Amor com Amor se Paga

Como é a vida de quem cuida?

Dentro de casa. Longe dos olhos do mundo. Há rotinas que se repetem com amor, mas também com dor. Quem as vê? E quem as ouve?

Cuidar sem Valor

Gestos valem mais que mil palavras

Tarde soalheira. Na sala da casa de Lígia, está o Sr. Aníbal a descansar. A televisão, ligada num canal qualquer, emite sons difusos no fundo. Um cobertor aconchega-lhe os joelhos. A luz entra suavemente pelas janelas abertas, misturando-se com o cheiro leve a café acabado de fazer. Ao ver a filha, Lígia, reage com um olhar meigo. “Ele sente quando há gente à volta. E gosta disso. Gosta de companhia, de conversa, mesmo que já não consiga acompanhar tudo. Fica mais tranquilo.”

Na Póvoa de Lanhoso, onde a tranquilidade do interior se mistura com o ritmos silenciosos da rotina, vive Lígia. Técnica de análises clínicas e mãe de três filhos. É Cuidadora Informal Não Principal do pai, Aníbal. Tem 94 anos e uma demência avançada. Há uma década que os sinais se tornaram evidentes — esquecimentos, confusões e perdas de coordenação. “Agora não me reconhece, diz que sou a do costume.”, afirma Lígia com a voz trémula.

Lígia Almeida na sala de estar

Lígia Almeida na sala de estar

A rotina da casa está organizada à volta das necessidades do Sr. Aníbal. À tarde, sentado na poltrona escura diante da televisão, come o lanche. Sopas de pão partidas em pedaços e molhadas em leite morno. Melissa auxilia a colher a chegar à boca. É uma das assistentes que ajuda Lígia nos cuidados do pai.  Ao longo do dia, os turnos vão mudando. Ao todo, são três assistentes, contratadas pela cuidadora. Fazem períodos de oito horas.

Lígia reconhece a ajuda e que, em grande parte dos casos de Cuidadores Informais, não existem rendimentos suficientes para aliviar o cansaço. Ainda assim, a mente continua ocupada. “É um trabalho a tempo inteiro”, explica. Questionada acerca da vida social não hesita em responder “não existe”. Não há espaço, nem tempo. Também a vida profissional ficou estagnada.

Lígia trabalha à distância. Tem de se deslocar ao Porto algumas vezes por semana. O que exige uma gestão minuciosa entre a vida profissional e os cuidados com o pai. “A minha carreira estagnou”, confessa. Explica que deixou passar algumas oportunidades para se dedicar à família. Os netos vivem no estrangeiro e, embora sinta pena de não poder acompanhar o crescimento deles de perto, encara essa ausência como parte da decisão que tomou. “Foi uma escolha. Quero cuidar do meu pai como ele cuidou de mim.”

Nem todos os cuidadores informais vivem realidades semelhantes. Alguns têm acesso a recursos. A redes de apoio ou maior flexibilidade profissional — mas isso não significa que a carga seja mais leve.

No território nacional, milhares de pessoas prestam cuidados regulares a familiares ou pessoas próximas em situação de dependência. Muitas vezes, fazem-no sem qualquer remuneração. Sem qualquer apoio. São os chamados Cuidadores Informais.

Segundo a Legislação Portuguesa, o Estatuto de Cuidador Informal estabelece o conjunto de regras, que regulam os direitos e deveres do cuidador e da pessoa cuidada, assim como, determina as medidas de apoio.

Em 2019, foi aprovado com o objetivo de reconhecer, zelar e apoiar o cuidador e a pessoa cuidada. Ao longo dos anos tem sofrido várias alterações, uma vez que ainda são muitos os que prestam cuidados sem o reconhecimento deste estatuto. Ana Carla Seabra, diretora do Núcleo das Prestações Familiares e de Solidariedade, do distrito de Aveiro, afirma que a população, na maioria dos casos, não tem sequer conhecimento do regulamento, nem dos auxílios que as instituições podem dar a quem se encontra neste regime. Cada vez mais é necessário estar informado sobre as ajudas e os apoios que existem, acrescenta.

