Espelho meu,
espelho meu

No reflexo da autoimagem

Com o verão a aproximar-se, o corpo volta a ocupar o centro das atenções. As temperaturas sobem, as roupas diminuem e, com elas, cresce também a pressão para “estar bem”. É como se esta estação trouxesse consigo uma contagem decrescente para atingir o ideal. O corpo de verão, o bronze perfeito, a forma “certa” de existir à vista dos outros.

Vivemos num tempo em que o espelho deixou de refletir o que somos e passou a projetar o que falta. Um tempo em que o corpo já não é apenas corpo, é rascunho, é projeto, é promessa. Promessa de aceitação, de validação, de amor. De sucesso.

Mas...e se o corpo que temos nunca for suficiente? E se a busca pelo corpo ideal não tiver fim?

O espelho tornou-se um hábito diário. Está na casa de banho, no elevador, nos provadores, nos telemóveis. À primeira vista, devolve-nos o reflexo. Mas, numa era em que cada imperfeição parece ampliada e cada padrão se transforma num objeto inatingível, o espelho mostra outra coisa. A ausência. O defeito. A distância entre quem somos e o que deveríamos ser.

No scroll apressado das redes sociais, vemos rostos simétricos, cinturas afinadas, peles luminosas. É ali, entre os likes e os filtros, que o corpo se torna moeda de valor. E a comparação, a regra. Entre uma publicação e outra, cresce a sensação de que os outros têm sempre mais. Mais beleza, mais harmonia, mais confiança. E nós, menos. Menos firmeza, menos contorno, menos aceitação.

Nas clínicas discretas ou anunciadas com slogans promissores, os gestos repetem-se: um preenchimento aqui, um retoque ali, uma marcação para “melhorar só um bocadinho”. A ideia é sempre a mesma, parecer mais jovem, mais bonita, mais parecida com o que se espera. Mais...o quê?

É nesse lugar invisível, entre a imagem que vemos e aquela que gostaríamos de ver, que nasce a batalha silenciosa da autoimagem. Uma batalha que molda comportamentos, decisões e a forma como cada um habita o próprio corpo. À mesa, nos provadores, na intimidade, nas fotografias. O corpo está sempre presente, mesmo quando se tenta esquecê-lo.

Espelho meu, espelho meu... são mais belos do que eu?

Espelho meu, espelho meu... são mais belos do que eu?

Braga acordou com o calor típico dos dias de verão antecipado. O céu limpo, o sol a bater forte nas fachadas e a cidade que parecia não querer parar. A pressa nos passos, as filas para o gelado, a música das tunas universitárias e o som dos talheres nas esplanadas. Por todo o lado, corpos à vista, pernas descobertas, ombros ao sol, olhos semicerrados a fugir à luz.

Era impossível não reparar. Nuns dias, o corpo sente-se mais leve, noutros, mais vigiado. Mas neste, havia uma espécie de espelho invisível a seguir-nos pela rua, porque, mesmo longe de casa, continuamos a olhar para nós. Ou a imaginar como os outros nos veem.

Foi neste cenário que decidimos parar e ouvir. Abordámos quem passava, quem esperava, quem simplesmente ali estava. Fizemos perguntas simples, mas que mexem com o que cada um guarda cá dentro: “Gostas da tua autoimagem?” “Mudavas alguma coisa?”

As respostas vieram com sotaques diferentes, com silêncio pelo meio, com sorrisos hesitantes e certezas bem marcadas. Vieram da rua, mas podiam ser do espelho.

Pensamentos por detrás do espelho

Aquilo que ouvimos nas ruas de Braga não é caso isolado. Segundo especialistas, há cada vez mais pessoas a sentir que o seu corpo é um erro. Que precisa de ser corrigido, ajustado, moldado. Não por necessidade médica, mas por exigência social. O corpo como passaporte para a aceitação. E a estética como ferramenta para o alcançar.

