A quarentena dos direitos

Direitos laborais em tempos de pandemia

Créditos: Dominik Bednarz

Créditos: Dominik Bednarz

Créditos: Carolina Martins e Ana Margarida Nogueira

A 18 de março, dia em que entrava em vigor o Estado de Emergência em Portugal, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou um aumento global no desemprego, em que a projeção mais “otimista” se situava nos 5,3 milhões de desempregados, e o pior cenário alcançaria os 25 milhões.

Dois meses depois, a 27 de maio, a OIT apontava que 94% dos trabalhadores vivem em países com algum tipo de medida de encerramento do local de trabalho. No mesmo relatório, apontaram-se os jovens trabalhadores como as maiores “vítimas” das consequências económicas e sociais da pandemia, onde que 1 em cada 6 deixaram de trabalhar.

"Os livros são serviços essenciais"

Cátia (nome fictício) conhece de perto essa realidade. A jovem de 21 anos trabalhava na Bertrand Livreiros quando foi avisada de que seria dispensada, após 5 meses em período experimental. Antes do derradeiro dia, Cátia passou por várias situações questionáveis, chegando a encaminhar queixa ao mecanismo de denúncia criado pelo PCP.

Primeiro, houve insistência por parte da empresa para manter as lojas abertas e a faturar, pressionando os funcionários para continuarem a vender e atender ao público. “Diziam-nos que tínhamos que continuar a vender, ou ficaríamos sem ordenado”, relata a jovem. Enquanto responsável pelo atendimento ao público, Cátia pontuou que o distanciamento social não foi respeitado, não havendo qualquer sinalização da distância necessária para prevenir o contágio. 

Depois, quando a empresa optou por encerrar as lojas, os trabalhadores continuaram a dirigir-se aos locais de trabalho, às vezes doze de uma vez, onde permaneciam durante oito horas, e com pouco para fazer. “Não estamos a falar de um pequeno negócio de família que põe comida na mesa dessas pessoas, estamos a falar de uma grande empresa, que inclusive tem loja online”, acrescenta Cátia.

De caras com o desemprego, a jovem admite que não pode continuar por muito mais tempo nesta situação, com o risco de perder toda a fonte de rendimento. Os sonhos e projetos também ficam em suspenso: sem condições financeiras, e incerta de que conseguirá encontrar outro emprego, a jovem abriu mão da candidatura ao mestrado, tendo em conta que uma taxa de inscrição pode ir dos 40 aos 100 euros, dependendo do curso ou da instituição.

Quanto a voltar a trabalhar para a mesma empresa, Cátia é incisiva: “apesar de a empresa ter dito 'ah nós gostamos muito de ti, vamos convidar-te outra vez quando esta situação toda passar', eu só pensei: eles estão a condenar-me à fome durante toda a epidemia, para depois me virem chamar”.

Apesar dos contratempos, o despedimento de Cátia não se enquadrada numa situação ilegal, à semelhança de outros casos que envolvem jovens trabalhadores pelo país que trabalham em regime experimental.

Segundo a advogada Cláudia Martins Costa: "são duas das circunstâncias [o período experimental e a caducidade de contratos a termo] em que nada pode o trabalhador fazer, desde que sejam feitas de forma legal".

"Ninguém consegue pagar contas e comer com 439 euros"

“Para começar, quero dizer quem sou e o que faço”. É assim que Rita Giro, de 27 anos, começa o seu relato sobre uma crise que a atirou à incerteza. Freelancer de fotografia e vídeo há 9 anos, viu cair o seu rendimento quando as empresas para as quais prestava serviços começaram a desmarcar as sessões, e quando os eventos que costuma registrar (casamentos, batizados, festas e congressos) foram cancelados. 

Apesar de o governo ter ampliado o apoio destinado a trabalhadores independentes, abarcando aqueles que sofreram perdas significativas, a fotógrafa considera-o insuficiente, sobretudo para aqueles com altas contribuições.

"O problema é que há contribuições mais altas para pagar para além da minha como, por exemplo, pessoas que têm estabelecimentos como os cabeleireiros, ordenados para pagar, material, fornecedores, etc. Ninguém consegue pagar contas e comer com 439 euros. Já para não falar que todos os meses pago esse valor à segurança social, quando não chega aos 200 e tal para pagar, mais o IVA. E esse são outros quinhentos", afirma.

E não é só o bolso que sente o aperto. Rita admite que a incerteza do futuro já a começou a afetar psicologicamente: “as contas não desaparecem e o rendimento tarda a vir”, acrescenta. 

De acordo com um estudo do Instituto de Psicologia Clínica e Forense, as mulheres e os desempregados são os grupos que mais se sentem psicologicamente afetados pela pandemia. Entre aqueles que continuam a trabalhar, o impacto psicológico é maior para os trabalhadores que têm que se dirigir ao local de trabalho. Os sintomas predominantes entre os inquiridos são o stresse (29%), a ansiedade (16,9%) e a depressão (11,7%).

João Carvalho, psicomotricista em regime de prestação de serviços, encontra-se na mesma situação, e reforça o relato da fotógrafa: “há muitas pessoas em que o apoio que receberam foi quase o equivalente àquilo que descontaram para a segurança social no próprio mês”.