Quais as condições para ser-se reconhecido, legalmente, como Cuidador Informal?

Segundo o Diário da República, o Cuidador tem de ter idade igual ou superior a 18 anos, disponibilidade e condições de saúde adequadas aos cuidados a prestar à pessoa cuidada.

As exigências são apertadas e deixam de fora muitas situações reais, onde o cuidado é feito de forma contínua, mas sem o enquadramento exigido por lei. Ainda assim, os critérios vão mais além.

O Governo português distingue os Cuidadores em duas categorias: Cuidador Informal Principal e Não Principal. Segundo a diretora do Núcleo “nem todos prestam cuidados da mesma forma nem com a mesma intensidade” e, por isso, o regulamento faz a distinção dos direitos, apoios e obrigações de cada um.

Cuidador Informal Principal

Até 2024, para ser-se reconhecido pelo Instituto de Segurança Social (ISS) como Cuidador Informal Principal, o cuidador tinha de ter um elo familiar até ao quarto grau com o cidadão cuidado, residir na mesma casa e não trabalhar. Porém, o legislador, após diversas queixas das associações de Cuidadores alterou os parâmetros.

A partir de 2025, se o Cuidador for familiar e cuidar a tempo inteiro da pessoa, mas não tem a mesma morada fiscal pode ser considerado principal, explica Ana Seabra. Assim como, a um amigo ou vizinho pode ser atribuído esta categoria, se coabitar e cuidar a tempo inteiro do dependente. Nesta condição, não pode receber pensões por invalidez absoluta, nem beneficiar de prestações por dependência.

Cuidador Informal Não Principal

Reconhecido também pela Segurança Social existe o Cuidador Não Principal, ou seja, os familiares, amigos ou vizinhos que acompanham e apoiam a pessoa cuidada, mas não residem no mesmo domicílio, nem prestam cuidados permanentes. Deste modo, não podem receber o subsídio de apoio.

Associação Nacional de Cuidadores Informais

Lígia é associada da Associação Nacional dos Cuidadores Informais (ANCI). Com sede na Amora, em Lisboa, a organização, sem fins lucrativos, foi pioneira a lutar pelos direitos dos Cuidadores. Em 2016, entregaram uma petição na Assembleia da República. Três anos antes do Estatuto ser aprovado. Em 2018 constituíram-se legalmente. Dois anos decisivos para a luta dos direitos dos Cuidadores.

Maria Anjos Catapirra, Cuidadora Informal há 17 anos e vice-presidente da ANCI, é uma das vozes mais ativas deste movimento. “O nosso papel é essencial para tentar que a legislação, que não tem quase direitos nenhuns para os cuidadores, seja alterada”, afirma. “Queremos que nos dê direitos para podermos cuidar. Fazer a ponte entre aquilo que as pessoas precisam e o governo.”

"Não sabemos cuidar. Queremos capacitação."
Maria Catapirra, Vice-Presidente ANCI

Foto cedida por Maria Catapirra

Foto cedida por Maria Catapirra

" Precisamos de direitos para podermos cuidar"
Maria Catapirra, Vice-Presidente ANCI

A associação oferece apoio social. Promove grupos de autoajuda e garante acompanhamento psicológico a quem cuida. Maria Anjos expõe as dificuldades do requerimento do estatuto: “O processo é extremamente complicado.” Em dezembro de 2024, a associação foi distinguida com o Prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República — um reconhecimento simbólico do impacto do seu trabalho.

Apesar dos avanços, o caminho continua desigual. “A maioria das medidas estão legisladas, mas não estão implementadas”, critica. Defende a necessidade urgente de capacitação dos Cuidadores: “Não sabemos cuidar. Fazemos o melhor que podemos, mas ninguém nos ensina.”

