Estado social. "O RSI permitiu que voltássemos a respirar"
Quase 20% da população em Portugal vive em risco de pobreza. O grupo mais afetado é o das mulheres. Sara Matos, Olinda Couto e Lídia Alves pertencem a três gerações diferentes, mas têm algo em comum: é o Estado social que lhes permite sobreviver.
"O RSI é essencialmente destinado aos mais pobres entre os pobres"
Sara Matos, de 39 anos, é brasileira e está em Portugal há três anos. É funcionária numa escola em São Vicente, Braga, mesmo ao pé do apartamento em que vive com a família. “Trabalho na mesma escola em que os meus filhos estudam. É um emprego totalmente diferente do que tinha no Brasil, mas é o meu primeiro emprego, o meu primeiro degrau - é o que eu digo a mim mesma todos os dias”.
Sem o Rendimento Social de Inserção (RSI), Sara não teria sido capaz de subir este primeiro degrau. Em Portugal, viveu em situação de pobreza durante um ano, mas a vida no Brasil era bastante diferente.
Coordenava uma equipa de Recursos Humanos constituída por 16 mil pessoas. O trabalho e a formação profissional sempre foram vistos como prioridades. “A minha formação é em Pedagogia Empresarial, mas fiz uma pós-graduação em Recursos Humanos. Mais tarde, já depois de ter a minha filha, fiz o curso de Psicanálise”.
A vida do outro lado do Atlântico era “muito boa”, permitindo-lhe ter casa e carro próprios. O marido, José Matos, neto de portugueses, era técnico informático. “Recebíamos oito vezes o valor do salário mínimo brasileiro”, revela. Ainda assim, o “sonho” de viver em Portugal falava mais alto. “Morávamos em São Paulo, mas tínhamos uma casa no Rio de Janeiro. Vendemo-la e viemos para Portugal”.
Chegaram a Braga em março de 2019. A vontade de fazer vida em Portugal era grande, mas Sara tinha consciência de que nada seria fácil. “Já vi muitos brasileiros chegarem aqui e verem que não é nada daquilo que os YouTubers mostram. Eu não. Já sabia que os salários são baixos e que as pessoas trabalham muito”, diz.
"A partir desse momento, entrámos em modo sobrevivência”
O marido de Sara tinha em mente a criação de uma empresa de venda de pneus em conjunto com dois outros sócios. Grande parte das poupanças da família Matos foram canalizadas para a abertura desta empresa.
“Apenas um dos sócios conseguiu o visto e, por isso, o negócio não deu certo”. A empresa, que já estava aberta e a gerar custos, não tinha lucros. “Gastámos dinheiro não só para abrir a empresa, como para fechá-la”, lamenta.
Aquela que esperavam que fosse a sua fonte de rendimento acabou por esgotar todos os recursos financeiros da família. “A partir desse momento, entrámos em modo sobrevivência”.
Sara e José começaram a procurar trabalho. “Encontrei casas para fazer limpezas e fiz babysitting”, conta. Os filhos de Sara eram ainda muito pequenos e, não tendo com quem os deixar, via-se obrigada a levá-los para o trabalho.
José começou a trabalhar como empregado de mesa em casamentos e batizados e começou a vender salgadinhos para uma pastelaria. Só quando conseguiu um contrato com uma imobiliária, ainda que a recibos verdes, é que a família pode respirar fundo. Mas não por muito tempo.
"A fonte de rendimento não existia mais"
Sara é uma das 400 mil pessoas que, segundo um estudo do Observatório Social da Fundação "la Caixa", a pandemia da covid-19 colocou em situação de pobreza. Viu todas as suas fontes de rendimento secarem duas vezes num ano. “Ninguém deixava entrar estranhos para limpar as casas, a mãe da criança de que eu tomava conta deixou de trabalhar e não precisava de babysitter, ninguém vendia imóveis porque não se podiam fazer visitas e também não havia festas”.
O desespero bateu à porta. Porque não voltaram para o Brasil? Com duas crianças pequenas para criar “desistir não era opção”. “Estávamos a passar um mau bocado por aqui, mas se fossemos comparar com o Brasil percebíamos que estava muito pior”, constata.
