Estilhaços, papel e memória
Como resiste a memória da guerra colonial portuguesa?
No mar que são as memórias, muito se perdeu, mas resiste a vontade de preservar e não deixar morrer os tempos do Ultramar.
Gavetas, estantes e baús empoeirados guardam as recordações dos jovens que outrora atravessaram oceanos em nome de uma pátria.
Entre 1961 e 1974 cerca de 800 mil jovens portugueses partiram para combater nas colónias africanas.
Hoje, volvidos 60 anos, a guerra mantém-se viva nas memórias dos que a viveram na pele e nos arquivos que restam.
É recostado no banco de madeira do alpendre de sua casa que Manuel Vieira embarca, com o seu estimado álbum fotográfico, numa viagem até ao ano de 1968. Tinha 21 anos. Estava na flor da idade e, por isso, pronto para o inevitável aos jovens rapazes daquele tempo: a guerra.
De repente, é como se recebesse novamente a notícia que definiria os contornos do seu destino para sempre: saber que tinha de prestar o serviço militar obrigatório significava forçosamente a sua ida para o Ultramar. “Quando soube fiquei triste porque ia para a guerra, sabia que ia combater. Tudo podia acontecer. A gente quando é novo nem pensa bem”.
Os pensamentos até à partida estavam presos à família e amigos que ficavam e que não quis que o fossem ver partir a 23 de julho de 1968. Recorda, com detalhe, como e onde estava quando o paquete Vera Cruz abandonou o Cais da Rocha de Conde d’Óbidos: “Eu estava lá mais longe, a olhar para o fundo do mar. Os meus não foram, eu não quis”.
Mais abaixo, à entrada do cais, estava Fernando Carvalho. Casado há oito dias, despedia-se da esposa. “A minha mulher queria casar antes de eu ir embora mas eu não queria. Não sabia se voltava e não valia a pena ela ficar viúva”.
Manuel e Fernando pertenciam à mesma companhia: a Companhia de Caçadores 2418 (C.Caç 2418). Fernando era furriel e Manuel soldado atirador e juntos, com os restantes “camaradas”, seguiam viagem para terras moçambicanas.
Naquele barco, os quartos eram dos oficiais e sargentos e o porão dos soldados que dormiam em camas umas em cima das outras. A Manuel ficou-lhe na memória o balançar do Vera Cruz e os enjoos constantes, enquanto Fernando revive a custo os “vinte e tal dias” passados a bordo com “aquele fedor enorme”.
1ª paragem
LUANDA
01Ago68
Um dia em Luanda que Fernando relembra como “uma cidade muito dinâmica e ativa, com viaturas e pessoas num rodopiar intenso, mas parecendo ignorar a existência da guerra”.
2.ª paragem
LOURENÇO MARQUES (atual Maputo)
08Ago68
Chegados a Moçambique e a Lourenço Marques, a ordem era geral: soldados, oficiais e sargentos deviam descer para desfilar.
Para Fernando Carvalho era clara a indiferença da população daquela capital a “dois mil quilómetros da guerra”.
Hoje parece unânime entre os veteranos:
“Lá era lindo, no mato é que não”.
“No mato a história era outra”.
3ª paragem
NACALA
13Ago68
A viagem seguia por terra.
De Nacala a Massangulo eram 48 quilómetros numa só carruagem, uns em cima dos outros. Fernando tentava dormir em “qualquer lugar e de qualquer maneira”.
4.ª paragem
MASSANGULO
15Ago68
Aplaudidos à passagem pelas povoações de Chamande e Massangulo, a Companhia de Manuel e Fernando fez o aquartelamento na base de Catur já de noite.
A aguardar chegada estava a companhia anterior pronta para a passagem de testemunho, à volta de “muitas fogueiras acesas”.
Moçambique foi a segunda frente que mais mobilizou companhias no decorrer de todo o conflito e a segunda que registou o maior número de mortes no exército, perfazendo o total de três mil e três.
Em Catur, Carvalho era o responsável pela secção de justiça. Tratava de todos os processos, desde perdas de viaturas, a feridos, mortos e atos de indisciplina. "Andava na guerra, no mato, e em vez de ficar dois dias de descanso a beber umas cervejolas e a comer marisco, lá ia eu para a secretária fazer uns processos”.