A realidade é dura. “A maioria dos Cuidadores são pobres, deixaram de trabalhar e não têm rendimento. Ou estão numa idade avançada, já reformados.”, afirma a vice-presidente. São vidas dedicadas ao cuidado, muitas vezes em silêncio, quase sempre à margem. A idade da maioria dos Cuidadores é superior aos 50 anos, no que se traduz, perto da reforma antecipada ou até mesmo na reforma, ou seja, recebem uma prestação. Não podendo estar abrangidos pelo subsídio.

Evolução Legislativa

Ilustração retirada do Diário do Alentejo

Ilustração retirada do Diário do Alentejo

"Os meus filhos são as minhas mochilas"

Indira abre as portas de casa e do coração. Conta a história da família Ventura. Calma e instalada no sofá, enquanto os raios de sol de um fim de tarde penetram entre as cortinas, admite, com um sorriso de orelha a orelha, que os filhos são as suas mochilas. “Vão comigo para todo o lado”.

Indira Ventura é cuidadora do filho mais velho, de 9 anos. Sempre bem-disposta e risonha, diz ter crescido no seio de uma fortunada família. É natural de Angola. Veio para Portugal, em 2019, em busca de uma melhor qualidade de vida para os filhos. Passou por Barcelos. Atualmente vive em Gualtar, na zona da Universidade do Minho.

Indira e os filhos Ricardo e Diana

Indira e os filhos Ricardo e Diana

O dia começa cedo. Ricardo é dependente da mãe e precisa de auxílio para quase tudo: vestir-se, tomar o pequeno-almoço e preparar a mochila. Indira leva-o todos os dias à porta do prédio, onde o táxi o vem buscar. Embora Ricardo esteja integrado numa turma regular, exige atenção constante, o que obriga a uma gestão rigorosa dos horários e da energia. Tem amigos, brinca, participa nas atividades — e o mais importante para a mãe: não é tratado como diferente. Indira relembra episódios de conversa com os filhos. “Tento sempre que os dois tenham uma boa relação. Quando eu, um dia, não estiver cá, pode ser que tenha a irmã”.

Indira não trabalha. Não porque não queira, mas porque não pode. “Se eu não estiver com ele, quem estará?”, pergunta, com uma expressão que oscila entre a resignação e a força de quem não tem outra escolha. O cuidado diário com o filho mais velho ocupa-lhe praticamente o tempo todo.“Quando os dois estão na escola, faço as tarefas domésticas”, explica. O cansaço aumenta. O esforço psicológico também. Indira tenta encontrar formas de refúgio. De lidar com as situações. Situações estas que fazem parte de si. Da vida. Tem uma página no Instagram onde partilha os bolos que faz — receitas que aperfeiçoou entre tarefas domésticas e momentos de pausa. A confeitaria tornou-se, com o tempo, num escape criativo e numa forma de se manter ativa. Para além disso, é, pontualmente, uma ajuda extra ao orçamento familiar. Para além do subsídio por assistência a filho com deficiência, o único complemento para colmatar as despesas é a pensão de alimentos dada pelo pai das crianças.

Separada do progenitor dos filhos, vive sozinha com as crianças e sente na pele a dificuldade de conciliar todas as exigências. “É muito difícil sair de casa, socializar, estar com pessoas”, explica. Os convites escasseiam, os encontros tornam-se logisticamente complicados e, com o passar do tempo, o isolamento vai-se instalando.

Apesar disso, não se queixa. Diz que é pelos filhos que vale a pena continuar. Mas reconhece que a falta de apoio e de reconhecimento torna tudo mais pesado. “Nem toda a gente percebe o que é isto. Acham que é só estar em casa, mas não é. É cansativo, é um trabalho a tempo inteiro e não pago.”

