ACOLHIMENTO FAMILIAR
Famílias sem título.
De coração aberto e abraços apertados
O que acontece aos jovens quando chegam às casas de acolhimento?
Por Ana Ferreira & Marta Rodrigues
Em Esposende, Braga e Famalicão vivem três histórias de laços reconstruídos. Pontos relativamente próximos em termos geográficos. Pontos ainda mais próximos no acompanhamento de jovens em risco. Desde capacitação a integração, seja esta residencial ou familiar, o fim é o mesmo. Garantir estabilidade e, acima de tudo, felicidade.
João
Quando uma casa se transforma em duas
Com um pé em Esposende e outro em Vila Nova de Famalicão, é assim que João Alves vive há 10 anos. Uma década a partilhar o coração com duas famílias distintas no sangue, mas próximas no cuidado e responsabilidade que por ele têm.
Tinha seis anos quando conheceu pela primeira vez a sua segunda casa. Longe de ser semelhante a um ambiente familiar, João lembra-se de pouco da instituição do Centro Social da Paróquia de Joane. Recorda pequenas traquinices, como descer de trotinete por rampas abaixo e “ping-pong improvisado”. A memória preserva-lhe uma ida ao Tribunal e, de seguida, já se encontrava na instituição. “Não me lembro das razões.”
Juntamente com a irmã mais velha, foram retirados à família biológica por motivos superiores. Motivos estes que, de acordo com Paula Cristina Martins, psicóloga e investigadora na área da proteção de crianças e jovens em risco, podem incluir vários tipos de “negligência”. João passou três anos à espera de uma família que o acolhesse, mas a irmã fez-lhe companhia.
Por ser mais velha, esteve sempre presente no processo de adaptação. Embora não faça parte da memória de João, aqueles que acompanharam a sua história conseguem garantir o companheirismo e a ajuda entre eles. Filipa Gonçalves, responsável atual pelo caso do João, salienta que a irmã “foi uma peça fundamental”. Acrescenta a necessidade de “haver proximidade entre a família de acolhimento e a família de origem”, porque o acolhimento familiar prevê “sempre que haja um regresso”.
Filipa Gonçalves relembra a primeira vez que lhe pôs os olhos em cima, já com nove anos. João era “pequenino”, não pela altura, mas pela forma como agia perante situações e pessoas diferentes. “Apesar de não ser uma criança pequena para a idade, é a pequenez com que nós nos tornamos quando não estamos seguros de que é por ali o nosso caminho.” As inseguranças, as dificuldades de articulação e a dimensão emocional eram os principais obstáculos. Das complicações João lembra-se de pouco.
Algumas das estratégias para “trabalhar a parte social” e ajudar João a recuperar alguma segurança passaram por terapia da fala, acompanhamento de otorrinolaringologia e integração em atividades extracurriculares. Filipa Gonçalves descreve que, “mesmo com amiguinhos, não falava muito”, mas com o tempo demonstrou mais confiança e a chegada de Fernanda e Filipe, família de acolhimento, permitiu uma maior estabilidade.
Num primeiro encontro estavam “tímidos”, ou pelo menos é assim que a memória de João pinta o momento. Monopólio foi o segredo da aproximação, ainda que tenha perdido o jogo. Estabeleceu assim o seu primeiro contacto com a família de acolhimento e estava pronto para uma segunda saída, desta vez até ao São João no Porto. Para todos “memorável”.
Desde o início Filipe e Fernanda mantiveram uma relação de proximidade com a família de origem de João. Cumprindo o regime de visitas estipulado, levavam-no a Famalicão para que pudesse estar com a sua família. Mas, para o João de 9 anos, o sentimento de que estava a falhar para com os pais era forte. Embora percebesse as fragilidades, entendia que gostar de outras pessoas significava trair os pais. Hoje, partilha o coração tanto com a sua família de origem como com a sua família de acolhimento sem sentir culpa.
Nos primeiros dias, a relação que havia criado com Inês e Lucas, filhos de Fernanda e Filipe, era calma. Quando os dias passaram a semanas e semanas passaram a meses, João apercebeu-se de alguns “ciúmes”, algo que considerava normal, embora complicado. “Eu era mais velho, então é normal para qualquer um haver esses ciúmes.” Fernanda e Filipe foram “persistentes” na comunicação e conseguiram ultrapassar o desafio. Com o tempo, João, Inês e Lucas foram “ficando mais próximos”.
