Onlife
Os desafios de uma
sociedade hiperconectada
A construção de uma sociedade informada e consciente é um desafio complexo e transversal a todos os atores que a compõem. Com o surgimento da Internet, o grau de participação online muda radicalmente e traz consigo desafios a uma geração hiperconectada. Divulgação de conteúdo íntimo, cyberbullying, devassa da vida privada, influências diversas. Será mesmo só este o mundo que nos rodeia?
Intimidade Pública:
quando a vida privada vira uma arma
Aos 13 anos, começou a usar as redes sociais e mal imaginava os perigos a que estava sujeita. Vídeos e imagens partilhadas em grupos secretos com milhares de utilizadores. Núria Silva tinha apenas 21 anos quando assistiu, em primeira mão, à exposição não consentida das suas imagens íntimas.
Um ano foi o tempo que precisou para ganhar coragem e sair à rua. Um segundo bastou para perder a certeza e desconfiar de todos os que a rodeiam. Núria Silva lembra-se de tudo detalhadamente, como se o tivesse vivido hoje. Poucas palavras conseguem expressar o “pesadelo que ainda perdura”.
Núria mostra-se confortável em falar sobre o sucedido, algo impensável no início. “Mantinha um relacionamento não assumido com um rapaz há três anos. De vez em quando, trocávamos uns vídeos mais íntimos pelo Instagram e apagávamos. Não era para partilhar com ninguém, era só diversão de casal”. No entanto, um dia os vídeos caem no esquecimento e não chegam a ser eliminados.
Tudo muda em outubro de 2019. Núria Silva descobre que os seus vídeos e fotografias estão expostos na Internet. Recusa-se a acreditar. Chovem pedidos no Instagram e as mensagens privadas são incontáveis. Estava perante o início de uma onda de ódio online.
“Recebi muitas mensagens insultuosas a dizer que eu era uma vergonha nacional, uma vergonha para os meus pais. Perguntavam quanto é que eu cobrava, como se eu fosse estar com as pessoas por dinheiro. Chamaram-me de tudo. Chantageavam-me e ameaçavam mostrar os vídeos a certas pessoas se eu não fizesse o que eles queriam".
Assombrada com aquela realidade, não demora muito a apresentar queixa na Polícia Judiciária. “Algumas mensagens eram em anónimo, as outras guardei e dei à polícia”. Contudo, o processo arrasta-se durante sete meses. Núria só vê ser feita alguma justiça em maio de 2020.
Deixando transparecer uma leve tristeza no rosto, revela que o seu conteúdo já estava a circular em grupos de Telegram. “Quando reportamos o uso de imagens sexuais, o site diz-se responsável pela plataforma e não pelo conteúdo que as pessoas lá passam”. Os vídeos estavam ainda publicados em sites pornográficos, como o PornHub. “A PJ conseguiu tirá-los de lá, mas foi extremamente difícil”.
A situação ganha proporções maiores a cada instante. “Os vídeos continuavam a ser facilmente partilhados”. Nada parece pôr fim ao pesadelo. “Não há nenhuma vigilância sobre os conteúdos que passam nos grupos de Telegram e Whatsapp”. Além disso, casos como o da Núria “não têm nenhuma lei específica no Código Penal”.
A partir de Lisboa, Hugo Cunha Lança, doutorado em Direito pela Universidade do Porto, esclarece que “não existe nenhum tipo penal específico” para a divulgação de conteúdos íntimos. “Tentaram corrigir isso há uns anos e o crime de violência doméstica, no Artigo 152º do Código Penal, passou a punir a divulgação de conteúdos íntimos, mas apenas dentro de uma relação, seja casamento, união de facto ou namoro. Quando é um terceiro a divulgar, o Artigo 152º não se aplica”.