Saiu de casa e foi procurar ajuda à Santa Casa da Misericórdia de Braga, que tem sede na rua onde vive. “Não pesquisei nada na internet, apenas passei à porta e entrei. Agendaram-me um horário, contei a minha história e pedi ajuda, porque não sabia o que podia fazer”.
Até então, Sara estava dependente do dinheiro que conseguia através da venda de roupas e brinquedos em grupos do Facebook. Com a orientação da Santa Casa da Misericórdia e, mais tarde, da Cruz Vermelha Portuguesa, Sara passou a beneficiar do RSI.
Foi numa entrevista na Cruz Vermelha que Sara soube qual o valor da prestação. Passou a receber 374,11 euros por mês. “Foi um alívio”, confessa. “O RSI permitiu que voltássemos a respirar, que deixássemos de contar moedas. Aos poucos, pagámos o que tínhamos de pagar e as coisas começaram a alinhar-se”, conclui.
O Rendimento Social de Inserção, antigo Rendimento Mínimo Garantido (RMG), foi introduzido em Portugal no fim dos anos 90 por recomendação da União Europeia (UE). Portugal foi o penúltimo país a adotá-la.
Trata-se de uma medida desenhada para combater a pobreza, mas possui mais do que uma dimensão monetária. “O RSI é uma política social que tem uma característica especial: conjuga um subsídio com um processo de inclusão na sociedade”, diz o professor no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG), Carlos Farinha Rodrigues. “É essa dupla vertente que dá sentido ao RSI”.
O economista defende que ambas as vertentes têm sofrido uma desvalorização. "A relação entre o valor base do RSI e o valor da linha de pobreza deteriorou-se nos últimos anos". Em 2020, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o limiar de risco de pobreza situava-se nos 6.653 euros anuais, o que corresponde a um rendimento mensal de 554 euros. O valor médio do RSI, por família e por mês, em dezembro de 2020 rondava os 261 euros.
Segundo Farinha Rodrigues, é necessária uma revalorização do valor do RSI "de forma a que a proporção entre RSI e linha de pobreza não diminua, podendo até consolidar-se de alguma forma”.
“Quando se debate o RSI, fala-se na metáfora da pesca: ‘Não dês o peixe, ensina a pescar’. O problema é que a situação económica das famílias é tão frágil que não é possível ensiná-las a pescar sem lhes dar o peixe”, declara.
Mesmo havendo esta reconsideração da prestação monetária, o docente acredita que é insuficiente para tirar as pessoas da pobreza. Para isso, o valor que recebem teria de ser superior ao do limiar da pobreza, “o que desvirtuaria a natureza do próprio programa”.
É na conjugação entre o subsídio e os programas de inclusão social que Carlos Farinha Rodrigues deposita a sua confiança. “Temos de dar as valências necessárias para que os beneficiários deixem de precisar do RSI e possam, inclusive, deixar de ser pobres”, afirma. A pobreza é descrita pelo economista como uma área multidisciplinar e, por isso, fornecer dinheiro às famílias não é suficiente para inseri-las na sociedade.
A integração social da família Matos não teria sido possível sem o acompanhamento da Cruz Vermelha Portuguesa. "Orientaram-me para fazer a equivalência do 12º ano, ajudaram-me a refazer o meu currículo e inscreveram-me no Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (PO APMC)”, conta.
O PO APMC é um instrumento de combate à exclusão social cofinanciado pela UE. Foi desenhado numa lógica de intervenção mediante apoio alimentar, através da atribuição de cabazes. “Já não tinha de me preocupar com o arroz e o feijão. As coisas ficaram mais tranquilas”.
“A Cruz Vermelha indicava-me todas as oportunidades de emprego em que eu conseguisse conciliar o trabalho do meu marido com a questão de ter ficar com as crianças. Foi aí que surgiu a oportunidade na junta de freguesia de São Vicente”. Sara trabalha como auxiliar desde setembro do ano passado, mas o fim do ano letivo encerra também este capítulo da sua vida.
“Acredito que, a partir de todo o suporte que a Cruz Vermelha me deu e com as crianças a estudar, eu vou conseguir caminhar sozinha”. O objetivo de Sara é poder fazer pelos outros aquilo que fizeram por ela. “Sempre trabalhei em instituições que valorizam o ser humano. Em Portugal, a instituição que eu vejo fazer isso é a Cruz Vermelha. No dia em que tiver a carta de condução, eu vou concorrer às vagas que eles têm disponíveis”, promete.
