Entre acordes e desafios: O mundo do jazz em Portugal

A ideia da estrela musical, dos fãs, do sexo, drogas e rock ‘n’ roll é apenas um mito para os músicos portugueses, principalmente no mundo do jazz. Com o atual investimento na cultura, vingar como músico de jazz torna-se “difícil”.

O que é o jazz?

O jazz é um estilo musical originário do blues, “das work songs dos trabalhadores negros norte-americanos, do negro spiritual protestante e do ragtime”, de acordo com um artigo do Jornal Público. Foi no século XX que o termo “jazz” começou a ser utilizado para descrever a música que nascia em New Orleans, Chicago e New York. Entre os grandes nomes do jazz estão Nick LaRocca, Jelly Roll Mortonador, King Oliver e Sidney Bechet. Em Chicago, os trompetistas Louis Armstrong e Bix Beiderbecke destacavam-se e, em New York, Fats Waller e Fletcher Henderson. Aos poucos, foram-se consolidando grandes orquestras, como as de Duke Ellington, Count Basie, Cab Calloway e Earl Hines. 

Em Portugal, de acordo com o estudo “Mensageiros do Jazz: A Importância dos divulgadores no percurso do Jazz em Portugal no século XX”, os primeiros artigos sobre jazz publicados datam da primeira metade da década de 1920. Trata-se de crónicas e/ou artigos de opinião sobre jazz, então designada por "Música Hot", "Hot Music" ou "Jazz-band". É a partir de 1950 que se consolida um trabalho recorrente de divulgação do jazz principalmente pelas mãos de Luís Villas Boas e Manuel Rocha Brito Guimarães. O primeiro fundou um dos mais relevantes clubes de jazz em Portugal, o Hot Clube Portugal, que destacaremos mais à frente, na reportagem, pela sua importância no panorama nacional do jazz.

Correspondência trocada entre Luís Villas-Boas e Manuel Rocha Brito Guimarães (HotNews Nr.o 02 – Maio de 2010) Foto retirada de Jazz.pt

Correspondência trocada entre Luís Villas-Boas e Manuel Rocha Brito Guimarães (HotNews Nr.o 02 – Maio de 2010) Fotografia retirada de Jazz.pt

Correspondência trocada entre Luís Villas-Boas e Manuel Rocha Brito Guimarães (HotNews Nr.o 02 – Maio de 2010) Fotografia retirada de Jazz.pt

Primeira jam-session pública realizada no Café Chave D'Ouro, em 6 de Fevereiro de 1948. Luiz Villas-Boas está entre Pops Whitman (percussão) e Art Carneiro (clarinete). Esta fotografia é da autoria de Augusto Mayer. Foto retirada de Jazz.pt

Correspondência trocada entre Luís Villas-Boas e Manuel Rocha Brito Guimarães (HotNews Nr.o 02 – Maio de 2010) Fotografia retirada de Jazz.pt

Correspondência trocada entre Luís Villas-Boas e Manuel Rocha Brito Guimarães (HotNews Nr.o 02 – Maio de 2010) Fotografia retirada de Jazz.pt

Guilherme Fradinho tem 20 anos. Sentado na cadeira ao lado do gira discos antigo, abre a grande mala preta e tira o saxofone. Logo a seguir, chega Gustavo Antunes. Pede ajuda para carregar o material, a guitarra e o amplificador. O som do saxofone e da guitarra ecoam no sótão com teto de madeira. O ritmo é marcado pelos pés que batem na tijoleira fria. Aquecem-se os instrumentos com o primeiro sopro, o primeiro dedo nas cordas.

Ambos estudantes de música jazz, o primeiro já passeia no centro de Lisboa, está a meio da licenciatura na Escola Superior de Música. Gustavo ainda não chegou à maioridade mas já tem em mente um futuro nesta área.

Os inícios são distintos mas ambos sentem que crescer num seio familiar com uma relação próxima da música é um passo para ganhar uma paixão. O clique em Guilherme aconteceu quando o pai o levou “a um ensaio de garagem de uma banda de Ílhavo e, nesse dia, disse que queria aprender a tocar”. O saxofonista tocou guitarra dos 8 aos 10 anos antes de ir para o Conservatório de Música de Aveiro aprender clássico. “Nunca me satisfez muito a música clássica, principalmente a guitarra. É um trabalho muito a solo”. O jazz trouxe a Guilherme “uma cultura envolvente e de partilha” que mudou a sua vida e a forma de pensar a música.