Fernando Carvalho, no exercício das suas funções na secção da justiça.
Mesmo a dez mil quilómetros da metrópole, na qualidade de furriel, Fernando sentia as marcas do regime. Quanto a números, admite que lhe chegava informação, mas nem sempre a mais correta ou fidedigna. "Diziam que morreram três e, se calhar, tinham sido 30”.
"Os números da guerra colonial são poucos e devem ser multiplicados várias vezes”, salienta o especialista em História Imperial e Colonial, José Pedro Monteiro. “Devemos desconfiar sempre dos números. Os conflitos coloniais são sujos e há muita informação que não sai cá para fora, muita operação encoberta. O custo humano da guerra colonial portuguesa é algo que ainda está por saber na sua plenitude”.
A natureza do regime da época é, para o historiador, a principal causa para a falta de dados: “Acredito que será impossível saber os números numa guerra em pleno estado ditatorial”.
"O Estado Novo fazia campanhas mediáticas intensas para tentar demonstrar o caráter selvagem dos movimentos de libertação e apagar por completo qualquer acusação de violência que pudesse ser dirigida ao regime"
Para o neurocientista Tiago Gil Oliveira, a realidade em que a população portuguesa vivia é passível de afetar “os mecanismos de veiculação de memória”, podendo “mesmo passar por uma confabulação de eventos que não aconteceram de facto e que uma pessoa se convence que aconteceram, de modo a conseguir lidar com as situações. Mas é preciso avaliar tudo de um modo cuidado”.
Na época, “na televisão, jornais e rádio, dizia-se tanto que aquilo era território português” que Fernando Carvalho, contra vontade, sentia-se impulsionado perante toda a propaganda.
Na companhia falavam entre eles quando podiam ou quando as paredes não tinham ouvidos. E diziam: “Estamos aqui a mais. Isto não nos pertence. Víamos como aquela gente vivia, tinha o seu jeito de estar, o seu jeito de viver e era-lhes imposta outra filosofia” e tudo isso junto “criou uma grande revolta”, silenciada nas cartas.
No capim traçavam-se trilhos e caminhos sem fim.
Quando dava, inventavam letras e cantavam para manter o ânimo.
Andavam dias sob o sol escaldante e a chuva torrencial.
Fernando faz questão de se inclinar no cadeirão para relatar com detalhe uma operação em que choveu quatro dias consecutivos: “imagina eu encostado a uma árvore a tentar dormir, outro em cima de uma pedra e, no dia seguinte, continuar a caminhar com a roupa toda molhada”.
Tal como o seu furriel, Manuel revive algumas dessas passagens: “Atravessávamos rios carregados, com a água pelo pescoço. Uma vez tirei as botas porque tinha os pés molhados e pu-las ao ombro. As filhas da mãe desataram-se e caíram à água… tive de nadar e ir atrás delas. Na altura tinha de andar três dias a pé, não podia ser descalço”.
O soldado não esquece as vezes em que teve de beber dos charcos da chuva. “Passando a hora de comer, não há mais fome. A sede fica a moer dentro da gente. Às vezes só queríamos molhar a boca para ter saliva, mas só podíamos levar um cantil de litro porque não aguentávamos o peso às costas”.
Com o revisitar de memórias dos tempos de guerra, os dedos grossos de Manuel parecem mais inquietos que o próprio. Batem, ritmadamente, no corrimão que limita o alpendre e alcançam algo já quase perdido com o passar dos anos.
Em Moçambique, o tempo que não passavam “p’ra lá e p’ra cá” em combate era para “descansar, conversar e beber umas cervejinhas porque lá era muito calor”.
Mas nem sempre: “Às vezes, também íamos passear pelas povoações. Eles [povoações autóctones] tinham os seus batuques e amassavam a mandioca. Nós aprendíamos a fazer com eles e também tocávamos. Era outra forma de nos distrairmos”.
“Eles eram nossos amigos - os 'turras'. Diziam que eles eram 'turras', mas, afinal, não se sabe se eram eles ou se éramos nós. Eles estavam na terra deles”
A Fernando Carvalho não faltam igualmente memórias dos tempos vividos com as “gentes” dos lugares por onde passaram.