O Estatuto de Cuidador Informal ainda não lhe foi atribuído. Indira admite já ter tentado informar-se, mas a burocracia, a falta de acompanhamento e o desconhecimento sobre o processo afastaram-na do pedido formal. “É tanta papelada e ninguém explica nada direito. Parece que é feito para desistirmos.”

Qual é a documentação necessária?

Para requerer o Estatuto de Cuidador Informal, é necessário apresentar um conjunto de documentos que comprovem a elegibilidade do Cuidador e da Pessoa Cuidada.


Segundo o ISS, o Cuidador deve apresentar:
•⁠ ⁠Documento de identificação (Cartão de Cidadão, Bilhete de Identidade ou Passaporte);
•⁠ ⁠Certidão do registo do direito de residência em Portugal (emitida pela Câmara Municipal da sua área de residência, caso tenha cidadania estrangeira);
•⁠ ⁠Comprovativo de residência em Portugal há pelo menos um ano;
•⁠ ⁠Comprovativo do estatuto de refugiado, se for o caso;
•⁠ ⁠Formulário de Identificação de Pessoas Singulares, caso não esteja inscrito na Segurança Social.

Da Pessoa Cuidada deve ser apresentado:
•⁠ ⁠Declaração médica, passada pelo médico de família ou assistente, indicando a data de início e do fim da transitoriedade (para complemento por dependência 1ºgrau);
•⁠ ⁠Documento comprovativo da prestação de dependência;
•⁠ ⁠Documento relativo ao consentimento para a prestação de cuidados (se entregar em papel, não esquecer de anexar o Mod. CI 12);
•⁠ ⁠Documento comprovativo da legitimidade para prestar consentimento (veja o que se aplica à sua situação, no esquema do verso);
•⁠ ⁠Regulação do exercício das responsabilidades parentais (Acordo) para os pais que tenham guarda partilhada;
•⁠ ⁠Declaração da pessoa cuidada em como vive com o cuidador sem laços de parentesco ou não estando no pleno uso das suas faculdades, declaração do familiar até ao 4º grau da linha reta ou da linha colateral.

Cuidado e Amor: Uma Linguagem Secreta

O som do corta-relvas interrompe o silêncio da manhã. A casa de Susana é ampla. Poucas divisões. Janelas grandes que deixam ouvir o assobio do vento. E um jardim rico de flores, que abraça toda a casa. Fica na aldeia de Unhão, em Felgueiras. Num bairro calmo, onde se ouvem mais os pássaros que os carros. À primeira vista, tudo parece igual a tantas outras casas. Mas há detalhes que contam outra história.

A luz entra pela grande janela da sala e reflete no chão escuro. Há brinquedos antigos nos cantos da divisão. A decoração é simples. Acolhedora. No fundo, uma porta larga salta à vista. É um elevador. Discreto, mas indispensável. Liga os dois andares da casa e foi instalado para a filha mais velha de Susana, a Estrela. Tem 27 anos e é dependente desde bebé. Com 13 meses, sofreu um acidente que alterou para sempre a vida da família. Não anda. Não fala. Mas está ali, presente. Todos os dias.

Susana e a filha Estrela

Susana e a filha Estrela

O dia começa cedo. Susana levanta-se, prepara as coisas, sobe até ao quarto de Estrela. O cheiro é de creme hidratante e roupa lavada. Susana conhece cada som da filha. Cada expressão. Cada gemido. Comunicam num idioma só delas, sem palavras. Cuida com gestos treinados, quase automáticos. Dá-lhe banho, muda-lhe a roupa, prepara a alimentação. De manhã, vão à fisioterapia. À tarde “é para a casa”, explica. Não há pausas longas. Há sempre algo a fazer. Um cuidado. Mesmo quando tudo parece calmo, a mente nunca descansa.

