cá, as crianças chegaram só como filhas do pai. Sem serem filhas de mãe, coitadinhas”.

“A Soraia e o Salvador são a melhor coisinha que tenho no mundo. A gente sabia bem no que se ia meter, mas também nunca pensamos que íamos gastar tanto. Mas foi o melhor dinheiro que eu gastei, foi com os meus filhos, não me chateio. Se fosse preciso gastar outro tanto, voltaria”.

Jorge Gato valida a opção do casal. “Há pessoas que compram carros, outras casas, outras querem ter um filho. Não é que seja a mesma coisa, mas querem educar uma criança”.

Liliana reconhece que pagou para ter os filhos, mas não vê a gestação de substituição como um negócio. Não acha que aquilo que move as mulheres a serem gestantes é exclusivamente o dinheiro. Vê no amor uma razão válida. “Quando cheguei ao pé da nossa gestante, eu agarrei-me a ela e agradeci-lhe o melhor que fez por mim. E ela agradeceu-me também. Disse-me: ‘eu dei-te o melhor que tu tens, mas tu também me ajudaste a proporcionar uns bons estudos para os meus filhos’”.

Quando se fala sobre gestação de substituição, “as pessoas ficam um bocadinho reticentes e reclamam, porque acham que é um negócio. Mas, na verdade, não sabem o quanto a gente teve de lutar para chegarmos até aqui”. As pessoas pensam que é “chegar, pagar e trazer”. “Não é bem assim”.

O caso de Liliana não foi "tão simples". "Ainda foram muitas tentativas e muitos impasses" até conseguirem ter cá as crianças. “Eu dizia e digo de braços abertos: ‘eu vim pobre, mas vim feliz’”.

"A gestação de substituição
não é a fórmula"

Até 30 de junho, será regulamentada a gestação de substituição, em Portugal. Entre avanços e recuos, a nova regulamentação vai aproximar os portugueses da possibilidade de iniciar os processos de gestação.

O processo envolve a intervenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) e da Ordem dos Médicos. O início de cada gestação está dependente de aprovações destas entidades.

ETAPAS DO PROCESSO DE
GESTAÇÃO DE SUSBTITUIÇÃO

1. A(s) mulher(es) do casal beneficiário tem/têm de apresentar uma situação clínica que a(s) impeça de gerar e parir uma criança.

2. Os casais heterossexuais ou casais homossexuais femininos são os únicos que podem recorrer à gestação de substituição.

3. O casal tem de encontrar uma gestante.

4. O casal tem de programar as técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Pelo menos um dos membros do casal beneficiário tem de contribuir com gâmetas (espermatozoides e/ou ovócitos) para o desenvolvimento do embrião que vai ser implantado na gestante. A gestante não pode contribuir com ovócitos. E, se a(s) mulher(es) do casal beneficiário não conseguir(em) contribuir com ovócitos, podem recorrer a um banco de gâmetas.

5. O casal e a gestante recorrem ao CNPMA para iniciarem o processo. Estes têm de entregar ao CNPMA: documentos de identificação; relatórios médicos e uma declaração do centro de PMA, no qual vão fazer o procedimento.

6. Depois de reunida a documentação, o CNPMA verifica-a e envia os relatórios médicos para a Ordem dos Médicos.

7. A Ordem dos Médicos tem de certificar que existe situação clínica que impede a(s) beneficiária(s) de gerar(em) uma criança e tem de perceber se a gestante está psicologicamente apta e ciente do processo.

8. Com os documentos certificados, o CNPMA conduz entrevistas ao casal beneficiário e à gestante, e certifica que estes estão conscientes do processo.

9. O CNPMA esclarece o contrato de gestação de substituição, os direitos e obrigações que advêm desse contrato. Se todos estiverem de acordo, o casal e a gestante assinam o contrato.

10. Assinado o contrato, o responsável pelo processo vai elaborar um relatório, no qual afirma que “aquele casal reúne todas as condições para se submeter a um processo de gestação de substituição e que aquela gestante reúne as condições para ser gestante daquele casal”.