Aos 15 anos decide arriscar. Mergulhar num curso de artes nem sempre é uma opção segura, principalmente para os familiares. Para os pais de Fradinho, nome para os amigos, foi diferente. “A minha mãe, na altura, não queria muito que eu fosse para Coimbra, arranjar casa e tudo, mas o meu pai sempre foi na boa”. “Tive de andar um ano a testar terreno”. No ensino secundário muda-se para Coimbra.  

Gustavo Antunes 17 anos, Estudante do 12º ano no Conservatório de Música de Coimbra

Seguir o sonho tem momentos de enorme realização mas muitas vezes as dificuldades também se fazem sentir. Para Gustavo, na mesma situação que o colega, “viver sozinho pela primeira vez, com 14 anos, não foi nada fácil”. No Conservatório de Música de Coimbra, a carga horária de aulas é grande e somam-se ainda os concertos e o estudo fora de horas. “Havia semanas muito exaustivas”.


A grande maioria dos alunos inscritos em cursos artísticos especializados no ensino secundário não concluíram o curso até ao 12º ano, de acordo com dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC). Os dados correspondem aos anos entre 2013 e 2022. A professora do Conservatório de Coimbra, Andreia Santos, refere que, no secundário, há muita oferta, “aliás, há tanta oferta que há cursos profissionais que entretanto fecharam por falta de alunos”.

Dados retirados do Instituto Nacional de Estatística (INE)

A professora considera que, pelo contrário,  “no ensino superior há mais procura do que oferta”. Para Gustavo, essa é ainda uma das suas maiores preocupações. “Há poucas universidades e poucas vagas, principalmente para guitarra, que é um instrumento muito tocado”.

Em Portugal, existem apenas quatro universidades com licenciatura especializada em música jazz, duas em Lisboa, uma no Porto e uma em Évora. 

Gustavo continua a viver e a estudar em Coimbra, no secundário, já Guilherme conta-nos o seu percurso de acesso à universidade. “Tive um ano parado porque só havia uma vaga”. Durante esse período, deu aulas de formação musical a crianças. O saxofone manteve-se guardado. “Apesar disso, nunca pensei em desistir. Queria voltar a fazer as provas e fiz”.

Consegue entrar no ano seguinte e enfrenta logo desafios. “Aqui tens de gerir o tempo como um adulto que quer seguir a cena, é bue estranho”, as palavras contrastam com o seu ar descontraído.

“O meu maior medo é não fazer aquilo que gosto”

O futuro não lhe sai da cabeça e Guilherme sabe que o mercado de trabalho não tem lugar para todos. “O meu maior medo é não fazer aquilo que gosto”. Gustavo também já pensa no ecossistema jazzístico. “A música em Portugal é uma área com pouca saída”.

Depois da licenciatura, há um vazio que se instala. Uma das opções mais habituais para recém licenciados é o mestrado em ensino, mas seguir essa vertente não é a melhor opção para Guilherme. “Para ser professor é preciso mesmo ter uma vocação, saber ensinar”.

Com o fim dos mestrados nacionais em ensino de jazz, a preocupação de Guilherme é evidente. “Há o mestrado em ensino de música em Aveiro mas depois não estás onde as coisas acontecem”. Gustavo suspira: “As oportunidades em Portugal estão muito focadas em Lisboa e no Porto”.

Em Coimbra, nenhum dos dois sente que não está num dos epicentros da música, “lá também há coisas a acontecer”. No entanto, “em Lisboa vais tocar quando quiseres, onde quiseres”. “Sais à noite, conheces pessoas, tocam, e é assim que se evolui. É muito importante conhecer pessoas”.

Andreia Santos também destaca esse ponto. “A maioria do mercado de jazz está em Lisboa e nos grandes centros populosos”. De acordo com a agenda do Jazz.pt, revista financiada pela Direção Geral das Artes, de 4 a 31 de janeiro de 2024 aproximadamente 36% dos eventos de jazz em Portugal vão decorrer em Lisboa e 37% no Porto.

Apesar disso, nem tudo é mau. Cada vez, há mais oportunidades para os aspirantes a músicos ganharem visibilidade. A Festa do jazz, o Prémio de Jovens Músicos e o Campus Jazz são apenas três exemplos entre os que enumeram. Além disso, mesmo dentro do curso, os estudantes sentem-se realizados. “A maior parte dos professores que tenho, e tive, estudaram lá fora e tiveram aulas com músicos que nós idolatramos”.