Afastando a ideia de que poucas queixas formalizadas correspondem a um número reduzido de vítimas, o docente do Instituto Politécnico de Beja afirma que “o que vem cá para fora é só a ponta do iceberg”. Grande parte das vítimas não apresenta queixa, porque “fazê-las passar por todo um processo judicial é fazê-las passar por uma segunda violação”. Com uma visão contrária àquela que o Código Penal defende, Hugo Cunha Lança tem a certeza de que a pena a que os agressores estão sujeitos tem “um efeito dissuasor muito reduzido”, deixando-lhes margem para fazer o mesmo.
Em 2021 encerram o caso de Núria Silva. O responsável pela primeira partilha é ainda hoje desconhecido.
“Eu já não era eu, era a rapariga dos vídeos”
Dois anos depois, os vídeos continuam a ser comentados e falados. “Sabes aquela sensação de que toda a gente está a olhar para ti, porque te reconhece?”. Núria Silva esforça-se por afastar esse sentimento e sai de casa. Mas a intuição vira certeza quando uma noite, a sair do supermercado, um rapaz embriagado lhe agarra o braço e afirma, em frente aos amigos: “Tu és a rapariga dos vídeos”.
“Saí da minha faculdade, porque estava a ser muito comentada lá. No primeiro ano fiquei muito mais tempo em casa. Fui à minha médica, contei-lhe e pus baixa psicológica. Três meses depois, voltei ao trabalho, que era atendimento ao público. A única coisa que sentia era que as pessoas olhavam para mim, mas não era para mim, era para a pessoa que viam nos vídeos. Eu já não era eu, era a rapariga dos vídeos”.
Decide procurar apoio psicológico. Plimmm. Será mais uma mensagem de ódio? Sempre que olha para o telemóvel o medo aparece. “Isto baixa imenso a autoestima de uma pessoa. Acabamos por acreditar naquilo que nos estão a dizer. Foi muito complicado sair daí. Naquele momento não queria mais cá estar".
“Porque é que gravaste os vídeos?”. Esta é a pergunta que mais recebe diariamente. Ao ouvi-la, questiona-se se não tem direito à vida entre quatro paredes. “Como posso sentir-me culpada por ter uma vida sexual?”. Cansada de esconder o que lhe tinha acontecido, decide contar a sua história e partilhá-la no Instagram. “Sou eu que vou contar. Mais ninguém vai ter poder de chantagem sobre mim”.
Enquanto grava tem a certeza de que vai chegar a alguém que está na mesma situação. É precisamente isso que pretende. “Ninguém tem de passar por isto sozinho. Foi por isso que acabei por publicar”. O feedback das pessoas é muito positivo. Núria percebe que a Internet também tem quem a apoie. “Tive pessoas que pediram desculpa por terem partilhado. Outras agradeceram a partilha. Fez uma diferença gigante na minha vida”.
APAV recebe mais 12.005 denúncias em 2020
Gerido pela APAV desde janeiro de 2019, o serviço Linha Internet Segura contém duas áreas de intervenção: a Dimensão Helpline e a Dimensão Hotline. A primeira diz respeito ao apoio telefónico prestado às vítimas de cibercrime, a segunda à denúncia de conteúdos ilegais através de um formulário anónimo.
Os dados não deixam margem para dúvidas. O número de casos não tem parado de crescer e teve um aumento de 22 por cento entre 2019 e 2020, devido ao confinamento e à tendência crescente do uso de tecnologias. Desde aplicações de mensagens instantâneas, como o WhatsApp e o Telegram, a redes sociais, como o Facebook, o Twitter ou o Instagram, a sites de armazenamento e partilha de conteúdos, como o Discord. Todos os espaços podem comprometer a vida de uma pessoa.
“O pior é que somos autodestrutivos”, explica Núria. “Nos dois primeiros dias desliguei o telemóvel, não queria ver nada. A partir daí, senti a necessidade de ver, mesmo que fossem mensagens negativas. Até entrei nos grupos de Telegram para ver se publicavam vídeos meus. Queria, a todo o custo, saber onde circulavam".
