Depois do sonho do futebol
"Nunca tive um plano": a nova vida de ex-futebolistas
por Carlos Marques e Paulo Folha
Um futebolista da primeira divisão recebe um salário mínimo três vezes mais alto do que a maioria dos portugueses. A revelação foi feita pelo presidente do Sindicato dos Jogadores, Joaquim Evangelista, em 2017. E quando os jogadores de futebol acabam a carreira? A fonte de rendimento estável termina de um dia para o outro e muitos não têm um plano para depois do futebol.
De acordo com a nossa base de dados, os atletas da primeira liga terminam a carreira, em média, aos 35 anos. Mais de 60% continua ligado ao futebol, mas apenas um em cada dez ex-jogadores está ligado diretamente à primeira divisão. Há uma variedade grande de caminhos profissionais escolhidos pelos futebolistas, no final da carreira.
Tarantini é professor universitário, orador e escritor, mas quer voltar ao futebol. Pedro Cervantes é despachante aduaneiro e co-proprietário de uma escola de futebol. Luís Dias e Nuno Coelho optaram pelos investimentos imobiliários, embora Nuno também seja comentador televisivo. Afonso Brito deixou de jogar para estudar medicina.
"Há que estar preparado para mudar de vida"
Jogador e mentor
Entre pinhais, rio e mar, no centro de Vila do Conde, encontramos um futebolista que não esperou pendurar as chuteiras para preparar o futuro. Prosseguiu os estudos e licenciou-se em Ciências do Desporto, na Universidade da Beira Interior. Mais tarde, obteve o grau de mestre no mesmo curso. Tudo isto enquanto disputou 13 épocas na primeira liga e se consagrou como um dos 50 jogadores com mais partidas, na história da competição. Falamos de Ricardo Monteiro, mais conhecido como Tarantini no mundo do futebol.
Tarantini disputou mais épocas na primeira liga do que 95% dos jogadores que passaram pela competição
Épocas na primeira liga:
Terminou a carreira em 2021 e, no ano seguinte, concluiu o doutoramento. Tornou-se o primeiro futebolista profissional, em Portugal, a obter o grau.
Dois anos depois do ponto final enquanto futebolista, Tarantini constata que a formação académica foi um fator decisivo para uma transição de carreira mais suave. “Não tenho dúvidas nenhumas de que ter um plano B me permitiu deixar de jogar sem ter de me arrastar pelas divisões secundárias”. Tarantini acabou a carreira com 37 anos, ao serviço do Rio Ave FC, na primeira divisão.
O ex-capitão do clube vilacondense acrescenta que, mesmo tendo-se acautelado, “transitar de carreira foi muito duro. É um vazio enorme que fica depois de tantos anos de futebol. Deixa de haver as rotinas e a estabilidade da carreira. É necessário deixar passar algum tempo desde o fim da carreira, é preciso um tempo de luto”,
Ainda antes de abandonar os relvados, o futebolista natural de Baião já procurava consciencializar atletas sobre a importância de não deixar para trás os estudos e de ter um plano para o final. “Comecei a evidenciar transtornos nos meus colegas de balneário e a ouvir notícias sobre ex-jogadores com problemas financeiros. Percebi que, devido à minha história e à minha formação, podia despertar mentalidades”, conta-nos. Foi assim que surgiu “A minha causa”.
“O projeto procura consciencializar e alertar jogadores de futebol, alguns ainda em idade de formação, para a necessidade de preparar o futuro. “Realizo ações como palestras em escolas, clubes e empresas. Importa perceber que a transição de carreira é um processo que deve acontecer desde que um futebolista começa a jogar. Tem de haver um acompanhamento permanente”, explica Tarantini.
Para o antigo atleta, é preciso acabar com a ideia de que os estudos fazem com que os jogadores não se foquem no futebol. “É uma ideia transversal aos pais, treinadores e aos próprios atletas e é claramente um mito. Há tempo para tudo”. Para Tarantini, os critérios dos treinadores são, muitas vezes, injustos. “Se estão preocupados com o facto de os jogadores de futebol estudarem, porque é que não se preocupam também por eles estarem a jogar PlayStation?”.