Apesar de tudo, desabafa que nenhuma outra povoação criou laços com a Companhia de Caçadores 2418 como a de Massangulo. “Quando deixamos Massangulo e partimos para Maniamba, lembro-me que a população veio toda para a estrada bater palmas. Soube mais tarde que éramos muito admirados. Posso até dizer que éramos amados ali”.
É com o olhar enternecido que aponta mais uma prova da boa relação com a população: “O Lopes era o enfermeiro de serviço mas também médico e psicólogo. Todos os dias de manhã estava lá uma fila de gente daquela aldeia para ser tratada”. “Esta relação foi muito importante”, completa, saudoso.
Remorsos não guarda. “Numa guerra há dois polos, um contra o outro, e tudo o que se possa fazer pode-se dizer que é autodefesa”.
“Eu mato antes que me matem a mim”
Fernando volta a encostar-se.
Não gosta de falar “dessas coisas”.
“O dia mais alegre da minha vida”
É no ponto mais alto da Serra da Cabreira, para onde tem vista privilegiada de casa, que Manuel revê, no azul do céu, o rio Tejo aquando do seu regresso a Portugal.
Parte dali para recordar aquele que carinhosamente apelida de:
“O dia mais alegre da minha vida”.
Passaram dois anos desde a partida para Moçambique. Da viagem em que embarcou com 21 anos, regressa com 23.
São sete horas da manhã do dia 16 de setembro de 1970.
O Niassa arrasta-se já pelas águas do Tejo e o alívio enche corredores, proa e porão na mesma intensidade que os enjoos provocados pela ondulação excessiva.
À distância de 54 anos, o que ficou a Manuel daquela chegada “de madrugada” foi apenas o nervosismo e o avistar de “uns quantos à espera no cais de Alcântara”, mas nenhum ser “dos seus”. “Nunca lhes disse quando voltava. Podia atrasar e eu não queria preocupar ninguém”.
Fernando, por outro lado, sabia que o aguardava no cais a esposa “Nanda”. Tinha então de procurar a bandeira que a distinguia entre as centenas que se amontoavam ali, em puro êxtase.
Finalmente arrastavam-se as escadas para a descida dos soldados. Chegou “o momento mais aguardado”.
O abraço de Fernando e Fernanda (Nanda) à chegada a Lisboa
Hoje, a lucidez de quase 60 anos permite chegar a conclusões. Manuel, é claro e direto:
“Roubaram-me dois anos da minha juventude, mas, graças a deus, já passou e ainda cá estou”
“Estavam-nos a mandar para a morte, estávamos a ser carne para canhão”
Um ano após o regresso de Manuel e Fernando, foi a vez de Abel Fortuna embarcar para a Guiné-Bissau, como quem “entra num abismo”.
Aquele embarque marcaria as memórias dos tempos vindouros. “Quando o barco saiu do cais de Alcântara, em Lisboa, aquilo parecia um inferno. O choro, os gritos, os lenços a acenar no alto”, foi uma imagem que lhe ficou marcada para sempre como “a primeira visão da guerra colonial”.
Antes de partir, Abel estava com um camarada a assistir ao espetáculo. Meio século mais tarde, a imagem do embarque continua viva e fresca na sua memória. “Se falar muito nisso é como se estivesse a ver ainda esse cenário de horror”.
Os rostos queridos dos seus familiares não constam naquele quadro. Tal como Manuel Vieira, a família de Abel não o viu partir, mas também nunca lhes falou sobre o destino. Antes e aos poucos, nas visitas que fazia a casa, foi levando os seus pertences, os mesmos que levaria para África mais tarde. Despediu-se dos pais e da namorada da altura, sem nunca dar a entender que ia para a guerra. “Eu estava-me a despedir, mas eles não. Eles não sabiam que já não voltava a casa”.
O barco desatracou da metrópole rumo à Guiné. Quando regressasse, poucos meses depois, Abel Fortuna não voltaria a ser o mesmo.
A viagem para aquela terra longínqua, conhecida apenas em conversas, refletiu-se em noitadas de bingo e no “hábito de beber”.
O ex-combatente não nega as dificuldades que encontrou quando pousou em território guineense pela primeira vez: “Era um país muito quente e húmido. Assim que saí do barco senti-me asfixiado, mas fui fazendo a minha vida na guerra como podia, de forma a que os dias passassem depressa”.