O controlo exagerado dá azo a uma obsessão, que a levou a descobrir um novo mundo de violência sexual online. A dimensão e o alcance daqueles grupos ultrapassavam a sua imaginação. “Existem vários tipos de grupos, cada um com a sua comunidade. O grupo mais pequeno em que estive chamava-se «Chicha Nacional», até tinha uma foto de capa minha. Quando saí o grupo já tinha 10 mil participantes. O maior em que estive tinha cerca de 80 mil. São mesmo muitas pessoas e passa de tudo, desde vídeos pornográficos a vídeos fabricados. Aquilo é literalmente um talho. Não tinha noção que isto existia, antes de entrar nesse mundo”.
Relatando a sua experiência de infiltrada, Núria salienta que a maioria dos participantes eram rapazes, logo grande parte do conteúdo que circulava era de mulheres. Nem tudo é o que parece. Segundo as estatísticas da Linha Internet Segura da APAV correspondentes a 2021, das 459 chamadas da Dimensão Helpline, 201 eram de vítimas do sexo feminino, seguindo-se de 194 do sexo masculino.
A história de Núria é apenas uma de muitas. Em março de 2022, começa a circular uma imagem íntima de uma rapariga de 16 anos. Há uma grande controvérsia em torno da fotografia, porque acredita-se ser de Margarida Corceiro, atriz e modelo portuguesa. Surgem várias teorias de quem possa ser o responsável por divulgar o conteúdo.
Após alguns dias, a jovem de 19 anos decide recorrer às redes sociais para alertar as pessoas das consequências que uma partilha pode ter, apelando, com uma réstia de esperança, a que cada um repense os seus atos online. “Que a minha partilha ajude a refletir sobre este tema e que permita que as centenas de pessoas a quem isto já aconteceu possam ser percebidas e não julgadas”.
Mensagem que Margarida Corceiro deixou no seu Instagram
Mensagem que Margarida Corceiro deixou no seu Instagram
Numa era assinalada pelo surgimento de múltiplos movimentos feministas, em outubro de 2020, nasce o #NãoPartilhes. Criado por vítimas que decidiram quebrar a corrente e reivindicar o direito à sua intimidade, o movimento pretende marcar o fim da partilha de conteúdo sem consentimento.
“Após uma fase difícil, deixamos de confiar. Eu não sei quem partilhou, quem viu, quem comentou, por isso prefiro dizer que foi toda a gente e proteger-me de mais desilusões”, conta Núria. Conviveu com esta perceção durante muito tempo, mas chegou a um ponto que precisava de falar com alguém que tivesse passado pelo mesmo. “Quando a Inês e a Guida criaram o movimento, estava a acontecer muita coisa nos grupos de Telegram. Todos os dias se publicavam fotos e vídeos nossos. Elas chatearam-se e partilharam a página para apoiar as pessoas”.
Atualmente, a conta de Instagram da Associação Não Partilhes conta com cerca de 42 milhões de seguidores e o seu espectro de influência continua a crescer.
Cyberbullying
O ódio por detrás de um ecrã
“Nunca associamos a Cyberbullying, quando acontece connosco”. Insultos, comentários ofensivos e ódio. Para João Carvalho tudo parece ser normal nas redes sociais. Do perfil anónimo ao perfil público. Como deve uma pessoa reagir?
O Jardim do Príncipe, em Lisboa, é um ponto de encontro para muitas pessoas. Mães, pais, amigos e crianças. Todos aproveitam o bom tempo para dar um passeio de fim de tarde. João Carvalho está sentado num banco de madeira. Enquanto lê, relembra o primeiro contacto com o mundo digital.
Começou a usar as redes sociais aos 13 anos e, rapidamente, experienciou ataques homofóbicos online. Não lhes dava grande importância. Contudo, aos 17 anos, num período de mais questionamento, “já não sabia lidar tão bem” com a situação. “Porque é que esta pessoa, que eu não conheço de lado nenhum, está a agir assim comigo?”.