Começou a conhecer os cantos à casa e rapidamente foi acolhido na totalidade, ainda que não se mostrasse “habituado a estar numa família com determinadas regras”. Mas, para João, o carinho que sentiu preencheu qualquer lacuna que nele existisse. “Sentia-me realmente como um filho, tratado como igual.” Hoje agradece por estar onde está e por poder manter o contacto com a mãe biológica.
Um rapaz acolhido, um coração expandido
Do ponto de vista de Fernanda Figueiredo, o processo “foi muito espontâneo”. Por coincidência, viu com Filipe um grande cartaz que os levou a fazer parte da bolsa de famílias de acolhimento da instituição de solidariedade Mundos de Vida. “Há uma criança no seu coração” é a frase que ficou marcada na sua memória. Por escolha, recebeu João em casa, pronta para colaborar com a família de origem e assim oferecer-lhe uma alternativa.
Relembra o momento em que, juntamente com Filipe, soube que poderia acolher. Era uma sexta-feira, em que recebia a informação de que uma criança precisava de acolhimento e se enquadrava no perfil que correspondia às capacidades do casal. “Deram-nos até segunda-feira para decidirmos acolher ou não. A questão é que nós saímos do sítio, chegámos ao carro, olhamos um para o outro e dissemos sim.”
Os primeiros meses foram um “namoro”. Tudo corria bem, as crianças estavam empolgadas, mas “começaram a perceber que a vida delas mudou”. Inês, a filha mais velha do casal, pergunta: “Olha, mas agora quando é que ele volta para casa?”. Fernanda foca-se na adaptação lenta. “Tem que ser aos poucos”. Explica que “tentar não chocar e fazer uma adaptação de forma harmoniosa” faz com que os “miúdos” percebam e regressem à normalidade.
As inseguranças de João na família de acolhimento tornaram-se mais expressivas nos primeiros meses de ajuste. Fernanda recorda momentos em que, se João “tivesse alguns medos e receios, era capaz de fugir e trancar-se num sítio”. Paula Cristina Martins justifica este tipo de fugas com “angústia” e “resistência” por parte das crianças e jovens em transição, um comportamento natural.
A Mundos de Vida representou um “filtro”. Desempenha um papel de mediação para com os processos legais e a família biológica, além de prevenir qualquer tipo de “mau estar” que não seja benéfico para a criança. “O facto de termos uma instituição a acompanhar permite filtrar muita coisa.”
Já o elemento-chave passa pelo casal estar “na mesma onda”. Fernanda destaca que, para ser uma família de acolhimento, as pessoas envolvidas “têm de estar de acordo”. Por vezes, perceções diferentes podem gerar conflito, mas acredita que “a partir do momento em que uma pessoa é aceite em casa, é para o que der e vier”. Acrescenta que “estabilidade emocional” e o facto de a família do João “gostar muito dele” foram fatores de grande influência no processo.
Sem tempo limite
Filipe Correia admite que Fernanda se lembra melhor dos pormenores. “A ideia era ajudar uma criança a crescer de forma saudável e equilibrada.” A partir daí foi simples. Com cursos e formações, aos poucos foram adquirindo as capacidades e competências necessárias para acolher. Os receios eram poucos, mas o maior era falhar. Filipe tinha noção das dificuldades e sabia que, se a ideia era ajudar, “o que não se podia fazer de certeza absoluta era desajudar”.
O momento em que soube que poderia acolher o João foi “um misto de felicidade e responsabilidade”. Acolher uma criança com regras e hábitos distintos pode ser assustador. Ainda assim, desde o início que as ideias eram claras, era para o tempo que fosse. “Não havia data marcada, era para sempre. Pelo menos mentalmente era para sempre, tinha de ser.”
A adoção era a escolha inicial de Filipe e Fernanda. Optaram pelo acolhimento familiar e não houve arrependimento. Algumas famílias de acolhimento acabam por querer adotar a criança acolhida, mas a lei não o permite. "Há uma fase em que, naturalmente, a nossa cabeça puxa para aí", mas é necessário ter os pés bem assentes na terra.