Sara e José são um casal jovem e saudável. Segundo Carlos Farinha Rodrigues, a “forma ideal” de reintegrar famílias como a deles é através do mercado de trabalho. Mas nem sempre é possível.
“É preciso percebermos que o processo de inclusão de uma parte significativa das famílias que recebem o RSI pode não passar pelo mercado de trabalho, pelo menos não no imediato”. É o caso de Olinda Couto, de 51 anos, que dependerá de apoios sociais até ao fim da sua vida.
“Não me podem dar apoio nenhum porque não sabem o que é que eu tenho”
Olinda é uma das cerca de 200 mil pessoas atualmente abrangidas pelo Rendimento Social de Inserção. É natural da Trofa, no Porto, o distrito com mais beneficiários (25%) desta prestação social.
Sofre de uma doença neurodegenerativa rara que afeta o equilíbrio e a capacidade motora, impedindo-a de trabalhar. Os apoios sociais do Estado garantem a sua sobrevivência há 14 anos.
“Sou a mais velha de quatro irmãs. Sempre fui muito feliz e da infância guardo muito boas memórias”, conta. Conheceu o marido, Rui Couto, aos 19 anos e pouco menos de um ano depois já estavam casados. “Sou mãe de três filhos e aqui estou”.
À semelhança de Sara, Olinda começou a trabalhar aos 17 anos. Era empregada de escritório numa empresa de calçado que, em 2008, entrou em falência. "Arranjaram-me emprego na Preh Portugal e eu aceitei, ainda que nunca tivesse estado na produção. Adorei, porque trabalhava ‘mais com as mãos do que com a cabeça’. Picava o cartão, vinha-me embora e o trabalho ficava lá”.
Foi nessa altura que surgiram os primeiros sintomas. “Queria descascar uma batata e não conseguia. Sentia um cansaço enorme, só me apetecia dormir”, recorda. Desde então, Olinda tem procurado um diagnóstico claro, mas até hoje não encontrou respostas. “O problema é que até na saúde é preciso investir. Se eu tivesse dinheiro, já tinha corrido mundos e fundos para tentar descobrir”.
A doença - ainda por diagnosticar - obrigou-a a recorrer ao Estado social. Hoje, Olinda recebe 69,02 euros de RSI. Desde 2012 que o marido também vive de apoios sociais. O que esperavam ser uma simples operação ao joelho acabou por virar-lhes a vida do avesso: Rui sofreu dois tromboembolismos pulmonares e ficou incapacitado.
Depois de feita uma análise à sua condição, concluíram que Rui não estava apto para voltar a trabalhar. As contribuições que foi fazendo - também como empregado de escritório - garantiram-lhe o acesso a uma Pensão de Invalidez de pouco mais de 700 euros mensais.
Rendimento Social de Inserção, Pensão de Invalidez e Abono de Família garantem a subsistência da família Couto há mais de uma década. Graças a estes apoios sociais, os três filhos de Olinda e Rui puderam prosseguir os estudos. A mais velha, já formada, é enfermeira. Os mais novos preparam-se para terminar o mestrado e o ensino secundário.
Para Carlos Farinha Rodrigues, o sucesso de medidas como o RSI também passa por “garantir que não haja abandono escolar, que todas as crianças sejam vacinadas, que tenham os conhecimentos mínimos de higiene e organização familiar”.
O processo de inclusão de famílias em situação de pobreza é “muito vasto” e não se resolve apenas com “políticas ao nível do mercado de trabalho”. “Para obtermos ganhos significativos no combate à pobreza temos também de conjugar políticas no sistema educativo e, eventualmente, políticas fiscais”, afirma.
"É importante que os beneficiários sejam tratados com dignidade"
O RSI é a mais escrutinada e polémica medida de combate à pobreza. Pesa apenas 0,9% do total das despesas da Segurança Social (SS). Mas, quanto pesa, na vida dos beneficiários, o estigma associado ao subsídio?