A pressão para corresponder a determinados padrões de beleza tornou-se um fenómeno global, visível nos números. De acordo com o relatório da International Society of Aesthetic Plastic Surgery  (ISAPS) , no ano de 2023 foram realizados mais de 30 milhões de procedimentos estéticos em todo o mundo. Os Estados Unidos da América lideram a lista, seguidos do Brasil e México.

A crescente procura por intervenções cirúrgicas e não cirúrgicas, revela uma tendência transversal a culturas, idades e geografias.

Fonte: ISAPS – International Society of Aesthetic Plastic Surgery, Global Survey 2023.

A psicóloga Ana Aires Martins, especialista em saúde mental e imagem corporal, acompanha diariamente casos em que a insatisfação com o corpo ultrapassa a dimensão estética.

"Enfim, quero sempre estar da maneira que não estou." Fernando Pessoa

"Enfim, quero sempre estar da maneira que não estou." Fernando Pessoa

Toda essa frustração não é estatística, tem rosto e voz.

Maria (nome fictício) é um desses rostos. A sua relação com o corpo começou a ser desafiada logo à nascença, quando teve de ser operada de urgência, porque “tinha os intestinos fora do sítio”. Ainda em bebé, voltou à sala de operações. O resultado: uma cicatriz profunda na barriga e um impacto que ultrapassou o físico.

Durante anos, conviveu com a dor e guardou em silêncio a vergonha. Hoje, com mais maturidade e autoconhecimento, partilha essa experiência na primeira pessoa.

Cicatrizes que marcam uma vida

Cicatrizes que marcam uma vida

O que este testemunho sente é o que tantas outras pessoas experienciam sem dizer em voz alta. E, muitas vezes, esse sentimento nasce no lugar onde passamos horas por dia: as redes sociais.

Deixaram de ser apenas vitrines. Tornaram-se espelhos distorcidos, laboratórios de comparação, montras onde o corpo é produto e projeto. A promessa é sedutora: “vê como podias ser”. E a cobrança, silenciosa: “porque ainda não és?”.

Nos filtros do Tiktok ou do Instagram, o corpo ou o nariz afinam, os lábios crescem, a pele suaviza e tudo através de um clique. E a imagem refletida, embora falsa, começa a parecer mais real do que o reflexo no espelho da casa de banho. É este o novo bisturi, invisível, mas incisivo.

Esta pressão visual não é apenas uma perceção, é uma realidade estatística. Um relatório do U.S. Surgeon General, intitulado “Social Media and Youth Mental Health: The U.S. Surgeon General´s Advisory” (2023), alerta para os riscos crescentes da exposição prolongada às redes sociais, sobretudo entre adolescentes. O documento releva que 95% dos jovens entre os 13 e os 17 anos usam as redes sociais e que quase um terço considera que o seu impacto na autoestima é negativo.

Entre os principais perigos identificados estão a distorção da autoimagem, o aumento da ansiedade, o surgimento de distúrbios alimentares e a normalização de padrões corporais irreais. O relatório sublinha que o contacto precoce com conteúdos filtrados pode interferir no desenvolvimento saudável da identidade e da autoaceitação.

Numa altura em que a estética se transforma num produto de consumo e os algoritmos promovem corpos moldados à medida da tendência, esta advertência lembra-nos  que o impacto das redes sociais ultrapassa a superfície. Afeta a forma como nos vemos, como nos comparamos e como nos julgamos.

Na origem desta distorção da autoimagem, há mais do que vaidade. Há insegurança, ansiedade e medo de rejeição. Há silêncio. E há também um mercado atento, pronto a oferecer soluções rápidas e personalizadas para cada queixa. A promessa é simples: podes ser melhor do que és. A pergunta é mais difícil: quem decide o que é melhor?

A psicóloga Ana Martins confirma que “a procura é muito influenciada pela pressão das redes sociais e pelas referências mediáticas, como jornais, revistas ou figuras públicas”. O que antes era uma influência pontual, passou a ser constante.