Depois das mais de 110 palestras que já deu a mais de dez mil pessoas e dos livros que já escreveu, a perceção dos atletas sobre as dificuldades na transição de carreira está a mudar? Tarantini responde que “agora a consciencialização dos jogadores é maior, mas no futuro vai melhorar ainda mais”. O baionense não esconde o orgulho de ter feito parte desse processo. “Acredito que mostrei aos futebolistas que é possível terem novas ferramentas quando acabam a carreira”.
O mundo do futebol não é uma ciência exata e os rumos que as carreiras seguem não são previsíveis, mas Tarantini tem uma certeza. “Um dia a vida de jogador de futebol vai terminar e há que estar preparado para mudar de vida. Isso parte da criação de investimentos e também de uma preparação psicológica”.
Para além de orador e escritor, Tarantini leciona em três universidades – ISCTE, ISMAI e Universidade Lusófona do Porto – e já trabalhou como treinador-adjunto na Primeira Liga, mas não se fica por aqui. “Recentemente, lancei uma nova empresa que visa a gestão de carreira de jogadores profissionais, mas não numa perspetiva de agente. É uma gestão relacionada com aumentar os níveis em várias áreas da performance do jogador”, explica.
Apesar do leque diversificado de funções que desempenha, Tarantini não hesita quando refere que o seu objetivo futuro é voltar ao futebol. “Escolhi a área do treino para ser a minha atividade principal. É o caminho que estou à procura, mas depende das oportunidades e dos projetos”. Tarantini possui o curso de treinador UEFA A (Grau III) e está a frequentar, neste momento, o curso UEFA Pro (Grau IV).
Dar asas aos sonhos
O barulho de aviões a descolar contrasta com o silêncio que emana junto ao relvado. O treino está a ser preparado e ainda não se faz sentir a presença dos jovens. Estamos no Estádio Municipal de Pedras Rubras, a escassos metros da pista do Aeroporto Sá Carneiro. Aqui acontecem os treinos da escola de futebol “Football PT”. Pedro Cervantes e Rui Marques são os fundadores do projeto.
“Tudo começou em conversa com o Rui. Detetamos muitos problemas básicos em miúdos de 18 anos, que tinham dificuldades em fazer uma receção orientada ou um passe curto e optámos por criar a academia. Já lá vão quatro anos”, conta Pedro. É de salientar que o ex-atleta já foi treinador de formação em clubes de futebol. Em 2017/18 orientou os juvenis do Varzim SC e, dois anos depois, comandou os juniores do Leixões SC.
Na escola de futebol, Pedro e Rui complementam-se. “Eu trato da parte dos jogadores de campo e o Rui está ligado à parte de guarda-redes”, esclarece Pedro. Ao contrário do que acontece no futebol de formação, a “Football PT” não compete e isso, para Pedro, é vantajoso para a evolução dos jovens jogadores. “Nós aqui só ensinamos. Ninguém nos cobra nada, nem temos pais a pedir para os miúdos jogarem muito ou pouco tempo. É isso que me dá gozo”.
Há mais fatores que diferenciam esta academia de um clube tradicional de futebol. “No nosso treino, os jovens estão durante uma hora a tocar na bola. Nos clubes, há uma bola para vinte miúdos. Aqui, cada um deles tem uma bola para si”, enaltece Pedro.
Os atletas da “Football PT” têm uma idade compreendida entre os oito e os dezasseis anos e são divididos por dois grupos. Pedro sublinha que a ideia não passa por haver muitos atletas inscritos na academia, mas sim por dar uma atenção particular a cada um. “O que nós prometemos a todos os pais, quando inscrevem os seus filhos na nossa escola, é um trabalho de excelência focado na técnica individual dos jogadores”.
Situados a pequenos passos da pista de um aeroporto, onde, de cinco em cinco minutos, os aviões preenchem o céu por cima do Municipal de Pedras Rubras, os atletas são encorajados a voar alto. Por isso, uma das preocupações de Pedro é também manter os pés dos jovens atletas bem assentes no chão. “A maior parte pensa que é só preciso saber jogar para conseguirem ser profissionais. Digo-lhes que não é assim. Não basta serem bons, têm de trabalhar. Há muitos atletas com imensa qualidade técnica que nunca vingaram no futebol”.
Atualmente, Pedro não está ligado ao futebol para além da sua escola. É despachante aduaneiro na TPT, onde gere importações e exportações. “Sinto-me realizado profissionalmente. É uma experiência fantástica e são conhecimentos novos que estou a adquirir”.