Abel Fortuna mantinha contacto com a família através de aerogramas. Dizia que estava tudo bem, que a Guiné era um paraíso. Omitia, porém, o palco de guerra que era agora a sua casa, reservando esses relatos para a sua madrinha de guerra. “Escrevia a história verdadeira do que se estava a passar para alguém que não conhecia, para a minha madrinha de guerra."
"Contava a guerra como era efetivamente.”
Entre 1961 e 1974, o correio transportado entre a metrópole e as colónias atingiu um volume aproximado de 21 mil toneladas: a maioria era entre os militares e as suas famílias.
Os soldados escreviam sobretudo para mães, namoradas, noivas e madrinhas de guerra. Era também delas que recebiam mais cartas. Joana Pontes, historiadora e autora do livro “Sinais de Vida – Cartas da Guerra 1961-1974”, justifica esta realidade recorrendo aos “papéis sociais da altura, em que as mães eram as grandes mediadoras da família”, ainda que em Portugal as mulheres constituíssem a maioria da população analfabeta.
Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que, no ano de 1970, cerca de um milhão e 700 mil portugueses residentes não sabia ler ou escrever.
Em muitos casos, como explica Joana Pontes, nas aldeias e bairros, “havia alguém que escrevia e lia as cartas àqueles que não conseguissem”. A quilómetros de distância, em território africano, esta função era ocupada pelos intermediários de guerra ou pelos próprios militares que se ajudavam entre si.
Abel ainda tinha pela frente 18 meses de combate naquele território que lhe era estranho.
Ficou apenas sete.
Uma operação militar, aos 21 anos, acabaria por marcar o seu destino e o seu corpo.
O dia ficar-lhe-ia marcado para sempre na memória:
7 de novembro de 1971
Ainda hoje Abel guarda a convicção de que “a guerra não fazia sentido” e a imagem vívida de um combate injusto.
Quando chegou à metrópole, ficou instalado no Hospital Militar Principal, em Lisboa. Nessa altura conheceu “dois camaradas de guerra, um cego e outro sem mãos” que lhe deram uma solução, “uma injeção de ânimo”: fazer um tratamento oftalmológico numa clínica em Barcelona.
A ideia acalentou e deu esperança ao soldado, mas por pouco tempo. O jovem precisava de uma carta do seu médico para receber o tratamento, algo que não aconteceria com facilidade. “Quando disse ao médico que queria ir para Barcelona tratar-me, ele insultou-me. Disse que ia gastar dinheiro ao Estado e recusou-se a fazer a proposta”, relembra.
Em 1965, as despesas com a guerra colonial aumentaram significativamente, perfazendo 6% das despesas do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Face a esta realidade, o governo português decidiu criar três impostos para cobrir as despesas militares no Ultramar: o Imposto sobre as Transações, aplicado na Metrópole, o Imposto Extraordinário de Defesa, em Angola, e o Imposto de Defesa Nacional, em Moçambique.
Abel viu-se forçado a recorrer à família, na esperança que conseguissem interceder a seu favor. Quando regressou, semanas mais tarde, o médico informou-o que escreveria a carta.
Tinha a possibilidade de recuperar parte da visão através de uma cirurgia, com apenas 10% de hipótese de ser bem sucedida e, mesmo assim, arriscou. “No fim da cirurgia o médico perguntou-me quantos dedos tinha à minha frente, eu respondi-lhe dois”, confidencia.
Barcelona haveria de preencher para sempre um lugar especial no seu coração. Era lá que estava quando soube dos cravos que se erguiam no país vizinho. Foi o 25 de abril de 1974 que o fez regressar a Portugal: “Acreditei que era um país novo”.
Abel Fortuna com colega na Delegação do Porto dos Deficientes das Forças Armadas
Na Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) Abel Fortuna viu a oportunidade de pôr fim aos “valores retrógrados que a ditadura propagava”. “Nós [deficientes das forças armadas] não tínhamos qualquer uso, éramos fardos para a família e para a sociedade. Formamos uma associação para romper com esta ideia, para mostrar que conseguimos ser úteis”.
Dois anos após a sua criação, em maio de 1974, a Associação dos Deficientes das Forças Armadas havia já conseguido a publicação de um decreto-lei que lhes concedia direitos indemnizatórios. “Uma lei que ainda hoje chamamos da nossa Bíblia”, admite Abel Fortuna, presidente da delegação do Porto da Associação.