Na adolescência, “o processo de crescimento é um desafio”. Raquel Barbosa, investigadora no Centro de Psicologia da Universidade do Porto, esclarece que “é muito fácil as pessoas criticarem” sem dar a cara. “Os agressores, normalmente, não estão bem consigo próprios e ao transpor as possíveis inseguranças para outros indivíduos, podem comprometer o seu desenvolvimento”.
Com o passar dos anos, João torna-se mais vocal. “Sempre tive uma perspetiva mais ativista e crítica da sociedade. Apercebi-me que a forma como falava levava as pessoas a atacar-me pessoalmente”. Foi ao tentar entender como se sentia que aprendeu a lidar com as emoções despoletadas pelos discursos de ódio.
“Comecei por desassociar o que as pessoas diziam e a compreender que isto parte do outro lado e não do meu. Claramente, é um problema deles, porque de certeza que as pessoas têm algo mais interessante para fazer do que estar a discutir com um estranho na internet. O debate é sempre bom, mas há momentos em que pensas que é só ridículo as pessoas estarem a projetar uma insegurança sua nos outros”.
A orientação sexual nunca foi uma questão para si. Mas, no mundo online, era visto como um problema. “Existiam comentários tão gráficos e tão criativos que me davam nojo. As coisas que as pessoas conseguem pôr na Internet chegam a um nível abismal. Eu ficava perplexo e enjoado com o que me diziam”.
João não associava os ataques que sofria online a Cyberbullying. “Falamos tanto sobre o tema e chamamos tanto à atenção, mas, quando nos acontece, nunca associamos. Sempre senti o ataque pessoal, mas ao mesmo tempo sempre tentei pensar que era outra coisa”.
Luana Camilo Miranda analisa este assunto na sua Dissertação de Mestrado. A partir dos Açores, explica que Cyberbullying é um tipo de bullying, feito com recurso a dispositivos eletrónicos. “Trata-se de um ato agressivo e repetitivo, dirigido a outra pessoa, que envolve uma discrepância de poder, em que o agressor se sobrepõe à vítima”.
João sabe que as pessoas que se dirigiam a ele com uma atitude agressiva e homofóbica não conheciam a realidade de uma pessoa queer. “Constroem apenas a imagem que têm da sociedade e dos média, que é heteronormativa, e tentam atacar o que é diferente”.
Da autodescoberta ao ativismo online
João sentia-se sozinho. “Reconheço que faço parte de uma minoria. Na minha infância, em 2009, nunca tinha visto uma pessoa gay na televisão. Nunca tinha visto representatividade. Automaticamente já me sentia excluído”. Apesar dos constrangimentos, a Internet surge também como um auxílio à autodescoberta e como uma ferramenta fundamental no ativismo online.
“O ativismo nas redes sociais é importante, porque nem toda a gente mora em Lisboa, nem toda a gente tem acesso aos espaços mais progressistas e a uma discussão. Imagino o que é ser um jovem queer nos confins nórdicos de uma aldeia, onde já há poucos jovens. Se não fossem as redes, não sei como essas pessoas iriam crescer”.
A Internet tem a capacidade de eliminar barreiras geográficas, possibilitando a criação de bolhas mais inclusivas no universo digital. É através de pessoas que tentam combater a “ignorância” que também se formam cidadãos que aceitam a diferença.
“Há pessoas que nunca tiveram uma conversa séria com alguém, que nunca foram desafiadas a repensar e a criticar a sua própria ideologia, pensamento, discurso. Basta um comentário, alguma paciência e pode ser que se repense antes de se destilar ódio”. Nem sempre é fácil. “Continuas a levar com aqueles ataques e comentários ignorantes. Mas, quando as pessoas respondem com ódio e não são respondidas de volta com esse ódio, ficam chocadas e não sabem lidar com alguém que está a ser respeitoso”.
A natureza mais revolucionária de João faz com que dedique o seu tempo livre a combater comentários desinformados. “Não somos professores permanentes na sociedade e não temos de estar constantemente a relembrar às pessoas o porquê de ter direito a existir e a identificar-me como me identifico, mas vale sempre a pena surpreender a pessoa pela positiva”.