Esta perfeição fabricada, não é neutra. Influencia comportamentos, expectativas e até diagnósticos. “Há crianças de 5 anos que relatam em consulta que já estão em dieta porque não querem ser gordas”, conta. “E muitas vezes, o modelo que têm é exatamente aquilo que assistem em casa.” O espelho doméstico mistura-se com o digital e, entre os dois, a infância vai-se moldando à imagem do que vê.

A comparação constante instala-se. Com ela, a crença de que é possível e desejável sermos uma versão filtrada de nós próprios. O cirurgião plástico, Carlos Pinheiro, reforça: “Há pessoas com narizes normais, bem alinhados, que querem operá-los porque não são ‘iguais aos das atrizes de cinema’. ”

Não se trata de uma questão médica ou funcional. Trata-se de uma tentativa de copiar uma imagem, muitas vezes irreal, que se repete nos ecrãs. “A publicidade e o marketing tornaram-se cada vez mais agressivos. Hoje temos inteligência artificial capaz de manipular imagens de forma quase indetetável.”

É neste terreno ambíguo que se move a medicina e a cirurgia estética. Entre a vontade legítima de se sentir melhor e a tentativa de replicar padrões impossíveis, muitos profissionais encontram-se diante de dilemas éticos diários. “Já recusei vários casos”, afirma.

A capacidade de dizer "não"

A médica Carina Teixeira, especializada em medicina estética, sente o mesmo desafio: “As redes sociais passam uma imagem de perfeição que não existe. A pele normal tem poros. Não existe a pele perfeita. Temos de desconstruir essa ideia.”

A pressão estética é tão forte que por vezes recusa procedimentos por não se identificar com o pedido.  “Já tive o caso de uma senhora inglesa que queria um tipo de lábio muito específico, com o qual eu não me identificava. Recusei fazer.”

Para a profissional, o respeito pela identidade do paciente e a ética profissional sobrepõem-se à pressão por resultados comercializáveis. “Gosto de estar associada a resultados naturais. Se não acredito no procedimento, não o recomendo. Tenho sempre a ética na minha vida.”

Mas nem todos os profissionais atuam com a mesma consciência. E é precisamente essa falta de regulação, essa proliferação de ofertas rápidas e acessíveis, que leva muitos pacientes a procurar soluções em locais duvidosos.

“Há pessoas que aplicam produtos comprados online, sem qualquer controlo, sem certificação”, denuncia Carlos. “E quando corre mal, o paciente nem sempre reclama. É o que eu chamo o “efeito das lojas chinesas”. Se compras um produto barato e ele parte, não reclamas. O mesmo acontece com alguns procedimentos estéticos.”

“Na medicina, ninguém pode garantir resultados e na cirurgia estética, começa a instalar-se a ideia de que o resultado tem de ser sempre perfeito, mas isso é insustentável.”

Carlos Pinheiro

A perfeição passou a ser um requisito, mesmo quando o corpo, por natureza, nunca foi perfeito. Nem deveria ser.

No meio deste cenário, os médicos tornam-se mais do que técnicos. Tornam-se conselheiros e vigilantes da saúde mental dos seus pacientes. “Somos médicos e temos um código deontológico. Eu só aconselho um tratamento se fizer sentido clinicamente”, afirma Carina.  

Carina Teixeira | Especialista em medicina estética no Instituto Médico Face Mi

Carina Teixeira | Especialista em medicina estética no Instituto Médico Face Mi

É inegável que muitos procedimentos, quando bem executados, podem ter um impacto positivo na autoestima. Mas entre o saudável e o obsessivo, entre o legítimo e o impulsionado por comparação, há uma fronteira indefinida.

Cabe aos profissionais, mas também à sociedade, aos media e a cada um de nós, encontrar formas de habitar o corpo que temos. Não como um rascunho inacabado, mas como presença suficiente.