Ainda que tenha conseguido recolher apoios, Abel Fortuna defende que esse não é o único propósito da associação: “Nós não queremos assistencialismo, queremos dignidade”.
A hora de fecho da Associação dos Deficientes das Forças Armadas aproxima-se, mas a porta automática range e anuncia a chegada de mais um ex-combatente.
Alcino Machado entra com um punhado de documentos em mão.
É a sua vez de mostrar como guarda as memórias das suas experiências na guerra na Guiné-Bissau.
“É essencial preservar a memória que está sempre em risco”
“Fernão Lopes”. É assim que Fernando Carvalho é apelidado pelos colegas de Companhia. Inicialmente, criou um blog porque achava que “havia muito silêncio sobre a guerra colonial e os veteranos. Era como se não tivesse acontecido”. Mais tarde, o ex-combatente notou que muitos dos seus antigos companheiros se “dedicavam à terra” e não tinham acesso à internet, por isso, a mensagem não estava a chegar onde queria.
Foi então que, em 2015, durante um dos convívios anuais da Companhia, surgiu a ideia de escrever um livro. 50 anos depois da partida para terras de África, Fernando eternizou toda a história com o lançamento da primeira edição do livro “A Companhia de Caçadores 2418, na guerra em Moçambique, 1968-1970”.
“Entretanto, já lá vão 400”, Fernando ri enquanto folheia o livro pousado no colo. “Mas ainda não cumpri a minha missão. Ainda falta distribuir mais livros, quebrar o silêncio e passar a informação à nossa família e aos nossos descendentes. Aquilo é um relato de vida”.
Não é só no seio familiar e nas gavetas dos ex-combatentes que se guarda a memória da guerra colonial. Muitas vezes, são também os grandes arquivos e os museus que confirmam as histórias verdadeiras. Em Portugal, existem pelo menos seis.
Entre o vasto leque a nível nacional, destaca-se o Arquivo Ephemera, o “maior arquivo privado da Europa”. O seu fundador, José Pacheco Pereira, defende ser “essencial preservar a memória” por esta estar “sempre em risco”. Assim como Fernando Carvalho fez com a C.caç 2418, Pacheco Pereira começou por criar um site para as documentações que hoje se espalham ao longo de “seis quilómetros de estantes”.
Para o historiador e político, não há documentos insignificantes e o mesmo reitera: “A função aqui [no Arquivo Ephemera], além de salvar o maior número de documentos, é dar contexto”.
Nos arquivos, do pouco que resta da época, destaca-se a correspondência dos soldados para as famílias na metrópole.
Na outra margem do Tejo, no Arquivo Histórico Ultramarino, Joana Pontes explica que a correspondência era essencial para a sobrevivência dos soldados e da própria ordem militar. “Um dos motivos pelo qual podia haver um motim era a falta de correspondência. Se uma unidade militar não recebesse correio por 15 dias criava-se agitação e desconforto. Era horrível”, explica.
As cartas trocadas então permitem compreender a guerra pelo olhar de quem a viveu. “Dizem muito sobre a vida das pessoas e o que não fica na história”, como refere José Pacheco Pereira. Ademais, a correspondência trocada permite contrariar aquela que é a história “oficial” que Joana Pontes designa como “história das elites”.
A arte é também uma forma de contar as histórias daqueles que viveram a guerra na pele e a alimentam na sua mente, hoje - mais de cinquenta anos depois - todos os dias.
Desde a rádio ao teatro e à fotografia, há cada vez mais quem queira e faça resistir a memória doutrora.
No ano em que a Revolução dos Cravos celebra 50 anos, Francisco Sena Santos dá voz ao podcast “Antes da Revolução: 1973-1974” da Antena 1. Neste novo formato, o locutor procura alcançar “como se vivia no tempo de liberdades condicionadas, de censura e perceber como era vivida a guerra colonial”.
Francisco Sena Santos no estúdio de rádio do JPN - JornalismoPortoNet
À conversa com um ex-combatente, Francisco diz ter ficado com “a impressão de que ele estava pela primeira vez a reviver coisas a que não tinha voltado. Fazia pausas longas antes de continuar o relato”.