Olinda sente o estigma ainda antes de dizer que recebe apoios do Estado. Por não trabalhar mantém-se ocupada com as tarefas de casa. “Eu sou mãe, dona de casa e, ainda assim, as pessoas dizem-me que não faço nada. Quem está em casa trabalha imenso, só não tem o que fazer se não quiser”, defende.
A trofense argumenta que quando se paga a uma empregada doméstica para fazer as mesmas tarefas que faz uma dona de casa "já é trabalho porque é remunerado".
Sara diz não ser discriminada por receber o RSI. Sente, contudo, por parte de alguns colegas de trabalho uma “dor de cotovelo” pelo Estado estar a ajudar uma imigrante em vez de ajudar os portugueses. “Eles não percebem como é que eu, que nunca contribuí financeiramente para Portugal, tenho direito a esse benefício”.
Em Portugal, há 60 contribuintes por cada 100 residentes estrangeiros e apenas 42 contribuintes pelo mesmo número de residentes portugueses. Por outro lado, existem 32 beneficiários por 100 contribuintes estrangeiros e 62 beneficiários por 100 contribuintes portugueses, segundo os dados do Observatório das Migrações (OM). Ou seja, o valor das contribuições dos imigrantes é superior ao valor que a Segurança Social gasta com eles em prestações sociais.
Existe, nas palavras de Farinha Rodrigues, um “manto de falsidades generalizado” em torno do RSI. O próprio apoio e os que dele beneficiam são olhados de lado.
Os últimos cálculos do investigador mostram que há cidadãos que não recorrem ao subsídio com receio de serem marginalizados, apesar de preencherem todos os requisitos. “Nunca tivemos mais de 5% da população a beneficiar do RSI, mas a nossa taxa de pobreza anda à volta dos 18%”, aponta.
“É importante que os beneficiários sejam tratados com dignidade, que haja um menor preconceito, um menor estigma”, afirma a professora do Departamento de Economia da Universidade do Minho (UMinho), Sílvia Sousa. Todos os cidadãos têm o direito de receber ajudas do Estado, cumprindo certos requisitos, e “uma pessoa que recebe o RSI não tem de ter a sua condição de pobreza escancarada aos olhos de todos'', continua.
Para Sílvia, as opiniões negativas em torno das famílias que recebem o RSI por um período longo são “um bocadinho precipitadas”. “Não creio que seja possível fazermos essa avaliação e chegarmos a qualquer conclusão, sem termos uma visão muito mais integrada do que é a realidade”.
A docente acrescenta que a ideia que fomenta o estigma se baseia “numa ignorância e numa incapacidade ou falta de vontade de querer conhecer quem efetivamente beneficia”.
O preconceito faz as pessoas falarem “como se os beneficiários se estivessem a resignar a um nível de vida extraordinário”. Se houver uma acomodação, é a uma realidade “muito pouco materialista”. “É um acomodar que me parece quase de quem desistiu e não tanto de quem é preguiçoso ou está a viver à custa do sistema”, explica a professora.
Sílvia desafia as pessoas a refletirem sobre a possibilidade de viver “confortavelmente” com os valores do RSI. “Eu acho que quando percebemos de que valores estamos a falar, se calhar repensamos o nosso discurso sobre o assunto”.
"Não me parece plausível que os beneficiários votem no Chega"
Depois de desenvolver algumas investigações sobre a ascensão da “direita populista” noutros países da Europa, o professor de Políticas Públicas da Universidade de Leiden, Alexandre Afonso, começou a estudar o Chega. Tendo por base os resultados das Eleições Presidenciais de 2021, o investigador procurou perceber “porque é que o Chega tem mais poder eleitoral em certos concelhos”.
Alexandre Afonso verificou que nos municípios onde há mais beneficiários do RSI, a percentagem de votantes no Chega é maior. “Obviamente que isto não quer dizer que as pessoas que beneficiam do RSI votam no Chega”, afirma o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Pedro Magalhães. “Nos contextos onde a percentagem de pessoas que recebe o RSI é maior, maior é a propensão dos que não recebem para votar no Chega”.
O autor do estudo corrobora: “Não me parece plausível que os beneficiários de apoios sociais votem no Chega”. Para o investigador, o discurso dos ‘portugueses de bem’, “que vão todos os dias ao trabalho e não vivem de subsídios sociais” intensifica os preconceitos e estigmas.