Na clínica Zenith Saúde, em Rio Tinto, o branco domina as paredes e o silêncio só é interrompido pelo som da campainha. É neste ambiente que Adriana Siquara, médica dentista, recebe os pacientes. Para ela, cada intervenção exige responsabilidade, mesmo quando o pedido parece simples. “Estamos a falar de produtos químicos, com riscos reais. Não é só uma questão de aparência.”

Aviso conteúdo sensível

Procedimento de toxina botulínica (botox) - 'as agulhas que fazem milagres'

Procedimento de toxina botulínica (botox) - 'as agulhas que fazem milagres'

Fora das paredes da clínica, as estatísticas ajudam a traçar o retrato das preferências estéticas em Portugal. Tanto por procedimentos cirúrgicos como por não cirúrgicos.

Clica na bola azul

Fonte: Businesscoot – Estudo de mercado sobre cirurgia e medicina estética em Portugal, 2023.

Perante a avalanche de imagens idealizadas e desejos instantâneos, o consultório transforma-se num lugar onde o médico é chamado a intervir não apenas com a agulha, mas com discernimento. Cada pedido carrega uma história, um grau de sofrimento e, muitas vezes, a ilusão de que um novo contorno resolverá um desconforto mais profundo.

Entre o cuidado e o limite, levantam-se algumas questões: Até onde deve ir a intervenção médica sobre o corpo? Que fronteiras se impõem entre o desejo legítimo de mudança e o risco de alimentar uma obsessão?

Para alguns profissionais, estas perguntas não encontram resposta num protocolo clínico. Exigem escuta, tempo e, muitas vezes, contenção. Entre o que se pode fazer e o que se deve fazer, há um espaço onde entra a ética e o silêncio antes da decisão.

Recusar, neste contexto, não é lugar. É cuidar. Proteger alguém de um impulso, de uma ilusão, de um dano. A medicina estética, quando exercida com critério, não valida expectativas irrealistas. Confronta-as. E oferece, no lugar da mudança imediata, a possibilidade de uma escuta que transforma.

Neste terreno ambíguo, entre a liberdade de escolha e o risco de ilusão, o corpo tornou-se palco de decisões cada vez mais complexas. E, diante de pedidos que por vezes nascem da dor e não do desejo, os profissionais ficam com uma escolha silenciosa entre as mãos.

Mas nem todos os pedidos partem da comparação. Nem todas as cirurgias nascem de uma vontade de parecer com outro. Há também quem procure mudar para se reencontrar com o próprio corpo, não por vaidade, mas por desconforto real. Não por pressão, mas por alívio.

São histórias menos visíveis, talvez por não caberem no imaginário da transformação estética que circula nas redes. Histórias onde a intervenção não responde a um capricho, mas a uma necessidade concreta.

Cláudia Cerveira, hoje com 56 anos, descobriu que tinha cancro da mama numa altura em que achava estar a entrar na menopausa. "Inicialmente era só para retirar um quarto da mama, mas depois passou a ser mais, até que tive de retirar a mama toda." Seguiram-se oito sessões de quimioterapia, num ritmo de três em três semanas.

Dois anos depois, chegou a fase da reconstrução mamária. “O doutor sugeriu reconstruir a mama com gordura da minha própria barriga. Foi uma operação de 12h. Foi terrível. No primeiro dia da recuperação, a minha filha mais velha até me deu comida à boca.”, conta.

Seguiram-se mais duas cirurgias, uma para ajustar o outro peito e a última para pigmentar o mamilo. Ainda hoje, Cláudia sente-se muito feliz com o resultado e em tom de brincadeira, afirma: “Como costumo dizer, isto é que é foi alta-costura”.

A "alta-costura" de uma vida

A "alta-costura" de uma vida

“Cada pessoa vive isto à sua maneira. Mas é possível seguir em frente. Tento passar isso aos meus filhos: mesmo que as coisas corram mal, podemos sempre dar a volta e aprender.”