Por isso, o jornalista afirma: “Fiquei ainda mais com a convicção de que é fundamental ouvir esses testemunhos. A data redonda, os 50 anos, é um pretexto. É uma última oportunidade para ouvir testemunhos na primeira pessoa sendo que muitas memórias nos aparecem distorcidas”.
Tiago Gil Oliveira complementa: “O cérebro pode encontrar mecanismos de anulação ou ocultação de memórias devido a uma experiência traumática.” De acordo com o neurocientista e investigador do ICVS – Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde, “há várias situações que podem afetar a sua durabilidade e, muitas vezes, as emoções vividas, em paralelo com as memórias, dão-lhes ‘cor’”.
As memórias de Alfredo Cunha da guerra perdem a cor quando revelados os negativos fotográficos dos seus momentos na Guiné.
Com a própria exposição a servir de fundo, o fotógrafo recorda parte da sua experiência em África: em 1972, com apenas 19 anos, partiu pela primeira vez para a Guiné-Bissau como jornalista do jornal O Século e nada fazia prever que lá regressaria mais duas.
O primeiro mês na Guiné-Bissau foi o suficiente para o fotojornalista lembrar, até hoje, a guerra como uma coisa que se sente, que tem "cheiro". "Quando nos aproximávamos da zona de ação sentíamos um cheiro ocre”.
À terceira, foi expulso por publicar uma fotografia de “soldados com bandeiras brancas".
“O general Spínola disse que aquilo era mentira e eu perguntei-lhe como é que podia ser se estava ali uma fotografia. Umas coisas passavam, outras não”
Alfredo chegou a ser enviado para a Guiné para “provar que não havia guerra”. A censura que se fazia sentir em Portugal era ainda mais acentuada em África: “Era tudo muito controlado. Sempre que eu pedia para ir fotografar a algum sítio, diziam-me para ir ‘amanhã’”, mas o amanhã não chegava.
Apesar de todos constrangimentos, Alfredo garante que a grande recordação que tem de então é a de ver nascer vários países e “o fim de coisas terríveis como o fascismo e o colonialismo. Eu fotografei o fim”.
Durante muito tempo a guerra colonial foi tratada como tabu. “Depois, os artistas, escritores e cineastas, começaram a ocupar-se da guerra e houve quase uma avalanche”, completa Francisco Sena Santos.
Castro Guedes, o autor e encenador da peça Uma Noite de Solidão no Capim, acredita que “ainda se fala pouco sobre a guerra colonial, que foi um fator fundamental para a revolução dos cravos”. Por isso, decidiu criar a peça de teatro, interpretada por Fernando André e Óscar Branco, da companhia Seiva Trupe Teatro Vivo.
Muitas das lembranças da guerra colonial portuguesa poderão nunca ser contadas. Outras tantas permanecerão guardadas em diários, cartas, arquivos, documentos e nas mais variadas representações artísticas.
E só assim se preserva e conhece o que realmente aconteceu.
Só assim se perpetua a história verdadeira.
"Reportagem-baú" por:
Agradecimentos
Arquivo Ephemera
Arquivo Histórico Ultramarino
Delegação do Porto da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA)
Seiva Trupe Teatro Vivo
JPN - JornalismoPortoNet
C.caç 2418
Alfredo Cunha
Carlos Maldonado Neto (C.caç 2418)
Joana Pontes
Francisco Sena Santos
Castro Guedes (Seiva Trupe)
Fernando André (Seiva Trupe)
Óscar Branco (Seiva Trupe)
Teresa Costa (Seiva Trupe)
José Pacheco Pereira
Abel Fortuna (ADFA-Porto)
Joaquim Batista (ADFA-Porto)
Alcino Machado (ADFA)
Fernando Carvalho (C.caç 2418)
Manuel Vieira (C.caç 2418)
Sónia Vieira
José Pedro Monteiro
Tiago Gil Oliveira
Sara Pereira
E a todos que permitiram que esta reportagem se concretizasse.
Créditos e fontes
Ilustrações retiradas de "O Matacuane - Jornal cultural e recreativo do batalhão de caçadores n.º 16"
Arquivo fotográfico da Companhia de Caçadores 2418
Dados de Pedro Marquês de Sousa, em Os números na primeira fase da guerra de África (1961-1965) e de Joana Pontes, em Sinais de Vida – Cartas da Guerra (1961-1974)