Ana Rodrigues, docente da Universidade do Minho na Escola de Direito e investigadora na área dos direitos das crianças, esclarece que os motivos para impedir uma família de acolhimento de adotar a criança acolhida são “benignos”. Isto deve-se à ideia de que “ninguém pode ultrapassar a fila”, dando prioridade às famílias de adoção já em bolsa.
O “vínculo pode ser de tal forma forte” que estes pensamentos são normais. Contudo, com o apoio das instituições, Filipe acredita que as famílias de acolhimento aprendem a gerir o receio de a criança largar a segunda casa. “Rapidamente conseguem não olhar para o tempo, nem a dois nem a 10 anos. É como Deus quiser, como se costuma dizer.”
A família mais alargada de Filipe e Fernanda reagiu bem. Apesar da expectativa para algo menos positivo, “trataram sempre o João como mais um sobrinho ou mais um neto”. Também o contacto com a família biológica é para Filipe uma mais-valia. “Fazer ver do outro lado” que estão a fazer o melhor pelo João e o esforço pela compreensão de ambas as partes são cruciais.
Como principal mudança, aponta para a comunicação. Orgulha-se da autoconfiança que João adquiriu ao longo dos anos e refere que a dificuldade em comunicar está hoje ultrapassada “em 95%”. O apoio dos irmãos de acolhimento foi uma muleta para o ajudar a caminhar, mas também João ajudou na adaptação de Inês e Lucas. Filipe reconhece algumas chatices, mas também admite que a única pessoa com quem andou “à porrada” foi com o irmão. Foram “levando isso com naturalidade” e, eventualmente, observaram uma melhoria da relação entre os três.
Olha para o futuro com boa cara. Acredita que, independentemente das circunstâncias, João poderá contar sempre com o apoio da família de acolhimento e vice-versa. Filipe e Fernanda não pensam demasiado no que pode acontecer futuramente porque, onde quer que ele esteja, garantem que vão continuar a ajudar-se mutuamente. “O importante é que ele esteja bem.”
“Não importa o título. Para mim, eles são simplesmente a minha família. Já passou quase uma década desde que comecei a viver com eles e estou grato por tudo o que fizeram e continuam a fazer por mim. Foi a melhor coisa que me podia ter acontecido. Eles mostraram-me o verdadeiro significado de família.”
Bruna
Fazer as pazes com o passado
Dos dois anos e meio em que esteve com os pais, restam episódios difíceis. Desde drogas e alcoolismo a tentativas de homicídio, é assim que Bruna Martins relata, já em segunda mão, aquilo que levou à sua retirada. Lembra-se de pouco e, por isso, precisou de apoio a reconstruir o puzzle do início da sua história.
Seguiu para Vieira do Minho. Lá fez a sua vida, durante os sete anos e meio que sucederam. Bruna e os seus dois irmãos foram separados, tendo o irmão sido reencaminhado para um centro de rapazes e a irmã ficado com a madrinha. Bruna olha para o centro de acolhimento como uma “primeira família”.
Por ser mais nova e, também, uma das primeiras a viver lá, acabou por ter "mais privilégios do que os outros”. Conseguia, assim, escapar nas arrumações e deixar as ervilhas na beira do prato de vez em quando. Ainda que o carinho estivesse presente, explica que não é um ambiente a que uma criança deva estar sujeita. As ferramentas para evoluir estão lá, porém existe uma evolução distinta associada a uma família.
Em 2015, Nadine Santos surge para marcar a primeira década de Bruna. Inicialmente eram como cão e gato. “Eu sei que lhe dificultei muito a vida porque não estava habituada. Pensava que ela era a má da fita.” Com muitas consultas e muita conversa, conseguiu aceitar que Nadine era agora uma família e perceber os motivos que a levaram a reagir daquela forma.
Uma das regras que preservam na relação é “não deixar os problemas para amanhã”. Já resolveram discussões às 23h59, mas nunca no dia seguinte. Com Nadine, Bruna aprendeu a “respeitar as pessoas” e a deixar de lado o “se eu queria, eu queria e é assim”. Agora tenta entender o lado do outro e a ligação que tem com Nadine é inquebrável. Sem a família de acolhimento, vê uma alternativa pior. Admite que a vida no centro possivelmente lhe traria um resultado “totalmente diferente”.