Susana não esconde o sorriso de orgulho quando fala da filha. Para além de Estrela, tem mais três. Não trabalha. Cuida a tempo inteiro. Compara o dia-a-dia a um trabalho comum. “Parece que estamos numa fábrica, que temos de dar aquela produção. Aqui é igual”. Reforça que é um trabalho. Um trabalho que não é pago. Questionada acerca do Estatuto, Susana diz que não pode ter. "o salário do meu marido é muito alto". Os rendimentos do agregado familiar são superiores a 1.3 do valor do Indexante de Apoios Sociais.

Não se queixa. Ou, pelo menos, tenta não o fazer. “Tenho muito amor à minha volta. Tenho as minhas filhas. Tenho a minha Estrela.” Diz que faz tudo com gosto, mas admite que o corpo pesa. E que o coração também. Pensa, muitas vezes, no futuro. No dia em que ela e o marido já cá não estiverem. A pergunta fica no ar. Sem resposta.

Estrela faz um som. Um gemido suave, quase como um chamamento. Susana aproxima-se, toca-lhe no rosto com a ponta dos dedos. O olhar de ambas prende-se por instantes. Como quem fala numa linguagem secreta.

Portugal tem mais de 16 mil Cuidadores Informais reconhecidos pelo ISS. De acordo com dados divulgados pela Segurança Social, 84,2% destes cuidadores são mulheres — o equivalente a 13.852 pessoas. Apenas 15,8% são homens (2.607), estando substancialmente localizados nas faixas etárias mais altas. A maioria dos cuidadores masculinos tem mais de 60 anos. A grande maioria, que representa 97% dos cuidadores informais reconhecidos, cuida de apenas de uma pessoa.

Ana Seabra confessa que quem vive esta realidade sozinho é algo bastante difícil. “O valor do subsídio não é muito alto”. O valor não ultrapassa o Indexante de Apoios Sociais (IAS). O IAS é usado pela Segurança Social (522,50€) para ajudar a definir quanto é que as pessoas recebem nos apoios e, para calcular quanto é que os trabalhadores, incluindo os que trabalham por conta própria, têm de pagar à Segurança Social. Ao longo dos anos, a quantia tem vindo a aumentar, mas ainda não satisfaz as necessidades de muitos Cuidadores, afirma, já que, 502 são responsáveis pelo cuidado de mais de uma pessoa.

Para beneficiar deste apoio, o Cuidador Informal está sujeito à verificação da condição de recursos. É feito um cálculo do rendimento per capita do agregado familiar. Não sendo possível exceder a 1.3 do Indexante dos Apoios Sociais.

Susana é um dos muitos casos que sente na pele esta restrição. “Sinto me desvalorizada. A mim e ao meu esforço como cuidadora”, por duas vezes recorreu ao pedido, mas sem sucesso.

Apenas recebe 517 euros pela Estrela – o subsídio por assistência a terceira pessoa de 200 euros e a pensão por invalidez de 317 euros. Apesar do esforço, o apoio continua a ser insuficiente. Existem obstáculos. Não só financeiros. Burocráticos. Obstáculos que atrasam ou impedem o reconhecimento do papel fundamental que desempenham ao cuidar de outra pessoa.

Entre-Cuidados

A ajuda para quem cuida ainda é rara. Mas começa a ganhar espaço. Em pequenas iniciativas, surgem formas discretas de apoio emocional. Não se trata de grandes soluções, mas de criar tempo e presença. De estar com quem carrega rotinas pesadas, quase sempre em silêncio. Há quem vá, quem ouça e, quem repare nos sinais de exaustão, que passam despercebidos aos olhos de muitos

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

Visitas do grupo Juventude Mariana Vicentina. Foto cedida por Rita

“Começámos a sentir que era preciso cuidar de quem cuida.”
Rita Correia, Membro da Juventude Mariana Vicentina

Rita Correia tem 26 anos e vem de Lousada. É engenheira mecânica, mas fora do trabalho dedica tempo a algo muito simples: estar com os outros. Faz parte da Juventude Mariana Vicentina. Associação de âmbito internacional, organizada por regiões e ligada à paróquia de São Miguel. Começaram por visitar idosos. Com o tempo, perceberam que também era preciso olhar para quem está do outro lado — quem cuida, muitas vezes sem rede ou apoio.