“Começar a ensinar não foi uma decisão”

Um dos professores a que Guilherme Fradinho se refere é Filipe Melo. O músico e professor conta-nos que estudou em Boston “numa altura em que não havia ensino superior de jazz em Portugal”. “Há 20 e tal anos, não era uma carreira muito óbvia, então tive de ir para a América. Tive não, queria ir para a América porque ali estavam os músicos que mais gostava”.

Antes de se aventurar pelo mundo, Filipe já tocava e era “obcecado pelo jazz, em grande parte graças ao Hot Club”.

A história do Hot Club remonta a 1945 quando um grupo de apaixonados por jazz se começa a reunir em casa dos irmãos Sangareau. Luiz Villas-Boas, os irmãos Ivo e Augusto Mayer, Gérard de Castelo Lopes e Helena Villas-Boas metiam discos e tocavam.

O grupo foi alargando e organizando sessões de jazz, com músicos portugueses e estrangeiros. Em 1950, foram aprovados os Estatutos do Hot Clube de Portugal com o slogan “Divulgação da Música de Jazz”. A partir daí organizaram-se festivais, concertos com músicos famosos, gravação de discos e muitas jam sessions.

O Hot Club é um dos mais antigos clubes de jazz da Europa. Para Filipe era mais do que um clube, “mais do que uma escola”. “Havia ali muita paixão e dedicação”. “O importante era estar no clube e aprender um bocadinho a tocar e a conversar com os músicos mais experientes”.

A escola marcou tanto a vida de Filipe que, quando voltou da América, começou a dar aulas no Hot Club. A área do ensino foi entrando na sua vida de uma forma orgânica. Passou por muitas escolas diferentes, como a Escola Profissional de Música de Almada, a Universidade de Évora, a Universidade Lusíada e a Escola Superior de Música de Lisboa, onde ensina até aos dias de hoje.

Também para a professora Andreia Santos “começar a ensinar não foi uma decisão”. “Não era o que eu queria fazer de imediato, naquele ano, mas é o processo normal de quem sai de uma licenciatura devido ao mercado de trabalho existente”.

Ao ensinar, o professor tem uma visão muito clara das dificuldades do mundo do jazz em Portugal. Uma das primeiras adversidades consiste precisamente na entrada na universidade. Filipe considera que os “exames de admissão, pelo menos na Escola Superior, são ingratos, duros e exigentes”. “Eu conheço tanta gente que não passou pelo ensino superior que toca tão bem, tanta gente que passa que, de repente, não tem a chama. Isso não pode ser um fator determinante para o sucesso”.

Já para quem consegue estudar nestas instituições, um dos problemas é a relação com o mercado de trabalho. “O meio da escola é sempre muito fechado, os concertos são na escola, não há muitas colaborações, e, muitas vezes, é por indisponibilidade das próprias escolas". "Isso é o que me choca mais."

Filipe Melo reconhece que são eventos que dão trabalho. A falta de reconhecimento do “esforço dos professores” e de uma “evolução na carreira” não ajudam. “Porque hão de lutar por uma instituição que não os reconhece?”.

A ligação a profissionais do meio torna-se ainda mais importante quando falamos de uma área “difícil”. “É uma vida de constante trabalho. Implica muitas horas de estudo e de concertos, muitas vezes, com poucas condições”. Andreia concorda: “Não acho que haja falta de trabalho, mas cada vez são mais precários e há menos sítios para tocar”.

Filipe, pela experiência, vê que, apesar de “haver uma fase de grande dedicação e pouco retorno, a longo prazo, se houver persistência, as oportunidades vão surgindo”. Andreia aponta ainda que “o panorama nacional jazzístico tem estado a evoluir e a forma como é visto em Portugal também”.

A professora admite que os problemas não estão na falta de músicos mas sim na falta de público. “Alguém que tenha projetos próprios e seja trabalhador vai ter sempre público, claro que é sempre dentro de um nicho de mercado”. “É preciso educar público”.

A música jazz foi, entre 2015 e 2022, o género com menos sessões de espetáculos ao vivo em Portugal, a partir de dados do Instituto Nacional de Estatística. Mesmo assim, em 2022, o número de concertos de jazz ultrapassou o seu próprio recorde desde 2015.

Dados retirados do Instituto Nacional de Estatística (INE)

Mesmo com todos os entraves, os dois jovens vão continuar a fazer música e a apostar no jazz no seu país. Guilherme resume todas as inquietações numa frase:

“Um professor meu disse-me uma vez que o mundo não precisa de músicos bons, precisa de músicos que trabalham pela sua individualidade”.