Mantém o contacto com os pais, algo que só pôde alcançar com a ajuda de psicólogos e de Nadine. Hoje, Bruna olha para as ações dos pais com empatia. Desenvolveu uma mentalidade de solidariedade para com os problemas que também enfrentaram e entende que a culpa não terá sido totalmente deles. Agradece a oportunidade que teve e canaliza-a de volta para a família biológica.
A possibilidade de regressar à família de origem, como prevê a medida de acolhimento familiar, nunca se concretizou. O Tribunal de Família decidiu sempre a prolongação do acolhimento familiar, dado que a reabilitação da família de origem não sucedeu como desejado.
Aumentar a família
Nadine olhou para o paradigma nacional das crianças e jovens em perigo e viu uma necessidade. Apenas 3% das crianças em situação de acolhimento chegam a uma família, de acordo com o Relatório CASA de 2022, da Segurança Social. Não quis ficar de braços cruzados e decidiu abrir as portas da sua casa.
O processo demora o seu tempo. Primeiro, “vem a vontade de o fazer”. Depois, é feito de formações que preparam as famílias para receber uma criança com todos os desafios que traz. Helena Granjeia, investigadora e coordenadora no laboratório ProChild, explica que o rigor do processo visa dotar os candidatos dos conhecimentos necessários para a etapa que estão a abraçar. Avaliam-se aspetos individuais das famílias – que podem ser singulares, como o caso de Nadine, de casal ou pessoas do mesmo agregado familiar –, assim como ao nível relacional, familiar, estrutura social e comunitária. Ainda assim, há uma parte que só se sente “quando se acolhe a criança”.
Foi então, nove meses depois do início do processo, que conheceu Bruna. Os primeiros contactos decorreram com alguma distância e interações ponderadas. Gradualmente, os encontros aumentaram e passaram a ser mais pessoais. “O primeiro fim-de-semana que passou aqui foi difícil.” O dia correu bem, mas a noite complicou-se. “Foi-lhe estranho porque estava em casa de alguém que não conhecia bem, num quarto que na altura não estava completamente à maneira dela.”
Em junho de 2015, a menina de 10 anos entrou em casa de Nadine, onde vive há nove. Os meses iniciais foram um período cor-de-rosa. “As crianças tendem a estar no seu melhor comportamento porque veem isso como uma forma de garantir que vai correr tudo bem.” Foi em meados de agosto que Bruna começou a ser ela própria, a estar zangada quando tinha de estar zangada e feliz quando tinha de estar feliz.
Seguiram-se meses repletos do desconhecido. A Nadine teve de se adaptar à forma de estar da Bruna e vice-versa. Mais do que isso, aprenderam a ler-se uma à outra. “Tive de perceber que ela precisava do espaço dela e o mesmo do meu lado.” Em momentos mais críticos, o acompanhamento da instituição de enquadramento, a Mundos de Vida, permitiu tomar decisões informadas. Helena Granjeia ressalta que as famílias de acolhimento “nunca estarão sozinhas. Terão sempre uma equipa técnica das instituições de enquadramento que lhes darão o apoio necessário para ajustar todas as dinâmicas familiares ou mesmo individuais”.
A entrada de uma nova pessoa no seio familiar agitou a organização que Nadine gostava de ter. “Entendi que a desordem pode ser aceitável em certos momentos.” Neste que é um processo imperfeito, acredita que o importante é ter paciência e fazer compromissos. Quando não há consenso, procuram um meio termo ao qual ambas se comprometem. Mas nem sempre é fácil fazer essa gestão. “Quando via que ela ia bater contra a parede, queria prevenir esse choque para a proteger. Descobri que não funciona, temos de deixar ir.”
A vinda para a casa de Nadine permitiu que Bruna se tornasse numa “menina mais preparada para a vida e em sintonia com o mundo normal”. É um caminho com altos e baixos, em que para construir algo “às vezes tem de se desconstruir primeiro”. As dificuldades que Bruna apresentava eram em grande parte falta da atenção necessária, que com o acompanhamento certo conseguiu superar.
Nadine esperava construir uma relação e dar a Bruna as ferramentas para que se sentisse uma pessoa feliz e confiante. No fim, ganhou uma casa, um quarto, uma cadela e sete gatas, alguém a quem chama de mãe e uma rede de amigos que a pode visitar. “Ela própria passou a ser convidada para ir a casa deles, algo que não acontecia antes.”