Aumento da criminalidade virtual
Num mundo altamente digitalizado, a criminalidade virtual é cada vez mais recorrente. Portugal não foge à regra. Vídeos sexuais divulgados, insultos, tortura psicológica. O que têm estes casos em comum? Todos se passam na internet e, por isso, são apelidados de Cyberbullying.
Segundo os dados divulgados pela Polícia de Segurança Pública, no âmbito da Comemoração do Dia Europeu da Internet Mais Segura, o número de queixas relativas a Cyberbullying tem crescido de ano para ano. Mas o que é que estes dados refletem? “Que as pessoas estão cada vez mais conscientes e deixam de aceitar este tipo de comportamento”, explica Luana Camilo Miranda.
Entre 2020 e 2021, as Equipas do Programa Escola Segura da PSP realizaram ações grupais de sensibilização junto da comunidade escolar. De uma variedade de temas apresentados, 3 100 correspondem à temática do Bullying e Cyberbullying e 553 à Utilização de Novas Tecnologias.
Espelho meu,
há alguém mais bonito do que eu?
“Só vais comer isso?”. Durante quatro anos, foi uma das frases que Sofia Pires mais ouviu. O primeiro contacto com distúrbios alimentares começou no oitavo ano e prolongou-se até ao final do secundário. A Internet foi um dos principais motores para o desenvolvimento de anorexia. “Todo este mundo das redes sociais faz associar uma pessoa bem sucedida e séria a uma pessoa magra, que consegue controlar as suas vontades e, ao mesmo tempo, ter foco e objetivos”.
Sofia ambicionava ser bailarina. Aos 14 anos, percebeu que não era chamada para determinados espetáculos por não ser “nem tão magra, nem tão baixa como as outras raparigas”. Era sempre escolhida para pegar nas colegas mais leves. “Comecei a sentir-me pressionada a perder peso, porque achava que era uma necessidade para alcançar os meus sonhos”.
Nas redes sociais, procurava inspiração em várias bailarinas e via muitos vídeos no Youtube sobre ballet. “Eu seguia, principalmente, bailarinas russas, porque os meus professores diziam que eram o modelo da dança”. Para Sofia, a única forma de ser aceite numa boa companhia de ballet era ser exatamente igual a elas.
Além da dança, tinha muito interesse na política e no associativismo. As suas referências femininas em lugares de liderança enquadravam-se no estereótipo de beleza. “Sempre achei que se não fosse magrinha como muitas representantes políticas não ia ser respeitada. Ir para um debate mais magrinha fazia-me ficar mais segura das minhas capacidades intelectuais. Agora sei que não há nenhuma relação entre uma coisa e outra, mas as redes sociais levavam-me a pensar que sim”.
"Eu sabia que não me estava a alimentar de forma saudável e que me estava a colocar numa situação potencialmente perigosa, mas tu sentes um pouco de orgulho para alcançares aquilo que tu tens como objetivo."
“Uma coisa que me ajudou muito foi mudar as pessoas que seguia. Agora sigo um nicho que é mais inclusivo”
Sofia seguia páginas sobre como perder peso, “que não eram benéficas para a saúde”. Nestes perfis encontrava tabelas que mencionavam as calorias de cada alimento, entre outras dicas. Quanto mais pesquisava, mais o algoritmo lhe sugeria este tipo de conteúdo. “Não eram necessariamente coisas chocantes, mas por aparecerem com alguma frequência influenciavam”.
Bruno Fernandes, professor e investigador na Escola de Engenharia Informática da Universidade do Minho, explica que um algoritmo é a base de funcionamento de qualquer rede social e permite a personalização da experiência de cada pessoa. "As empresas das redes sociais criam perfis dos utilizadores, elas veem que tipo de produtos andaste a ver. Com essa informação, começam a direcionar-te coisas que sabem que, à partida, vais querer."