É o grupo de jovens que estabelece o contacto com os cuidadores. Chegam sem pressas. Ouvem. Perguntam pouco. O mais importante, diz Rita, “é mesmo o estar. Ouvir”. As visitas que fazem mostram o peso que recai sobre quem cuida. “As pessoas que visitamos falam muito do cansaço emocional”, revela.

Reconhece que em Portugal ainda se fala pouco do tema. “Falta desconstruir o que é ser cuidador. Conhecer as histórias. Dar-lhes voz. Falta conhecer as realidades. E levar estas histórias para fora das casas onde tantas vezes ficam fechadas.”

Nos últimos anos, o grupo passou também a organizar um encontro anual para Cuidadores Informais. Um fim-de-semana inteiro em que podem parar. Respirar. Ficar sozinhos ou em grupo, sem a responsabilidade constante. Durante estes dias, os familiares de quem cuidam ficam ao cuidado de uma associação parceira. O descanso não é luxo. É necessidade. E, muitas vezes, é a única pausa que têm durante o ano.

Estes pequenos gestos não resolvem os problemas estruturais, mas são um alívio real para quem vive com a responsabilidade de cuidar. Dia após dia. Mais de 80% dos Cuidadores Informais admitem já ter estado em exaustão emocional. Quase 78% sentiram necessidade de apoio psicológico. No entanto, só 42% procuraram esse tipo de ajuda. A maioria continua calada, mesmo sabendo que o seu bem-estar tem impacto direto nos cuidados que prestam. Cerca de 80% reconhece que o estado de saúde emocional interfere com o desempenho no papel de cuidador. Os dados constam do estudo "Saúde mental e bem-estar nos Cuidadores Informais em Portugal". Uma iniciativa da Merck Portugal, com o apoio do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais.

Por lei, o Cuidador Informal tem direito a 30 dias de descanso, onde a pessoa cuidada fica ao cargo ou numa Instituição de cuidados.

Em Estarreja, a psicomotricista Andreia Lopez acompanha cuidadores que vivem em constante tensão. Trabalha numa instituição. Através da psicomotricidade, trabalha o corpo como ponto de entrada para cuidar da mente. “Muitos chegam em piloto automático. Não dormem bem. Têm dores que já normalizaram. O corpo começa a dar sinais quando a mente está saturada”, explica.

As sessões não são só físicas. Com o tempo, os cuidadores começam a identificar limites. A perceber o impacto do que carregam. “É um trabalho que ajuda a devolver-lhes algum controlo. A ideia de que podem cuidar sem se anular”, diz Andreia. Ensina, muitas das vezes, ao cuidador estratégias para estimular a pessoa cuidada. Nota que o mais difícil, é convencer que, quem cuida também tem direito a ser cuidado. A culpa. O medo de falhar. A pressão social. São sentimentos comuns à maioria dos Cuidadores.

Este tipo de apoio ainda é exceção. Mas aponta caminhos. Caminhos onde o cuidado deixa de ser apenas uma obrigação solitária. Passa a ser um espaço de partilha. De reconhecimento. Porque cuidar não devia ser sinónimo de se apagar. E parar, por vezes, é a única forma de continuar.

Andreia Lopez no local de trabalho

Andreia Lopez no local de trabalho

Sobre(viver)

E quando se deixa de cuidar? Quando o papel diário desaparece e a rotina deixa de girar à volta de alguém? Para muitos, é preciso reaprender a estar. Reencontrar-se. Há alívio. O descanso pode chegar. Mas também há vazio. Como se preenche o tempo, depois de uma vida inteira em função do outro? As respostas não são fechadas. Há caminhos que se constroem devagar. E uma pergunta que fica: por onde recomeçar?

Marcas que Ficam

A manhã está fresca, mas o coração de Andreia aquece assim que chega à Pousa. As memórias e os cheiros permanecem. Ainda são os mesmos.