Uma realidade com altos e baixos
O enquadramento legal nem sempre assegurou que o apoio financeiro fosse suficiente. “Hoje em dia é muito bom, mas eu sou pré nova lei.” Nadine começou por receber apenas um dos dois apoios, que correspondia a pouco mais de 100 euros mensais. “Estas crianças têm de ser acompanhadas com consultas de psicologia, de pedopsiquiatria e de especialidade conforme os problemas que têm.” No caso da Bruna, precisava de um tratamento ortodôntico dispendioso, que ultrapassou bastante o valor que recebia. O aumento para 611 euros por mês deu um maior bem-estar à família. “De forma geral, cobre os custos todos.”
Os incentivos financeiros são "muito debatidos", segundo Ana Rodrigues. Podem significar que "se vá à procura do acolhimento familiar por uma questão exclusivamente monetária". Contudo, não acredita que isso aconteça com tanta facilidade. A docente sublinha que o constante acompanhamento das instituições de enquadramento e da Segurança Social às famílias de acolhimento impede que "fiquem com rédeas soltas e faz com que tenham de prestar contas". Não deixa de ser um apoio importante, refere, já que nem todas as famílias têm a disponibilidade financeira para acolher.
O Relatório CASA de 2022 dá conta de que, em Portugal, há cerca de 200 famílias de acolhimento, face às mais de 6 mil crianças em situação de acolhimento. Embora esta não seja a medida mais adequada a todas as crianças, “é deturpado acreditar que o acolhimento residencial é melhor para 97% das crianças em perigo”.
Helena Granjeia acredita que a falta de famílias de acolhimento se deve a alguma desinformação acerca do conceito. Considera que as pessoas ainda confundem com a adoção e não sabem que se podem tornar famílias de acolhimento.
A medida de acolhimento familiar distingue-se da adoção pelo seu caráter temporário. Visa o retorno da criança ou jovem à família de origem, quando esta reunir condições para a receber de volta e a situação de perigo tiver cessado. Nadine apela, portanto, a que mais pessoas ponderem receber uma criança ou jovem em casa, mas não sem antes refletir sobre tudo o que isso envolve.
Como funciona o sistema de acolhimento em Portugal?
A medida de acolhimento familiar foi formalmente instituída em 1979. Até à altura, o acolhimento residencial era a única opção para crianças e jovens em risco.
De acordo com a psicóloga Paula Cristina Martins, em grande parte das instituições do país viviam mais de 100 crianças e jovens num único acolhimento residencial. Reconhece que ao longo dos últimos 40 anos se verificaram mudanças positivas, com a construção de apartamentos de autonomização, onde já se consegue treinar de forma mais individualizada a autonomia de vida dos jovens. No entanto, a especialista destaca a grande diferença entre a modalidade de acolhimento residencial e a de acolhimento familiar.
“O acolhimento residencial nunca vai ser uma família. É impossível.”
A ex-ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, realça a aposta na "requalificação e capacitação da rede de casas de acolhimento". Materializou-se na fixação máxima de 15 crianças em cada casa, planos individuais de acompanhamento obrigatórios, atribuição de bolsas de estudo a jovens acolhidos, entre outras medidas apresentadas. Assim, acredita na possibilidade de diminuir até 2030 o total de 6.120 crianças e jovens em acolhimento residencial para apenas 1.200. A acrescentar, o ministério alerta para a necessidade de aumentar a capacidade de acompanhamento das crianças junto das famílias, "para evitar a retirada do meio familiar".
Até ao momento, o acolhimento familiar é considerado prioritário para crianças até aos seis anos. A docente Ana Rodrigues explica que "aqueles primeiros anos são fundamentais do ponto de vista do desenvolvimento cerebral, afetivo e de estabilidade psicológica". Torna-se, por isso, importante que as crianças estabeleçam um vínculo familiar o mais depressa possível. Ainda assim, Ana Mendes Godinho realça a preocupação do ministério em alargar esta prioridade a todas as idades.
“O sistema tem de olhar para a criança e perceber qual é a melhor solução para ela, concretamente.”
O acolhimento familiar permanece subdesenvolvido em Portugal. Com poucas famílias de acolhimento, de acordo com dados da UNICEF relativamente ao ano de 2023, Portugal encontra-se no topo da tabela de países com o maior número crianças institucionalizadas (95%). Segundo Paulo Delgado, autor de vários estudos na área do acolhimento de crianças e jovens em risco, há uma falta de desenvolvimento da modalidade e de sensibilização para que mais famílias optem por ser famílias de acolhimento.