Pedro garante que não é fácil adaptar-se a uma nova realidade e contexto laboral. “Foram 20 anos ao serviço do futebol. Tenho 41 anos e a TPT é apenas o meu segundo trabalho.” Confessa que, “quando jogava futebol, nem sequer sabia o que era um despachante aduaneiro”. Pedro Cervantes deixou de jogar aos 34 anos, no FC Pedras Rubras.
Rui Marques (à direita) é um dos fundadores da "Football PT"
Rui Marques (à direita) é um dos fundadores da "Football PT"
Pedro Cervantes (ao centro)
Pedro Cervantes (ao centro)
Qual era o caminho que Pedro queria seguir?
“Na fase final da minha carreira, fui tirando a minha formação como treinador de futebol e tenho, neste momento, o Grau II. Era aquilo que eu idealizava seguir”. Pedro arrepende-se, no entanto, de não ter começado a precaver a sua retirada dos relvados em tempo oportuno. “Deveria ter tirado os seguintes Graus de treinador mais cedo. Anteriormente, demorava pouco mais de três meses. Hoje, é necessário um ano”.
29% dos ex-atletas ainda ligados ao futebol são treinadores
Profissões atuais de ex-jogadores de futebol ligados à modalidade:
Depois do adeus aos relvados, Pedro decidiu fazer uma pausa a nível profissional nos momentos imediatamente seguintes ao fim da carreira de jogador de futebol para perceber o que realmente queria seguir. “Sempre tive o cuidado de não esbanjar o dinheiro, portanto tinha um pé-de-meia que me permitiu parar”.
A pausa, num período inicial, não se revelou fácil. “Foram vários anos com a mesma rotina. Foi difícil no primeiro ano”. O momento de paragem profissional no final da carreira e as experiências que acumulou como treinador de formação fizeram Pedro mudar de ideias quanto ao seu futuro. “Hoje em dia, os empresários e esse meio envolvente mandam nos clubes. Nunca pactuei com isso. Percebi que, para chegar a um nível alto enquanto treinador, iria ter de voltar a engolir muitos sapos. Preferi começar a trabalhar como uma pessoa normal”.
Um em cada oito está na primeira divisão
Divisão onde trabalham os ex-futebolistas que agora são treinadores:
Na nossa base de dados, encontrámos 39 atuais treinadores que, enquanto futebolistas, jogaram na primeira divisão. Mais de metade, treina agora nos escalões de formação ou nas divisões distritais. Menos de 30% conseguiu atingir o patamar das duas primeiras divisões nacionais.
Pedro conta que voltar a integrar a equipa técnica de um clube de futebol não é um objetivo a curto prazo. “Se tivesse a oportunidade de ir treinar ou ir para adjunto de uma equipa, não trocava. Estou num emprego com margem de progressão e não o trocaria por uma carreira instável como é o futebol”. O atual despachante aduaneiro conhece histórias de colegas que trabalham sem vencimento somente para continuarem ligados ao futebol, mas garante que, para ele, “isso não funciona”.
"Acabar a carreira foi um alívio"
Nem todos os ex-jogadores de futebol sonham continuar ligados à modalidade. É o caso de Luís Dias. Fez duas épocas na Primeira Divisão, deixou de jogar aos 33 anos e encontrou uma nova paixão. Agora, é o fundador da Wonderhome, empresa de investimentos imobiliários. “Comecei quase que por acaso. Fiz o meu primeiro investimento aos 26 anos e acabou por correr bem”.
O atual investidor arriscou e, enquanto ainda jogava futebol, lançou-se numa área fora da zona de conforto. “Não conhecia nada deste setor, nem a diferença entre materiais. Comecei praticamente do zero. É uma área muito ligada aos números e eu, na brincadeira, costumo dizer que só sabia fazer contas de somar e de sumir”. Mesmo assim, Luís revela que “tem corrido muito bem”.
Os investimentos no setor imobiliário não foram o único meio de Luís se preparar para o final da carreira. É licenciado em Educação Física e sonhava ser professor. Hoje, a vida seguiu outro rumo, mas o atleta natural de Penafiel não se arrepende. “Nessa altura, era a minha paixão e via-me a dar aulas no futuro. Entretanto, surgiu o imobiliário e sinto-me bastante realizado”. Luís lecionou durante um ano, em paralelo com a carreira de futebolista profissional.