Alexandre Afonso acrescenta ainda que a propensão à participação eleitoral é mais baixa nos beneficiários de apoios sociais. ”Isso tem a ver com fatores como o acesso à educação e a frágil situação socioeconómica em que as pessoas vivem”.
"A sobrevivência do Estado social é a sobrevivência do Estado democrático"
A trajetória das últimas décadas reflete a importância do Estado social na sociedade portuguesa. Os números não enganam.
Em meio século, passamos de uma esperança média de vida de 67 anos para mais de 81, de acordo com os dados da PORDATA. Em 1970, por cada mil nascimentos, mais de 50 crianças morriam antes de completarem um ano. Em 2021, a taxa de mortalidade infantil era inferior a três por cento.
Mas o que é afinal o Estado social? “É por aí que começamos quando lecionamos Economia e Política Social”, afirma Sílvia Sousa.
A Educação, a Saúde e a Segurança Social são “objetivamente do Estado-providência”. No entanto, a professora defende que é difícil delimitá-lo no espaço de ação e dá o exemplo das políticas ambientais.
“Se pensamos nas condições das habitações da população, a pasta do Ambiente começa a tomar alguma dimensão de Estado social, o que quer dizer que a fronteira se torna muito ténue”, refere.
Em Portugal, o Estado-providência deu os primeiros passos ainda em ditadura, mas só se consolidou depois do 25 de abril. “Havia algumas formas de providência do tipo corporativo, mas o grande impulso foi feito a partir da Constituição de 1976”, diz o ex-dirigente da Direção-Geral do Emprego da Comissão Europeia (CE), Armindo Silva.
A criação do Subsídio de Desemprego e o alargamento do sistema de pensões aos trabalhadores agrícolas e trabalhadores independentes são, segundo o economista, marcos importantes. Sílvia Sousa está de acordo: "Uma das dimensões importantes do Estado social é a sua intervenção através dos apoios sociais".
Cerca de dois milhões de portugueses vivem em risco de pobreza ou em exclusão social. Sem transferências sociais, este valor seria superior a quatro milhões.
O impacto positivo do Estado social é evidente. No entanto, algumas conquistas, como a longevidade e o controlo da natalidade, transformaram-se em desafios à sua própria sustentabilidade.
De acordo com o relatório da CE, The 2021 Ageing Report, as pensões vão descer para menos de metade do valor dos ordenados, em pouco mais de 20 anos. “A causa fundamental é a natureza demográfica”, afirma Armindo. O economista defende que, no desenho do nosso sistema atual de pensões, há um agravamento da desigualdade entre gerações.
“Um trabalhador de 64 anos, que está à beira da reforma, e um jovem que entra no mercado de trabalho aos 25 pagam o mesmo à Segurança Social”, aponta. “A pensão que vão receber quando se reformarem vai ser diferente”.
Segundo Armindo Silva, a taxa de substituição das pensões do sistema contributivo vai sofrer uma redução progressiva. Isto é, “enquanto o trabalhador de 64 anos vai receber uma reforma equivalente a 80% do seu último salário, o jovem de 25 anos receberá, na melhor das hipóteses, metade”.
O Estado social é sustentável? "Sim, mas..."
Num sistema de proteção social em que as pensões têm “maior peso e maior importância”, diz Sílvia Sousa, a grande dúvida é se as reformas do futuro serão capazes de garantir um nível de vida digno aos pensionistas.
Afinal, a Segurança Social é ou não sustentável? “A resposta curta é sim. Mas não sem alguma ajuda”, adverte. Para a docente, “a primeira ação política para promover a sustentabilidade do Estado social é dar-lhe essa credibilidade”.
“Se as pessoas não confiarem no sistema e naquilo que ele lhes pode oferecer, vão ter todo o interesse em encontrar alternativas. Essas alternativas serão o princípio da não sustentabilidade do sistema”, defende.
Sílvia considera importante assegurar a credibilidade da Segurança Social junto dos mais jovens. “ Se fazem parte da geração mais qualificada do nosso país, é porque, de facto, houve um investimento no Estado social, na área da Educação”, refere Sílvia.
Além de realçar a importância deste discurso de credibilização, Sílvia Sousa considera que “as palavras não serão suficientes”. “Vai ter de haver uma série de medidas que acompanhem esse discuro”.