11. Com a apresentação deste relatório, o CNPMA emite uma deliberação, na qual aprova ou não o início do processo. Se o CNPMA aprovar, o casal e a gestante iniciam as técnicas de PMA.

12. O CNPMA supervisiona toda a gravidez. Depois da criança nascer, o CNPMA acompanha a entrega da criança aos pais beneficiários.

De acordo com a professora auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho, Diana Coutinho, “a gestação de substituição é um fenómeno complexo que envolve inúmeras problemáticas, não só do ponto de vista jurídico, mas também do ponto de vista moral, social e ético”. Como tal, o processo levanta um conjunto de perguntas, cujas respostas são discutíveis.

Será que a lei está bem construída? O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Rafael Vale e Reis acha que não. “A lei não está bem feita”. Teme que, se o Tribunal Constitucional (TC) vier a apreciar novamente o regime jurídico, a legislação seja chumbada mais uma vez. O período reduzido de arrependimento da gestante, a situação de indefinição jurídica da criança, se esta for reclamada pela gestante, e a falta de meios do CNPMA são as “lacunas” que podem vir a afundar a lei.

A gestante pode arrepender-se, no máximo, até ao registo da criança. O registo pode ser feito até 20 dias depois do bebé nascer. A legislação não afirma que a gestante tem exatamente 20 dias para ponderar se quer, ou não, renunciar o seu estatuto jurídico de mãe. Apenas menciona que a mulher tem até ao registo do bebé para o reclamar. “O problema não são os 20 dias. O problema é que a lei não diz ‘só podem registar a criança ao 20.º dia’”, explica Diana Coutinho. “O bebé pode ser logo registado no primeiro ou segundo dia e aí a gestante não terá oportunidade para repensar a sua decisão”.

Rafael Vale e Reis também concorda que “o direito ao arrependimento da gestante está praticamente reduzido a nada”. “O período é de tal forma curto e unilateral, que vai obrigar a gestante a ponderar sobre a sua escolha na pressão do parto”. Uma das soluções sugeridas é terminar o tempo de arrependimento num momento mais afastado do parto.

Um dos problemas desencadeados pelo aumento do período de arrependimento é já um obstáculo que se vai verificar caso a gestante decida refletir se fica ou não com a criança. Durante o tempo em que a gestante pensa, o bebé vai estar num “limbo”. Quem é a sua mãe? Quem é o seu pai? Com quem fica? A criança vai encontrar-se numa situação de indefinição jurídica, porque a lei não responde a estas perguntas. A lei não diz a quem pertence a criança.

“Como diz o povo, nós não podemos ter sol na eira e chuva no nabal. Nós não podemos ter o direito ao arrependimento e não ter a criança um bocadinho no ‘limbo’, do ponto de vista dos vínculos da maternidade e da paternidade”. Rafael Vale e Reis vê esta indefinição apenas como um período no qual “há mais do que uma pessoa a querer aquela criança”. E, como tal, “não está desprotegida”. O professor considera que não há gestação de substituição sem esta indefinição. “Se não queremos esta indefinição, temos que proibir o arrependimento”. Mas sem arrependimento, não há gestação de substituição.

“O período de indefinição viola os direitos do casal beneficiário, mas viola, sobretudo, os direitos da criança”. A presidente do CNPMA, Carla Pinho Rodrigues, afirma que, a partir do momento em que a criança nasce, esta tem que ser necessariamente entregue aos pais. “E é, por isso, que o CNPMA tem de evitar que a criança fique sem saber qual é o seu destino”.

Porém, o CNPMA não tem meios para gerir todos os processos de gestação de substituição. De acordo com Carla Pinho Rodrigues, o conselho “não nasceu para desenvolver uma série de competências que tem. Nós não temos uma estrutura capaz e suficiente para acompanhar os processos de gestação de substituição”.