Também foi treinador-adjunto nos escalões de formação do FC Penafiel e cedo se apercebeu que o seu futuro não passava por ali. “Com a minha forma de ser, não me iria enquadrar. Gosto de ciências exatas. No futebol, não há uma variante concreta. É mais qualitativo do que quantitativo, ao contrário do que acontece no imobiliário”.
"Sou mais feliz agora"
Luís optou por fazer uma rutura total com o futebol e arrepende-se apenas de uma coisa. “Se soubesse o que sei hoje, tinha começado a investir mais cedo. Os melhores investimentos a longo prazo são no imobiliário. Sou mais feliz agora do que a jogar futebol”.
O setor imobiliário é a área extra-futebol mais seguida pelos antigos jogadores
Áreas profissionais dos ex-futebolistas, atualmente:
Já existem futebolistas a procurar a Wonderhome para investir e Luís quer trazer cada vez mais atletas para o setor imobiliário. Para isso, vai implementar, na sua empresa, um plano especial para jogadores de futebol. “Quero criar fundos de investimentos direcionados a jogadores de futebol. A ideia é eles poderem comprar imóveis mais baratos em relação ao preço de mercado para obterem mais rentabilidade na venda”.
Luís considera que os jogadores de futebol são mal aconselhados e que não gerem o dinheiro da melhor forma. "Se um jogador ganha dez mil, faz uma vida de dez mil. Algum dia a fonte fecha e tudo acaba por romper. Se investirem connosco, têm um plano para prepararem a vida”, realça Luís.
Há pontes de contacto que são possíveis de traçar entre o futebol e o imobiliário. Quem o afirma é Luís. O ex-desportista frisa que o facto de ter sido jogador de futebol lhe deu “uma bagagem muito grande para encarar a vida”.
“Aprendi a ter a capacidade de resolver problemas e a superar os momentos de adversidade. No imobiliário, acontece a mesma coisa. Nem tudo é um mar de rosas, nem tudo corre bem. Temos de nos reinventar e encontrar soluções para ter sucesso”.
Despedida forçada
Nasceu na Covilhã, mas trocou a serra pela praia e estabeleceu-se na Póvoa de Varzim. Com o mar como pano de fundo, Nuno Coelho desabafa sobre a lesão que o obrigou a terminar a sua carreira aos 34 anos. “Sentia-me bem fisicamente e o meu objetivo era jogar mais alguns anos. Fica um sentimento de impotência por ter de deixar o futebol logo na minha primeira lesão grave de sempre”, afirma.
Nuno não tomou logo a decisão de pôr um ponto final na carreira. “Andei a adiar esse momento. Estive um pouco em negação, porque não queria assumir que ia ter mesmo de parar. Mas segui com a minha vida. Depois do futebol, ainda há mais 50 anos para viver”.
Durante a parte final do seu percurso futebolístico, o ex-capitão do GD Chaves começou a investir o seu dinheiro, o que evitou complicações no momento da retirada. “Ao longo da minha carreira, comecei a comprar apartamentos para arrendar. Quando abandonei o futebol, tinha tudo bem orientado e consegui continuar a viver uma vida tranquila”.
O historial de Nuno possui uma particularidade. Jogou fora de Portugal, ao contrário de Tarantini, Pedro Cervantes e Luís Dias. Foi apenas uma época, na Grécia. "Estive um ano lá fora e queria dar continuidade, mas ainda tinha três anos de contrato com o Benfica e fui praticamente obrigado a ir para Arouca".
Quase 40% dos ex-jogadores da primeira liga nunca jogaram no estrangeiro
Número de épocas no estrangeiro dos ex-futebolistas da primeira divisão:
Uma transição de carreira bem planeada foi fundamental para Nuno conseguir ultrapassar o imprevisto da lesão grave. “Se aquilo que me aconteceu a mim tivesse acontecido a um colega sem um plano B, ia ser uma situação muito complicada”, reflete.
Os investimentos imobiliários de Nuno vão para além dos apartamentos para arrendar. “Comprei um terreno na Póvoa de Varzim, mas não gostava de viver naquela zona específica. Fiz um projeto com quatro moradias individuais com piscina para vender e foi assim que entrei no setor”.