De acordo com a economista, qualquer alteração estrutural que façamos ao sistema de pensões vai implicar que uma geração seja prejudicada. “O grande desafio é definir uma estratégia que permita distribuir essa penalização por todas as gerações de forma mais equilibrada”, diz.
“Hoje, os nossos reformados podem ter de estar disponíveis para receber, de um ano para o outro, pensões mais baixas”, avisa a docente.
"Face ao nosso comportamento nos últimos anos e face à atual taxa de fecundidade, vamos ter problemas de sustentabilidade”.
Sendo que as contribuições são baseadas na remuneração do trabalho, Armindo Silva explica que o sistema de pensões será tanto mais sustentável quanto maior for a remuneração. “Poderá haver um fluxo migratório de tal maneira massivo que compense a queda da população e que mantenha um nível de contribuintes elevado”, diz Armindo.
É aqui que surge o problema: “As projeções que atualmente estão disponíveis, baseiam-se já em aumentos dos salários superiores àqueles que tivemos nos últimos vinte anos”, revela.
Ainda assim, Armindo Silva vê duas possibilidades para contrariar a não sustentabilidade do Estado social. “A primeira é através de um reforço no valor das pensões no setor público, que só poderá ser conseguido através de transferências do Estado”.
A segunda solução defendida pelo economista, “adotada na grande maioria dos países da Europa”, passa por criar um sistema complementar com base em contribuições dos trabalhadores e das empresas. “Assim, as futuras gerações, quando chegarem à altura da reforma, não vão ter apenas a pensão do setor público mas uma pensão que foi sendo acumulada ao longo da sua vida profissional”.
RBI: uma alternativa ou um complemento?
A doutoranda em Filosofia Social e Política, Catarina Neves, acredita que o Rendimento Básico Incondicional (RBI) “não é uma alternativa ao Estado social, mas um complemento ao ramo da assistência social”. “Parece-me uma prestação mais eficaz, eficiente e justa face a algumas que temos para combater a pobreza'', reitera.
Já foram realizadas experiências de implementação do RBI em países como os Estados Unidos da América, o Brasil, o Quénia e a Finlândia. “A maioria delas mostra que, quando as pessoas com rendimentos mais baixos têm acesso a este apoio, experienciam menos ansiedade e stress, uma vez que antes não conseguiam pagar as suas despesas mensais”, revela Catarina. “Sentem-se mais felizes no seu dia a dia”.
O RBI pode ainda permitir “negociar diferentes condições no trabalho” e dar “mais liberdade para sair de trabalhos em que se é explorado ou de que não se gosta”, acrescenta Catarina Neves.
“Em Portugal são poucos os investigadores que trabalham o tema. Por um lado, há muito receio de que o RBI venha destruir o Estado social e, por outro lado, não se consegue ultrapassar a discussão do financiamento”.
Alcácer do Sal espera avançar com uma experiência-piloto de implementação do RBI em que, ao longo de dois anos, um conjunto de pessoas beneficiarão de 500 euros mensais. A iniciativa encontra-se à espera de financiamento, mas prevê-se que comece ainda em 2022.
"Temos, enquanto cidadãos, de ter acesso a estas prestações"
Para Sílvia Sousa, mais do que uma medida política associada a um Governo, assegurar a sustentabilidade da SS tem de ser um compromisso da sociedade. “Os partidos do chamado ‘arco da governação’ têm de estar de acordo relativamente a uma estratégia”, diz.
Armindo apela aos decisores políticos para “deixarem de tratar a questão da sustentabilidade da Segurança Social como um trunfo na batalha política e passarem a olhar para a questão de uma forma mais séria e apoiada em números”.
Dizer que não há dinheiro para as pensões dos jovens “não é verdade”. “Se deixasse de haver dinheiro para pagar as pensões, deixava de haver estado democrático. Na civilização ocidental, não há democracia sem Estado social”, acrescenta.
Sílvia Sousa resume toda a discussão sobre as prestações sociais a uma palavra: direitos. “Isto não é caridade. Nós nascemos e temos, enquanto cidadãos, de ter acesso a estas prestações, cumprindo obviamente os critérios de elegibilidade”.