Ana Rodrigues, porém, explica que até ao ano de 2008 a modalidade em meio natural de vida - acolhimento pela família alargada - era considerada acolhimento familiar. A partir desse ano, o ministério apostou nessa modalidade e deixou de a categorizar como medida de acolhimento familiar. Nesse sentido, a investigadora realça que a comparação com outros países que ainda consideram o regime anterior a 2008 em Portugal tem de ser bem analisada. "Isso não significa que não temos números baixos de acolhimento familiar, temos. Mas não são tão baixos como às vezes as análises comparativas nos levam a crer."
Acrescenta que ser família de acolhimento implica "um investimento emocional grande que nem todas as famílias estão preparadas para fazer". Acredita ter havido um "impulso" em 2019, mas considera que é um crescimento "ainda aquém" e que necessita de uma maior sensibilização. "Há aqui um caminho a fazer." A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa lançou em janeiro a terceira campanha em cinco anos, que visa aumentar o número de famílias de acolhimento em bolsa. Vai ao encontro do objetivo do então Governo de reduzir as crianças institucionalizadas.
Lisboa e Porto, sendo os grandes distritos de Portugal em termos de população, são também aqueles que apresentam os números mais elevados, apesar de uma grande aposta na divulgação da modalidade do acolhimento familiar.
Como se comporta a distribuição de crianças e jovens em situação de acolhimento por distrito?
Lisboa
De acordo com o Relatório CASA de 2022, o distrito de Lisboa registou, nesse mesmo ano, um total de 21% de crianças e jovens acolhidos, a maior percentagem do país. Correspondente a um total de 1.303 crianças e jovens. Os números apresentam uma maior expressão na faixa etária dos 12 aos 17 anos.
Entraram 510 novas crianças e jovens em acolhimento, continuando a ser o distrito com mais entradas no sistema.
Porto
O Porto marca o segundo lugar com 16% da totalidade de crianças e jovens acolhidas. Esta percentagem corresponde a 1.011 acolhidos e segue após Lisboa, com menos 292 crianças em comparação. Também a faixa dos 12 aos 17 anos atinge maioritariamente estes números.
No ano de 2022, deram entrada no Porto 357 crianças e jovens no sistema de acolhimento.
Braga
Em Braga são 439 as crianças e jovens acolhidos (cerca de 7%). No quarto lugar da tabela apresenta um número mais baixo, com a maioria na faixa dos 12 aos 17 anos e o menor número registado na faixa até aos 5 anos.
Braga registou 168 novas entradas, sendo o terceiro distrito com maior percentagem. Contudo, foi no distrito bracarense que surgiu a primeira instituição com a valência de acolhimento familiar. Durante anos estabeleceu o contacto entre as várias instituições ao longo do país e marcou o início da modalidade em Portugal.
Ainda a dezenas de metros, as crianças fazem-se ouvir. O ecoar dos risos contrasta com a calma da pequena freguesia de Lousado, onde a alegria dos mais pequenos não passa despercebida. Brincam e fazem conversa com quem por ali passa.
A Mundos de Vida nasce em 1984, mas é em 1999 que funda a casa de acolhimento para crianças e jovens em perigo. Foi pioneira na modalidade de acolhimento familiar.
Divide-se na Casa das Andorinhas e na Casa do Alto. A primeira é uma Casa de Acolhimento Temporário (CAT) e a segunda consiste num lar de infância e juventude. Em 12 anos do projeto Procuram-se Abraços, mais de 130 crianças e jovens encontraram família e um ambiente seguro para viver.
Ana e Rui
“Foi um caminho atribulado, mas bonito”
Em 2011, Rui Ferreira acordava para mais um dia de escola, como todos os outros. O que não sabia é que o ia terminar a dormir noutra cama. Aquele que era um seio familiar “normal” teve a primeira quebra com o divórcio dos pais do Rui e da irmã mais velha, Ana. Seguiram-se tempos complicados, em que o “desleixo na educação e na saúde” motivou o alerta dado pelos professores.