“Bom dia, Ti João.” Empoleirado num escadote a arranjar uma lâmpada, está o tio de Andreia. Em tempos, já vivera naquela casa. Hoje em dia, são só idas rápidas. Quase invisual, lança um sorrisinho matreiro. A porta da cozinha range. João tem de dar uns toques nas dobradiças. No fundo da casa, fica o quarto de Maria Fernandes - Miquinhas, para a família. É o primeiro lugar onde Andreia vai. O cheiro da almofada e do pijama trazem um aconchego familiar, como se, por instantes, nada tivesse mudado. As idas à casa da avó tornaram-se, agora, mais escassas.

A avó faleceu há cerca de dois anos e meio. O silêncio, o pó e João são as marcas mais salientes que restam da casa, que outrora fora de família.

Andreia Miranda tinha 26 anos quando abdicou do trabalho para se tornar Cuidadora Informal da avó. Durante quatro anos. Miquinhas tornou-se dependente após a queda num degrau. Pouco tempo depois, diagnosticaram-na com demência e depressão.

“Ir para um lar era acabar com a vida dela”. Colocar a avó numa instituição era impensável, mesmo com o apoio familiar a ser praticamente inexistente e a burocracia a representar mais uma carga de complicações. O apreço e o amor falavam mais alto.

 Andreia não tinha Estatuto de Cuidador Informal, uma vez que seria prejudicada. Ao deixar o trabalho, deixaria de fazer os descontos necessários para garantir a reforma. “Até me retiraram o abono dos meus filhos”, revela indignada. Mensalmente, apenas recebia a reforma da idosa e um valor extra, acordado entre os filhos de Maria, para os cuidados prestados.

As dificuldades encontradas não passavam, apenas, pela falta de dinheiro. As complicações eram sobretudo físicas e, por vezes, emocionais. O domingo era o dia que sentia maior transtorno. Não por si, mas porque sentia que prendia o marido e o filho ao cuidado da avó.

Confessa que foram anos incríveis e de retribuição aos cuidados que a avó dera a Andreia. “A vida assenta em que os pais tomem conta dos filhos, para mais tarde, terem quem tome conta deles”.

“Se ela durasse mais tempo, eu tomava conta dela”.
Andreia Miranda, Ex-Cuidadora

A neta exprime, de sorriso largo, que a avó sempre dera “pouco trabalho” e era bastante colaborativa nas atividades do dia a dia. Admite que foi mais prejudicada a nível económico, por falta de apoios, e a nível legal, porque “em Portugal a espera é longa e há imensa papelada”.

Recomeços

Chove a cântaros na cidade de Braga. Na Rua de Barros, as folhas das árvores roçam nas janelas mais altas dos prédios. Há folhas no chão. Esvoaçam por entre quem passa na calçada. Ivone Dias vem de Monção. Vsita a filha, Joana Rodrigues, estudante na Universidade do Minho.

Com algum entusiasmo, Ivone põe-se à vontade. Senta-se num dos bancos altos da cozinha. Está debruçada sobre o balcão. Pedra fria, que quase condiz com o tempo lá fora.

Ivone na casa da filha

Ivone na casa da filha

“Cuidei de três pessoas na minha vida”, diz. A mãe foi a mais recente. Depois de um diagnóstico de um tumor, ficou dependente de Ivone. Durante 6 anos. Sentiu na pele as dificuldades e o peso emocional do cuidado.

Recém-viúva e com duas filhas, nunca deixou de trabalhar. Nunca foi uma opção. “Eu punha-me a pé, todos os dias, às cinco da manhã”. Depois da higiene, preparava o pequeno-almoço. Deixava “a mãe prontinha”. Uma das vizinhas ia ajudando Ivone quando estava no trabalho. Fazia Companhia. Dava-lhe de comer.