“Os meus pais percebiam. Olhavam para o meu prato e viam que eu não estava a comer, mas era muito mais numa postura de chamar à atenção do que de tentar ajudar. Os indícios eram bastante óbvios. Eu sentia que toda a gente estava a olhar para o meu prato e isso deixava-me mesmo irritada”, conta Sofia.
Por ter interesse em política e ativismo, também consumia muito conteúdo ligado ao feminismo. Através destas pesquisas, começou a compreender a realidade das perturbações de comportamento alimentar (PCA), que, em média, afetam mais as mulheres. Estima-se que uma em cada cinco mulheres e um em cada sete homens experienciem um distúrbio alimentar até aos 40 anos.
Eva Prieto não foge às estatísticas. Com apenas sete anos começou a preocupar-se com o corpo. “O McDonalds tinha umas coisinhas com as calorias e isso ficou-me na cabeça”. A partir do sétimo ano percebeu que não gostava “mesmo nada” do que via no espelho. Chegou a ficar um verão inteiro fechada em casa. A mãe levou-a a um psiquiatra, que a encaminhou para uma nutricionista.
“Ao entrar no oitavo ano, já não queria saber do que a nutricionista dizia e comecei a fazer as minhas próprias dietas. Nesta fase estava bem, mas no décimo ano senti uma pressão de ter aquele “glow up” de entrada no secundário e fazia dietas ainda mais restritivas. Nas férias depois do décimo ano disse que ia ser o verão em que ia perder mais peso. Perdi 40 kg”.
Eva sonhava ser modelo. “Sentia a pressão de usar as redes sociais para alcançar o que eu queria, mas isso levou-me a algo tóxico”. Depois desse verão, foi para a escola e todos os colegas a elogiaram. Só as pessoas mais próximas é que perceberam que algo não estava bem. Foi aqui que começaram a desconfiar de anorexia. “Estava cada vez mais motivada para perder peso. Mesmo que tivesse fome, não comia nem uma bolacha, porque tinha medo de engordar 10 kg num dia”.
"Por não ter os melhores antecedentes", as redes sociais agravaram a sua condição. Eva tirava imensas fotos para mostrar que estava a ficar “mais bonita” e comparava-se muito aos perfis online de outras pessoas.
Como lidar com um distúrbio alimentar na era digital?
Sofia Pires começou a usar as redes sociais com mais consciência a partir do 11º ano. “Uma coisa que me ajudou muito foi mudar as pessoas que seguia”. Atualmente, tem como inspiração pessoas que se focam mais nas capacidades do indivíduo do que na sua imagem. “Agora sigo um nicho que é mais inclusivo”.
Ao contrário de Sofia, Eva ainda está em fase de recuperação. Em 2021, passou de anorexia para bulimia. Tratam-se de comportamentos de compensação para aliviar o sentimento de culpa. “Comes mais, vomitas para compensar”. Além disso, também desenvolveu POC (Perturbação Obsessiva Compulsiva), porque os rituais a ajudavam a acalmar. “Se eu desse não sei quantos passos eu não engordava”.
A pandemia da covid-19 teve um grande impacto na vida de crianças e adolescentes com perturbações de comportamento alimentar (PCA). Um estudo observacional conduzido por Wendy Spettigue comparou dois grupos de adolescentes com PCA: um pré-pandemia Covid-19 (abril - outubro de 2019) e outro durante (abril - outubro de 2020). Concluiu-se que 40 por cento do grupo que experienciou a pandemia reportou uma intensificação da PCA.
Eva começou a adotar algumas estratégias para melhorar a sua relação com as redes sociais. “Eu agora uso o Instagram para colocar stories, meter as fotos que tenho de publicar e falar com as pessoas. Sigo mais contas de viagens do que propriamente influencers. Já não me causa tanto impacto. Também já sou mais madura”.