Cláudia Cerveira

A sombra segue-nos. Mesmo quando mudamos por fora ela guarda a verdade do que somos.

O bailarino Rómulo Soares da Academia Ent'artes fala da relação atual da sociedade e autoimagem.

Nem todas as histórias terminam bem. E nem todos os procedimentos são realizados por quem devia, no lugar certo, com os cuidados exigidos. Quando a estética se transforma em negócio e a promessa de “melhorar só um bocadinho” se banaliza, a fronteira entre o desejo e o risco pode desaparecer.

Apesar de existir regulação, ela nem sempre chega onde devia. A prática cresce, diversifica-se e a legislação fica, muitas vezes, para trás. Falta clareza, falta articulação entre entidades e, acima de tudo, faltam garantias para quem procura estes serviços.

Em Portugal, é à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) que cabe fiscalizar os estabelecimentos. Mas as suas competências são limitadas.

Verifica se o espaço está licenciado, se cumpre requisitos técnicos e se está autorizado a realizar determinado tipo de atos, mas não regula os profissionais. Essa responsabilidade cabe às ordens profissionais dos médicos, dos enfermeiros e dos médicos dentistas.

 “A nossa intervenção é sobre aqueles que fazem procedimentos para os quais não estão habilitados a fazer nem têm licença para os fazer.”

Pimenta Marinho - Presidente do Conselho de Administração da ERS

A própria entidade reconhece que há indefinições. “ Mesmo entre as ordens, nem tudo é claro sobre quem pode praticar o quê”, afirma Mariana Mota Torres, Vogal do Conselho de Administração da ERS.

A complexidade aumenta fora do ambiente hospitalar. Nem todos os procedimentos exigem bloco operatório, anestesia geral ou internamento. É precisamente nesse nível intermédio, onde cabe tanto uma clínica como um consultório, que a margem para ilegalidades se alarga. Os requisitos legais variam consoante o tipo de ato, o grau de invasão e o risco envolvido.

Em casos de risco, como clínicas a funcionar sem licença, atos realizados por não médicos e instalações sem condições, a ERS pode aplicar medidas cautelares. Encerrar de imediato um espaço ou emitir ordens obrigatórias de correção. Quando há indícios de crime, remete para a Procuradoria-Geral da República ou para as respetivas ordens.

As limitações são evidentes. A própria entidade admite que, por vezes, não consegue atuar sozinha, o que dificulta a fiscalização e prolonga o tempo de espera. “No mesmo estabelecimento podemos encontrar matérias de diferentes competências. Para a ERS entrar, às vezes precisa de estar acompanhada pela ASAE.”, afirma a vogal.

Sobre quem procura, quando e o porquê, pouco se sabe. Não há números oficiais por faixa etária, nem registos sistemáticos sobre o aumento da procura entre os mais jovens. Segundo a própria entidade, esse nível de detalhe só é alcançado em estudos temáticos e, até agora, não existe nenhum focado exclusivamente na área da estética.

Direito Médico

Direito Médico

Diana Coutinho e Bruna Sousa | Escola de Direito Universidade do Minho

Diana Coutinho e Bruna Sousa | Escola de Direito Universidade do Minho

No vazio dos números oficiais, crescem estimativas, relatos e suposições. Com ele, cresce também o risco de que muitos casos fiquem por contar. Há quem não denuncie por vergonha, há quem não saiba que pode fazê-lo e há quem nem sequer identifique o erro como uma falha médica ou legal.

Mas regular o espaço e a licença não basta. Quando algo corre mal, quem responde? E com base em que leis?

Em Portugal, a atuação de profissionais de saúde em contextos estéticos pode ser analisada sob diferentes primas. A responsabilidade civil, penal, deontológica e disciplinar. O que está em causa é o grau de dano, o comportamento do profissional, a qualidade da informação dada ao paciente e a legitimidade da intervenção.