Nuno acrescenta que abraçou a área do imobiliário, no final da carreira, e que essa é a sua principal ocupação atualmente. “Esta atividade preenche-me bastante o dia. Acabei por nem sentir um vazio quando deixei de jogar”.
Não cortou relações com o futebol e continua ligado à modalidade. Para lá do imobiliário, Nuno é também comentador na SportTV. Ser treinador de futebol não é uma opção retirada da equação. “Estive ligado ao treino durante vários anos como jogador. Gostava de experimentar enquanto treinador”, admite. Por enquanto, as intenções do ex-atleta são continuar a investir no setor imobiliário, uma área que Nuno está "a aprender a gostar”.
Do futebol para a medicina
Não há movimento nas ruas. A chuva afasta as pessoas das imediações da Praia da Madalena, em Vila Nova de Gaia. É lá que mora Afonso Brito. Jogou na Primeira Liga e nas seleções jovens de Portugal, mas decidiu acabar a carreira de futebolista aos 21 anos para estudar medicina. Não há registo de abandonos mais precoces, na nossa base de dados.
Há mais futebolistas a terminar a carreira depois dos 40 anos do que antes dos 30
Idade de abandono do futebol (em %):
No escritório de sua casa, Afonso explica que a escolha, apesar de difícil, aconteceu de forma muito natural. “Tive uma lesão complicada no joelho, cujo tratamento podia deixar mazelas. As coisas naquela fase também não me estavam a correr bem e, como tinha o curso de medicina em suspenso, optei por parar de jogar futebol”.
O gaiense não é o primeiro elemento da sua família a optar pela medicina. A avó do ex-jogador é médica e “viu com bons olhos” a decisão de Afonso optar pelo curso em vez do futebol. “Os meus familiares mais próximos sempre me arrastaram mais para a parte da medicina”.
Hoje em dia, Afonso confessa que para e pensa no que podia ter acontecido se não tivesse deixado o futebol. “Devia ter tido mais resiliência. Já pensei seriamente em voltar e recebi convites nesse sentido, mas estou satisfeito com a minha opção. Adoro o meu curso e mal posso esperar por exercer”.
O passado como jogador de futebol é útil e motiva Afonso no curso de medicina. “Às vezes estou nervoso para um exame e lembro-me que já joguei perante milhares de pessoas. Passo logo a ver o exame como algo simples”.
Futebol e Medicina: caminhos cruzados no futuro
Afonso ainda não decidiu por qual especialidade vai enveredar, mas não descarta a possibilidade de conciliar a medicina com o futebol, no futuro. “Vejo com bons olhos a ideia de exercer em parceria com um ou mais clubes. O conhecimento que tenho do desporto e as pessoas que já conheci no mundo do futebol dão-me a vantagem de conseguir juntar as duas áreas”.
Viver entre o futebol e a medicina não é novidade para Afonso. “Já tive a alcunha do médico futebolista”, declara. No último ano de carreira, o estudante tentou conciliar o curso com o desporto profissional e sublinha que o tipo de ambiente e tópicos de conversa eram completamente diferentes entre um sítio e outro. “Treinava de manhã e estava habituado a um conjunto de pessoas completamente diferentes daquelas com quem eu estava à tarde na universidade”,
Entre risos, o gaiense acrescenta que existiu sempre uma dicotomia. “As pessoas da medicina dizem-me que eu não tenho cara de médico e as pessoas do futebol dizem-me que eu não tenho cara de futebolista. Isso sempre foi tema de conversa e de brincadeira no balneário”.
Conciliar a saúde com o futebol não é novidade
Joca é fisioterapeuta no FC Porto desde 2021 / Zerozero
Joca é fisioterapeuta no FC Porto desde 2021 / Zerozero
Joca
Terminou a carreira em 2014 e, atualmente, é fisioterapeuta na equipa principal do FC Porto.
Bruno Novo trabalha como fisioterapeuta no Rio Ave FC desde 2017 / Rio Ave
Bruno Novo trabalha como fisioterapeuta no Rio Ave FC desde 2017 / Rio Ave
Bruno Novo
Começou a trabalhar como enfermeiro do Rio Ave FC, em 2016, ano em que parou de jogar futebol. Desde 2017, é fisioterapeuta dos vilacondenses. Pertence à equipa técnica dos Sub-23.