Direitos de autor: Matilde Barja
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Direitos de autor: Cláudia Araújo | Sofia Pires
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Direitos de autor: Matilde Barja | Sofia Pires
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Direitos de autor: Matilde Barja | Eva Prieto
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Mudança de Padrões
Raquel Barbosa, investigadora no Centro de Psicologia da Universidade do Porto, explica que o ideal de beleza, principalmente das mulheres, foi sofrendo oscilações ao longo da história, mas está sempre associado a várias exigências. “Somos e vestimos de acordo com a cultura e as expectativas sociais”. Nos anos 60 surgiu a moda do corpo “exageradamente magro”, com a popularização da modelo Twiggy. “Este tipo de ideal fomentou uma fase difícil em termos de ascensão de perturbações alimentares”.
Sofia Pires acredita que, atualmente, a moda é ser diferente. “Isto faz com que seja mais fácil para as pessoas encontrarem alguém com quem se identifiquem”. Porém, no ballet a realidade não é a mesma. “O biótipo considerado ideal no contexto do ballet não vai tender a mudar, porque é uma arte secular e conservadora, no sentido em que tenta proteger ao máximo tradições e glorificar o antigamente”.
“Temos de ter uma boa relação com nós mesmos para termos uma boa relação com as redes sociais.”
Sofia deposita as suas esperanças na educação. ”Uma pessoa que não tem informação em relação a distúrbios alimentares e ao uso saudável da Internet não terá uma recuperação tão rápida como a minha”. Não culpa a geração dos pais, pois “não estão tão habituados a lidar com as redes sociais, nem tão conscientes dos perigos mais subtis que existem na Internet”.
“Há vários pais que dão o telemóvel muito cedo aos filhos e isso não é correto, porque entram prematuramente num mundo que não é o real. Nós antes brincávamos mais”. Eva considera que as famílias têm menos tempo e paciência para dedicar aos filhos e que isso se reflete na formação da sua personalidade e autoestima. “Na infância é sempre importante criar as bases necessárias para sermos mais fortes. Em adultos podemos fazê-lo, mas é mais difícil e sofremos mais”.
Boas Influências
O lado saudável das redes
Feedback, resultados e estatísticas. Tudo é levado em conta quando alguém tenta fazer das redes sociais a sua fonte principal de rendimento. Mas que desafios surgem no dia a dia de uma influencer?
Na rua transversal à Escola EB2/3 da Maia encontramos o Complexo de Ténis, um sítio movimentado que recebe os preparativos para um evento internacional de hip hop. À entrada somos surpreendidos com um teto repleto de bandeiras, mas o que chama mais à atenção são as cores contrastantes do campo. Chão cor de telha e bancada azul. Todo o ambiente promete um bom espetáculo.
Maria Melo Falcão é bailarina e criadora de conteúdo nas redes sociais. Através da sua rotina de exercício físico e de receitas 100 por cento vegetais, planta a semente da procura pelo bem-estar. A jornada online iniciou-se em 2019, quando sentiu a necessidade de ir “à procura de outras coisas”.
Aliado à paixão pela dança, sempre gostou de cozinhar. Quando era estudante fazia bolos e bolachas com a mãe para conseguir pagar os estudos. “De uma forma natural, comecei a partilhar as minhas refeições e os meus treinos, uma vez que os treinos já eram a minha preparação física para a dança”. O feedback online foi muito positivo e isso provou-lhe que tinha os ingredientes certos para ser bem sucedida nas redes sociais.
Mais tarde, criou uma conta no Youtube. A sugestão veio de uma amiga que viu na plataforma uma oportunidade para Maria chegar a mais pessoas. Contudo, as câmaras podem ser intimidantes. “No início, fiquei surpreendida com a ideia. Sou bastante introvertida, é por isso que me comunico através da dança, uma forma de me exprimir sem usar a palavra”.
A vontade foi crescendo cada vez mais, porque os vídeos que consumia no Youtube a ajudavam muito em questões relacionadas com a saúde mental e com a alimentação. Sem grande experiência ou material para gravação, Maria lança-se ao desafio sem medo. Começa a encarar a criação da sua marca como uma prioridade, investindo, sempre que possível, em equipamento técnico.