A base é clara – todos têm direito à integridade física. Se uma intervenção a comprometer, mesmo que o resultado estético não tenha sido exatamente o desejado, pode haver lugar a indemnização. Diana Coutinho, professora de Direito na Universidade do Minho, explica: “A cirurgia plástica pode lesar essa integridade e, por isso, o médico ou a clínica podem ser obrigados a ressarcir os danos que o paciente sofreu”.

A lei presume a culpa do profissional. “Normalmente, para o paciente seria mais difícil provar que o médico teve culpa, por isso, presume-se que ele teve culpa. Cabe-lhe demonstrar que não falhou”, clarifica. Isto aplica-se tanto quando há contrato formal com uma clínica, como em situações onde há apenas prestação de serviços médicos isolada. O importante é saber se houve violação de um dever legal ou ético.

E a informação? Tem de ser clara, suficiente e adaptada ao paciente. A assinatura de um papel, por si só, não basta para garantir consentimento informado.

“O consentimento é a pedra de toque da cirurgia estética e tem de ser reforçado ao máximo”

Bruna Sousa, Assistente convidada na Escola de Direito da UMinho

Quando há omissão de riscos relevantes, ausência de alternativas ou falsas expectativas sobre o resultado, o ato pode ser considerado ilícito, mesmo que tecnicamente bem feito.

Essa violação pode dar origem não só a processos civis, mas também a responsabilidade penal. Dependendo do caso, pode configurar ofensa à integridade física, homicídio negligente ou exercício ilegal da medicina, se o procedimento for feito por alguém não habilitado.

A fronteira legal agrava-se quando entram em cena os menores de idade. A partir dos 16 anos, um jovem pode, em teoria, consentir num ato médico. Mas essa capacidade tem de ser avaliada individualmente. “Pode ter 16 anos mas ser muito imaturo e não perceber qual é o alcance do ato que pratica”, alerta Diana.

Já existem casos julgados em Portugal sobre cirurgias realizadas por profissionais não médicos, ou situações em que foi o enfermeiro, não o médico, a explicar o procedimento ao paciente. Os tribunais têm considerado essa delegação inaceitável.  “O médico não pode delegar o dever de informação no enfermeiro”, esclarecem.

A responsabilidade legal existe. Está escrita na lei e nos códigos deontológicos. Mas, fora do papel, continua a haver zonas cinzentas, falhas de fiscalização e fragilidade na proteção de quem procura mudar. 

Nem sempre é fácil perceber onde acaba a legalidade e começa a negligência. Onde está o limite entre o que é ético e o que é lucrativo. E entre o que o paciente quer e o que o profissional está disposto a fazer. No papel, há regras. Na prática, há atalhos.

Será que os nossos corpos são falíveis e imperfeitos?

Será que os nossos corpos são falíveis e imperfeitos?

Hoje, os procedimentos estão mais acessíveis, os resultados mais rápidos e a decisão, por vezes, tão simples como escolher um corte de cabelo.

Quando o corpo se transforma num projeto permanente, sujeito a ajustes contínuos, talvez a verdadeira urgência não esteja na mudança, mas na pausa.

Parar e perguntar: estamos a querer mudar para sermos quem, afinal?

Autoria

Lara Gonçalves

Mariana Lopes

Agradecimentos

Carlos Pinheiro
Adriana Siquara
Carina Teixeira
Ana Aires Martins
Diana Coutinho
Bruna Sousa
Mariana Mota Torres
Pimenta Marinho
Maria (fictício)
Cláudia Cerveira
Escola de Dança Ent'artes
Diana Carneiro
Diana Faria
Rómulo Soares
Mariana Duarte
Eduarda Bastos
Raquel Miranda
Lara Manhente
Beatriz Silva
Bárbara Albuquerque
Sofia Silva

Créditos

Ilustrações de Sofia Silva, aluna de Mestrado em multimédia da FEUP

Vídeo "Será que os nossos corpos são falíveis e imperfeitos?"- excerto da música Body Love de Mary Lambert;