Primo foi psicólogo da AD Fafe em 2017. Terminou a carreira em 2015. / Zerozero
Primo foi psicólogo da AD Fafe em 2017. Terminou a carreira em 2015. / Zerozero
Primo
Pendurou as botas em 2015. Depois, trabalhou como treinador-adjunto na AD Fafe, em 2016, e como psciólogo do clube, em 2017.
As informações presentes no mapa e nos gráficos foram obtidas por nós e condensadas numa base de dados. Considerámos todos os atletas retirados entre 2013 e 2023, que jogaram na primeira divisão ao serviço de clubes do distrito de Braga, Porto e Aveiro.
Qual é o papel do Sindicato de Jogadores?
O Sindicato dos Jogadores (SJ) é a instituição mais preponderante na ajuda aos jogadores que terminam a carreira. A entidade procura facilitar um pouco o processo de transição de carreira, através da promoção e disponibilização de vários cursos e formações aos atletas, seja através de protocolos, seja por iniciativa própria. Anselmo Cardoso, delegado do SJ, explicou-nos a função do sindicato e as possibilidades que são oferecidas.
Anselmo é também ele um ex-jogador de futebol, que conseguiu conciliar a atividade profissional com os estudos, tal como Tarantini, por exemplo. Na opinião do atual dirigente, exemplos como estes são “a melhor maneira de influenciar e alterar comportamentos”.
Para além da interação pessoal com os jogadores, que para Anselmo “é a melhor publicidade”, o SJ também procura chegar aos atletas através do seu site, das redes sociais e do email, caso os jogadores sejam sócios da instituição.
Apesar de considerar que “os atletas atualmente já se preocupam mais com o pós-carreira e a educação do que antigamente”, nem sempre os programas têm muita eficácia. De acordo com Anselmo, num programa de conclusão do 12ª ano (em parceria com a Agência Nacional para a Qualificação e Ensino Profissional, ANQEP), houve cerca de 300 inscritos, mas apenas 15 acabaram por conseguir concluir o processo.
O ex-jogador também assegura que os cursos do próprio sindicato e da Federação Portuguesa de Futebol têm uma alta eficácia, com várias conclusões. Em relação à entrada em faculdades, o interesse dos jogadores é mais baixo, mas o dirigente destaca o exemplo de Vítor Gomes, capitão do Rio Ave, que já está licenciado e prestes a terminar o mestrado.
Na perspetiva de Anselmo, a consciencialização tem de começar logo em idade formativa, seja através dos familiares seja através dos clubes, que devem dar as condições necessárias para que os jovens não abandonem os estudos para se focar no futebol.
Pela experiência do próprio Anselmo, o estudo até ajuda o atleta a tornar-se melhor no relvado. “Para os jogadores, o estudo é visto como um motivo de desconcentração. Eu discordo. Como desenvolvemos a parte cognitiva, vamos pensar mais rápido e isso vai refletir-se no campo”, argumenta.
Quanto ao futebol feminino, Anselmo não acredita que a recente profissionalização venha alterar o cenário atual, em que a larga maioria das jogadores já tem o 12º ano concluído, estando por isso melhor preparadas.
O ex-jogador reforçou ainda o apelo a uma boa preparação da transição de carreira, de modo a permitir que os jogadores “saiam em grande, sem precisarem de se arrastar” e evitar assim situações limite como depressões, dificuldades financeiras e problemas familiares.
Os apoios em Portugal
Os apoios internacionais
Futebol feminino: desafios da profissionalização
No futebol feminino, o cenário é quase o oposto do que acontece no masculino. Há cerca de uma década, o principal desafio era ser profissional a tempo inteiro. Nessa altura, uma das poucas jogadoras a concretizar esse objetivo foi Edite Fernandes.
A antiga avançada é uma das referências das últimas décadas, tendo cumprido 132 internacionalizações pela seleção portuguesa, pontuadas por 39 golos marcados. Somou quase vinte temporadas na principal divisão do futebol feminino em Portugal e ainda passou seis épocas no estrangeiro, divididas entre Espanha, China, Noruega e EUA. Pendurou as botas em 2021, aos 41 anos.