A falta de tempo para conciliar as diferentes atividades comprometeu o desenvolvimento do canal no Youtube. Embora acredite que este seja uma melhor ferramenta para interagir com o público, Maria focou-se mais no Instagram, onde começou a partilhar conteúdo do seu interesse. “Uma parte era sobre alimentação saudável e a outra sobre treinos”.
Recentemente, criou o «(Re)encontra a Tua Energia», o seu maior projeto até ao momento, com a duração de seis semanas. A criação de um programa de alimentação 100 por cento vegetal e treinos intensivos surge para auxiliar os seguidores na adoção de um estilo de vida mais saudável. “Havia a necessidade de um acompanhamento para que as pessoas pudessem digerir, assimilar e comprometer-se, algo que, muitas vezes, é difícil”.
A promoção de modos de vida mais saudáveis nas redes tornou-se fundamental num período pós-pandémico. A população ligou-se ainda mais à tecnologia e aos influencers, porque tinha mais tempo para navegar na Internet. Ana Jorge, investigadora dos Média e de Estudos Culturais, considera que não podemos esperar que a política de saúde pública contra a obesidade e pela saúde e bem-estar da população dependa apenas dos criadores de conteúdo.
“Certamente que os influencers o fazem de bom grado e pode ser uma mensagem positiva para criar um espírito de comunidade. Mas, esta pessoa que faz parte de um movimento mais global, relacionado com a saúde e o bem-estar, está-nos a dizer que nós somos os responsáveis de zelar pelo nosso bem, porque os serviços de saúde cada vez menos conseguem apoiar tudo para todos”, explica Ana Jorge.
“A parte boa das redes sociais vem de pessoas como a Maria Falcão”
Através do feedback, Maria Falcão conseguia aperceber-se das dúvidas que iam surgindo e dos preconceitos que existiam em relação à alimentação vegetal, por parte dos seus seguidores. Assim, apostando na criação de uma ligação forte, começou a produzir conteúdo para que as pessoas o pudessem usar de forma útil e informada.
Querendo contrariar aquilo que aconteceu consigo, Maria dá ao seu público as ferramentas necessárias para mudar o corpo de uma maneira saudável e vegetal. “Muitas vezes não faço as receitas só com o propósito de ser saudável, mas para também mostrar às pessoas que dá para fazer coisas muito idênticas, só que vegetais. Fico mesmo feliz que as pessoas entendam o quão saborosa uma alimentação vegetal pode ser”.
Durante o período em que esteve de baixa, Cândida Ramos dedicou mais tempo às redes sociais. “Sempre pesquisei alternativas na alimentação, porque sou celíaca, não consumo nada com glúten. Chegou a uma altura que decidi ser vegetariana”. Conheceu Maria Falcão através dos vídeos de Youtube e logo adotou a mesma rotina matinal. “Ela ajudou-me imenso nessa fase da minha vida. Cheguei a enviar-lhe uma mensagem a dizer isso”. Confessa ainda que cumpriu os objetivos que traçou graças à ajuda da criadora de conteúdos.
As preocupações de quem gere uma rede social
Antes de entrar para as plataformas digitais, Maria Melo Falcão começou por estudar o mundo das redes sociais e as estratégias para se lá crescer. O facto de ser um mercado muito incerto, que está dependente de coisas que não controla, é motivo suficiente para a deixar inquieta.
A pressão em estar constantemente a fazer conteúdo que lhe dê gosto, que agrade às pessoas e que tenha resultados é difícil de gerir. “Obviamente que a qualidade do que faço vai ter influência, mas é algo muito volátil”. Por isso, para evitar sentir-se “sugada pelo telemóvel” ao fazer “scroll” desconecta-se.
Mas nem sempre é fácil moderar o uso das redes sociais. A sociedade atual vive num limbo entre o online e o offline. Ana Jorge assegura que “este problema existe em qualquer grupo etário ou mesmo social, embora haja mais a tendência de se pensar que mais educação representa mais capacidade”.