A entidade foi criada há 15 anos e, de ano para ano, os encargos foram aumentando, sem que a estrutura fosse alterada. “Esta lei vem dar-nos um volume enormíssimo de trabalho”.

“É preciso que haja condições para que não seja depois atribuído ao CNPMA qualquer tipo de responsabilidade na ineficiência desta lei. Nós sempre alertámos: ‘estamos disponíveis para executar esta lei e achamos que é urgente e necessária, mas temos de ter condições para o fazer'. Porém, a Assembleia da República não nos deu essas condições na legislação”.
Carla Pinho Rodrigues

Diana Coutinho e Rafael Vale e Reis apontam ainda para a necessidade de ser criada uma autoridade judicial no CNPMA. O organismo deveria intervir na “triagem do processo”, na “formulação do contrato”, no “acompanhamento da gestante” e, sobretudo, no “final do processo, quando a gestante tem de reafirmar o seu consentimento”. “O ideal seria que o Ministério Público tratasse disso”, nota Diana Coutinho.

A regulamentação vem preencher os vazios deixados pela lei. A comissão de regulamentação foi criada em março deste ano e tem até ao final de junho para apresentar uma proposta definitiva do regulamento. Aí, cabe ao governo subscrever a regulamentação e publicar o decreto regulamentar. Com esta publicação, é dado o “tiro de partida” da gestação de substituição e o CNPMA pode começar a dar resposta aos processos.

Para Diana Coutinho, “estas questões deviam ter sido resolvidas por força da lei e não por mera regulamentação”. Já Rafael Vale e Reis admite que “há um caminho muito grande a trilhar” e que deveria ser o legislador a resolver esses problemas.

“Apesar de ser um otimista, eu devo dizer que não vejo as condições sequer mínimas para que a gestação de substituição possa funcionar adequadamente em Portugal”. O professor de Direito gostaria que isso acontecesse. “Não é muito difícil, nem estamos muito longe disso. Com alguns aperfeiçoamentos na lei, poderíamos dormir um bocadinho mais descansados”.

A gestação de substituição pode vir a ser aplicada quando a lei não levantar reticências. “Mas deve ser aplicada muito pouco. Só pode haver boa gestação de substituição e os bons casos vão ser insuficientes”, reflete Rafael Vale e Reis.

“A gestação de substituição não é a fórmula. Não é uma panaceia que vai resolver os problemas de infertilidade dos casais. É, de facto, tão perigosa e tão complexa que só vai funcionar bem em poucos casos. E são esses os casos que nós queremos”.
Rafael Vale e Reis

Agora, é esperar para ver. Só o enquadramento regulamentar é que vai definir os próximos passos da gestação de substituição. Poderão os casais portugueses vir a concretizar os seus projetos de parentalidade ao fim de cinco anos? Enquanto isso, Vânia e Humberto, Liliana e Gonçalo vêem os seus filhos crescer. Andreia e Alfredo esperam que o seu “grito de desespero” seja ouvido.

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Autoras

Ana Margarida Alves

"Gosto de histórias. Gosto também de as ouvir e de as contar. Saltitei do curso de Ciências e Tecnologias para a licenciatura em Ciências da Comunicação, na Universidade do Minho. Queria o jornalismo, tive jornalismo e espero tornar-me jornalista. Na licenciatura, fiz do ComUM a minha casa. Primeiro, redatora. Depois, editora e diretora. Decidi contactar com o jornalismo local e, enquanto redatora, colaboro no Cidade Hoje – Rádio e Jornal de Vila Nova de Famalicão".

Catarina Magalhães

"Fascinada com o mundo das notícias, já em criança preferia até jornais a brinquedos. Sem me aperceber, estudar jornalismo foi sempre a única opção. E confirmei esta vontade no estágio que realizei no Porto Canal, no Ensino Secundário. Agora, com a licenciatura em Ciências da Comunicação, sei que esta escolha estava-me destinada. Agora, o meu objetivo é transmitir "o novo" para aqueles que não conseguem alcançá-lo com a palma da mão".