“Só trabalhava. Não vivia”, resume. A voz quebra, mas não há lágrimas. Há cansaço. E memória. “Cada vez perdia mais da minha vida”, admite. Sente que falhou às filhas, não por falta de amor, mas por falta de tempo. “Queriam sair, fazer coisas. E eu dizia sempre que não podia. Que não dava.”

Hoje diz que “felizmente ou infelizmente” já pode. A mãe morreu. Ivone pode voltar a viver, mas é uma liberdade que custa. Ainda assim, garante que faria tudo igual. “Não colocaria a minha mãe num lar. Não consigo tirar o afeto da equação.”

Mesmo com tudo o que passou, não quer que as filhas um dia façam o mesmo por ela. “Quero que vivam. Que não deixem a vida de lado.” Só pede que não falte o carinho. Atenção.”

Depois da morte da mãe, Ivone precisou de ajuda. Saiu de casa. Foi viver com o companheiro. Precisava de mudar de cenário. Cada canto trazia lembranças. A cama articulada. O cheiro dos cremes. Ficar seria reviver tudo. A mudança ajudou. Era o que tinha de fazer.

Ivone queixa-se da falta de informação. “Só ao fim de cinco anos é que soube que a Câmara dava fraldas.” Faltam apoios, faltam respostas. “Devíamos ter acesso a um psicólogo. É preciso falar.” A formação também faz falta. Não só para aprender a levantar alguém da cama, mas para lidar com o desgaste emocional. “Admitir que se precisa de ajuda e pedi-la, se possível, devia ser algo normal.”

Hoje, com o luto feito, fala com a tranquilidade possível de quem fez o que tinha de ser feito. E de quem continua à espera que o país olhe, finalmente, para quem cuida. “O Estatuto do Cuidador é bonito no papel. Mas na prática estamos sozinhos.”

Na rua, a chuva começa a abrandar. Ivone ajeita o casaco. Lancha com as filhas e prepara-se para sair. Já não tem horários. Mas o relógio interior ainda desperta cedo. E há marcas que não passam.

Autoria

Camila Valente

“A Camila deve moderar as conversas paralelas”, cresci a ouvir e a ler estas palavras na escola. Talvez porque comunicar sempre foi algo muito genuíno e simples para mim. Questionar o porquê de tudo está-me no sangue. Aprendi que nada é preto no branco. Falar é como pestanejar e escrever é como caminhar, uns dias mais intensos outros nem tanto.
Considero que eu e a criatividade crescemos juntas ,mas com os pés bem assentes na Terra. Oliveira de Azeméis ,mais concretamente. Volto sempre! Só que nunca me chegou, o incerto e o desconhecido fascinam-me e é lá que me sinto realmente realizada.
Vivo agora ansiosa pelo amanhã porém, a mesma menina de sorriso fácil ,que nada deixa por dizer!

Manuel Patela

A comunicação sempre foi mais do que uma área de estudo para mim – é parte da minha essência. Cresci numa aldeia, mas a vontade de contar histórias e entender o mundo sempre me levou para além das fronteiras do que me era familiar. Dizem que sou tagarela, que falo pelos cotovelos, e talvez seja verdade. Mas é nesse dom de falar e, sobretudo, de ouvir e conectar-me com diferentes pessoas que encontro o meu maior talento. O “porquê” é a minha palavra favorita, e ao questionar o mundo que me rodeia percebi, desde cedo, que a área do jornalismo e comunicação seriam o meu caminho.

Agradecimentos

Associação Nacional de Cuidadores Informais

Grupo de Jovens Mariana Vicentina

Ana Santos
Ana Seabra
Andreia Lopez
Andreia Miranda
Indira Ventura
Inês Patela
Ivone Dias
Lígia Almeida
Maria Anjos Catapirra
Rita Correia
Rui Santos
Susana Bessa
Thatiana Aquino

Luís António Santos

Maria João Cunha

E a todos que permitiram que esta reportagem se concretizasse.