O menino de oito anos, inocente e com medo, chegava à Mundos de Vida na incerteza do que seria o seu futuro. A adaptação aos moldes de um novo espaço, diferentes daqueles que conhecia até então, não foi fácil. Hoje, 13 anos depois, sente-se em casa.
O tempo curou algumas feridas, mas as saudades de casa nunca foram embora. A Mundos de Vida e as suas pessoas tornaram-se o seu lar. Celina Cláudio é diretora técnica e acompanhou-o desde o primeiro momento. Ajuda a reconstruir a história de Rui, já que lhe custa relembrar alguns detalhes.
“Os desafios foram bastantes” na fase de integração. Dada a sua experiência de vida, o pequeno Rui não entendia porque era necessário afastar-se da casa do pai, onde tanto gostava de viver. O agregado familiar não reunia condições habitacionais, económicas e psicológicas para cuidar dos filhos, mas era lá que o Rui conhecia a sua versão mais autêntica. Estava perto da natureza e dos animais, duas das suas paixões.
Rui revelou desde logo uma “desregulação emocional e comportamental muito grave”. Era “pouco tolerante à frustração e, quando estava nervoso, dava murros na parede, acabando por se magoar”. A atuação das educadoras dificultou-se devido à ausência de um diagnóstico clínico que permitisse sustentar o apoio que necessitava e da dificuldade em verbalizar o que sentia. Além disso, juntavam-se as dificuldades escolares. “Com oito anos, não sabia ler nem escrever.”
A diretora explica que a instituição proporciona aos jovens o apoio externo necessário, desde consultas de especialidade a acompanhamento psicológico. “É necessário que eles incorporem os acontecimentos do passado, que os consigam organizar e arrumar para que depois saibam viver com eles.” A nível interno, a preocupação é “dar-lhes um apoio individualizado”.
“Nós sabemos que esta não é a casa nem a família deles. Não a queremos substituir. Realizamos um trabalho complementar para os fazer crescer com segurança, regras e rotinas necessárias e estruturantes da sua personalidade.”
Ao longo dos anos, Rui desenvolveu competências funcionais e práticas, que o permitiram traçar objetivos para o futuro. Na instituição, gosta de contribuir para os afazeres do dia-a-dia. Aos 21 anos, quer autonomizar-se e seguir o seu gosto: a agricultura e o tratamento de cavalos.
Encontrar "segundas mães"
Ana Luísa Ferreira foi retirada da família uma semana depois de Rui. Viveu esta reviravolta em função do irmão, desde o primeiro dia. “Lembro-me como se fosse hoje. Cheguei a casa e o Rui já devia lá estar, mas não estava.” Enquanto irmã mais velha, via a sua saída como uma forma de se aproximar do irmão e de o poder proteger. “O Rui sempre foi mais frágil.” A preocupação da Ana de 12 anos não era ficar longe da família, mas sim estar separada do irmão. Manteve essa postura em todos os momentos, colocando-se em segundo plano. “Eu tinha mais poder de encaixe, mas ele não entendia algumas coisas porque era pequenino. Então tentávamos embelezar as coisas para que numa fase posterior não tivéssemos sequelas maiores.”
Celina Cláudio viu uma criança que carregava um peso emocional muito grande e que se responsabilizou a assumir o papel parental. “Sente que o irmão vai sempre necessitar de apoio e de orientações.”
A faceta sociável de Ana permitiu que a adaptação fosse mais simples. Ainda assim, a fase dos porquês dificultou a aceitação das regras. “Dona do seu nariz”, assim se descreve e é descrita pelos que a rodeiam. Ana olha para o passado e vê uma menina que queria tudo à sua maneira. “Porque é que os outros podem e eu não? Porque é que tenho de jantar às 20h e não posso jantar às 19h? Porque é que tenho de ir para a cama às 21h30 se não tenho sono?”
Hoje reflete que viver numa instituição lhe permitiu mudar isso. Chegou a um ambiente distinto, com outras noções de regras e de privacidade. “São rotinas novas. Saí de uma casa com quatro quartos e vim para uma com 20. Saí de uma casa onde me cruzava com cinco pessoas para uma em que me cruzava com 20.” Aprendeu a crescer de maneira diferente, “muito mais consciente e aberta para a realidade”.