Dois anos após a retirada do futebol profissional, Edite Fernandes tem agora uma rotina diferente. Trabalha na Junta de Freguesia de Benfica, em Lisboa, no “Projeto Safe”, relacionado com a inclusão social e a precaução do absentismo escolar. “Foi um desafio porque não estou na minha zona de conforto. Toda a minha vida foi o desporto e o futebol”.
Edite é também Team Manager no CF Benfica, embora “não a cem por cento”, e comentadora no Canal 11, onde marca presença “em quase todos os jogos da Liga BPI”.
Apesar de, neste momento, não estar totalmente ligada ao futebol, a internacional portuguesa não esconde a vontade de, no futuro, abraçar um desafio diferente e mais preponderante no mundo do desporto rei. “Exercer alguma função na Federação Portuguesa de Futebol, para mim, seria um sonho a realizar, mas é um passo de cada vez”.
No caso de Edite, a transição de carreira acabou por ser pacífica. “Já fui tentando conciliar. Quando acabei no Clube de Futebol Benfica, já estava a trabalhar com o clube noutras funções. Fui começando a pisar outros terrenos”.
Quanto a apoios, a antiga jogadora diz que não teve nenhum, porque não pediu, mas realça o papel do Sindicato nesta problemática do pós-carreira. “É uma das instituições que pode ajudar os jogadores(as) em dificuldades. Têm muitos departamentos em relação a formações e áreas que se pode projetar no futuro. Podem dar uma mão aos jogadores(as) que se veem um pouco sem chão e sem saber para onde ir”.
Apesar da preparação, Edite confessa que também sentiu o “vazio” relatado por muitos jogadores, reconhecendo que o facto de ter continuado ligada ao futebol ajudou a que a transição “custasse menos”.
Edite considera que não há muitas diferenças entre a transição de um atleta masculino e feminino… exceto nos vencimentos de cada um. “Só não há comparação no que cada um recebe. O masculino recebe muito mais do que o feminino. Embora atualmente já haja jogadoras das equipas profissionais em Portugal a receberem bons ordenados”.
As idades do fim de carreira no futebol feminino são muito mais distribuídas em comparação com o que acontece no futebol masculino.
Num passado não muito distante, a existência de uma liga profissional de futebol feminino em Portugal era quase uma miragem, o que “obrigou” Edite a mudar de cidade ainda na adolescência. “Estudei em Vila do Conde, mas só até ao décimo ano. Com 18 ou 19 anos, fui para Lisboa, para trabalhar na Expo 98. Como recebi alguns convites para jogar a nível amador, e dava para conciliar tudo, acabei por ficar”.
O objetivo do profissionalismo acabou mesmo por chegar. “Em 2007, saí de Portugal para ir para o estrangeiro e só voltei por volta de 2014. Antes disso, já tinha estado um ano intercalada entre China e Espanha”. As diferenças entre um mundo e o outro não podiam ser maiores. “Era o oito e o oitenta. Eram abismais as condições monetárias, técnicas e de estrutura que havia no estrangeiro naquela altura, em comparação com Portugal”.
Mais de 60% das jogadoras não cumpriram uma única época no estrangeiro
Edite ainda regressou a Portugal a tempo de concretizar um dos seus sonhos. “Ainda tive o prazer de concretizar um dos meus sonhos, e ser profissional em Portugal. Em 2016/17 e 2017/18 fui profissional pelo Braga, quando o clube entrou com uma equipa profissional nos campeonatos nacionais”
Na opinião da ex-atleta, este foi um dos grandes fatores para a evolução do futebol feminino em Portugal, assim como o apuramento inédito para a fase final do Campeonato da Europa, em 2017. “ Foram os pontos de viragem. Houve maior envolvência das associações e uma maior aposta da Federação. A comunicação social também teve um papel importante, ao transmitir os jogos e dar a conhecer a seleção e as jogadoras”.
Contudo, será que com a profissionalização também pode surgir um abandono dos estudos mais precoce e um relaxamento na preparação do pós-carreira? Na perspetiva de Edite Fernandes, os clubes têm um “papel importante” e já “incentivam” e “dão condições” às jogadoras para continuarem os estudos e conciliá-los com o futebol. A ex-atleta elogia também a “preocupação por parte do Sindicato e da Federação” em relação a esta questão.
As informações presentes nos gráficos foram obtidas por nós e condensadas numa base de dados. Considerámos todas as atletas internacionais por Portugal, retiradas entre 2013 e 2023.