Na medida de acolhimento, seja esta residencial ou familiar, é aconselhado manter o contacto com a família de origem. Ana considera que a relação ficou exatamente igual e que os pais tocavam no assunto com delicadeza, de modo a não deixar sequelas. Numa fase inicial, os pais visitavam-nos na Mundos de Vida. As visitas eram controladas, algo que causava confusão aos mais novos. “Porque é que só posso estar uma hora com os meus pais e não uma tarde inteira?” Gradualmente, o tempo de visita aumentou até que puderam ir a casa aos fins-de-semana e, mais tarde, passar as férias escolares. Com a idade e com a ajuda das educadoras foram percebendo que esse cuidado era necessário.
Os dois irmãos afirmam ter encontrado na Mundos de Vida uma nova família. Apesar das saudades de casa e da esperança de um dia poder voltar, olham para as educadoras como “segundas mães” e para os restantes jovens e crianças que lá residem como “irmãos emprestados”. O apoio nunca faltou “fosse para conversar, só para um abraço ou para um ‘olá, estou aqui’”. A entreajuda está muito presente em todos e, no caso de Rui, sendo “o mais velho da casa”, gosta de manter o ambiente tranquilo.
Celina Cláudio conhece a Mundos de Vida há 20 anos e a experiência diz-lhe que a chegada à casa é um momento que fica marcado para o resto da vida das crianças e jovens. Tentam, por isso, ter um presente para a criança desembrulhar, que ela conheça o espaço na companhia de outros jovens e que a educadora seja quem os vai acompanhar a longo prazo. A partir daí, é “fundamental construir uma relação de proximidade, em que eles se sintam à vontade para expor problemas e dúvidas”.
As educadoras têm ainda um papel orientador na autonomização dos jovens. O processo começa a ser trabalhado aos 16 anos e é adaptado às características, preferências e gostos de cada jovem. Além de encaminharem para uma área profissional, fornecem competências ao nível da gestão do dinheiro e procura de emprego.
Ana quis a sua independência desde cedo. Com o apoio da instituição, começou a trabalhar aos 16 anos, já a pensar no futuro. Aquando da maioridade, podia ir viver com a mãe, mas compreendeu que teria mais oportunidades se continuasse na Mundos de Vida. Isso proporcionou-lhe a ida para a universidade e, mais tarde, uma oferta de emprego. Atualmente, trabalha no lar de idosos pertencente à instituição, onde é tratada com carinho como “a menina da casa”. Conseguiu autonomizar-se e pode trabalhar naquilo que melhor sabe fazer: cuidar dos outros.
Hoje, aos 25 anos, vê um “percurso atribulado, mas bonito”. Depois da fase em que sentia que todos estavam contra si, sentiu o clique de entender as “coisas boas que podia tirar da Mundos de Vida”. Na instituição, aprendeu sobretudo a ter empatia e a colocar-se no lugar do outro.
“Agora tomo muito as dores dos outros. Mesmo que entremos aqui crianças frias e revoltadas – consequências do que aconteceu – a humanização do trabalho que é feito com as crianças faz com que saiamos de cá mais humanos e com mais empatia.”
Acredita que essas aprendizagens fazem dela uma melhor auxiliar de saúde. O respeito e a empatia pelo próximo levam a que acolha bem e seja bem acolhida. “Muitos dos idosos que estão cá viram-me crescer. Não me custa vir trabalhar.”
Para estes irmãos, nunca surgiu a possibilidade de serem acolhidos por uma família. O acolhimento residencial ofereceu-lhes o acompanhamento especializado e as oportunidades de que necessitavam. Afinal, a família é “quem está aqui todos os dias”.
Autoria
Quem somos?
ANA FERREIRA
Embora se torne cada vez mais uma profissão desafiante em termos de precariedade, reconhecimento e valorização, continua a ser a minha escolha. Permaneço na luta pelo jornalismo de qualidade e pela manutenção de uma sociedade democrática e corretamente informada. Abrir olhos às histórias daqueles que não são ouvidos, é isso que me dá luz no presente e certamente no futuro.
MARTA RODRIGUES
Desde os meus primeiros rabiscos que a escrita me acompanha. Encontrei nas letras o refúgio de organizar aquilo que a boca por vezes não conseguia. Mas foi mais tarde, no Minho, que essa paixão se tornou no poder de provocar mudança. O jornalismo entrou na minha vida como a oportunidade de consolidar o gosto pelas palavras com a possibilidade de contar histórias e dar voz a quem precisa.