Fotografia: Rita Giro

Fotografia: Rita Giro

Fotografia: Rita Giro

Fotografia: Rita Giro

Fotografia: Rita Giro

Fotografia: Rita Giro

"Eu não assinei nada a dizer nada": entre um lay-off não oficializado e uma carta de rescisão de um contrato que nunca foi assinado

Cláudia e Teresa (nomes fictícios) não se conhecem, e o mais provável é que nunca se venham a acontecer. Uma é cozinheira e a outra colaboradora. Mas o destino, ou a pandemia, deixou-as numa situação semelhante: ambas foram dispensadas em processos confusos e que abrem espaço para dúvidas minuciosas.

Teresa trabalhou por mais ou menos duas semanas antes de a pandemia ser decretada pela OMS, no dia 11 de março, e tinha enviado os dados pessoais com a promessa de assinatura de um contrato. Com o agravamento da situação, a loja fechou passadas duas semanas, e a jovem de 26 anos só recebeu notícias no final do mês de março, dando conta de que entrariam em lay-off e que ela seria dispensada. Junto com a decisão chegou-lhe uma carta com a rescisão de um contrato que nunca celebrou formalmente. A situação veio a complicar quando descobriu, ao dirigir-se à segurança social, que os dias discriminados enquanto dias de trabalho eram inferiores àqueles que ela de facto trabalhou.

Cláudia, antes da situação do lay-off, foi encaminhada de férias por 15 dias contra a própria vontade. Até à data da entrevista, não sabia do andamento do processo de lay-off, apesar de lhe terem prometido uma resposta. Aliado às dificuldades em arranjar outro emprego, recebeu somente metade do salário do mês de março. Cláudia e a mãe, ambas em casa e sem emprego, lutam para conseguir pagar os créditos da casa e do carro, que não conseguiram adiar.

“Uma corda no pescoço”. É assim que Teresa se sente perante a situação. Toda a ajuda no momento é necessária. No entanto, a colaboradora mora com um familiar que pertence a um dos grupos de risco, e teme colocar em risco a família, caso consiga um novo emprego.

Cláudia e a mãe, ambas em casa e sem emprego, lutam para conseguir pagar os créditos da casa e do carro, que não conseguiram adiar.

Quem nasceu primeiro: a crise ou a covid-19?

E que efeitos se podem esperar de uma pandemia económica e social?

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a pandemia pela covid-19 está a gerar grandes perdas económicas e financeiras a nível mundial, perspetivando-se uma contração de -3% na economia global em 2020, um número pior do que aquele registado durante a crise financeira de 2008-09. Para além da pandemia, que outros fatores contribuíram para este cenário?

De acordo com o economista Ricardo Paes Mamede, ainda é cedo para traçar previsões com tanta certeza, quer do ponto de vista das comparações com 2008, quer no que diz respeito às “origens” da crise. “Neste momento, qualquer conta que se faça é uma aproximação possível com base num determinado número de hipóteses, que são tão válidas como muitas outras que se possam utilizar”, esclareceu. 

Apesar das incertezas, Mamede salienta a tendência do sistema capitalista internacional, que historicamente é marcado por crises cíclicas e períodos de recessão. Ao mesmo tempo, o economista e professor universitário diz ser possível identificar elementos críticos que são anteriores ao contexto pandémico.

Segundo Paes Mamede, alguns dos indicativos que apontaram para a chegada de uma crise "de grandes dimensões" estão relacionados à desaceleração produtiva em alguns países, às fragilidades financeiras e à sobrevalorização de certos mercados financeiros, apontando para a possibilidade de formação de uma bolha especulativa. Dados do Departamento do Comércio dos Estados Unidos da América, por exemplo, já davam conta de um progressivo desaceleramento económico no terceiro trimestre de 2019.

A automatização é outra preocupação levantada pelo investigador. "Se a crise fizer alguma coisa", defende, o caminho será no sentido de acelerar o processo de automatização, com maior prevalência em "setores de atividade onde a escassez de mão de obra tenha sido mais acentuada neste período crítico.”

Destacam-se na análise do economista outros dois elementos fundamentais para se pensar a crise e a pandemia: a sua incerteza, e o duplo choque causado tanto na oferta como na procura. Assim, o contexto pandémico gerou um lastro que vem atingindo tanto as empresas como os trabalhadores, com consequências já visíveis nos níveis de desemprego. 

"Para além da paralisação de certos setores produtivos, vai haver também um lastro desta crise. Pessoas e empresas vão ficar com dívidas para pagar. Em alguns casos, essas dívidas vão implicar que essas pessoas vão ter de ser muito contidas em todas as suas despesas durante algum tempo".

A nível nacional, este choque pode constituir uma considerável quebra na economia portuguesa. Segundo a sondagem divulgada em maio pelo Instituto Universitário de Lisboa, 41% dos inquiridos mostram-se “muito preocupados” com a sua situação financeira, e 36% já viram a sua fonte de rendimento diminuir. 

Pedro Adão e Silva, professor auxiliar do departamento de ciência política e políticas públicas no Instituto Universitário de Lisboa, alerta para o aumento exponencial dos pedidos de lay-off e do desemprego, que pode resultar na multiplicação da carência económica e social.

"Quando se olha para os efeitos económicos e sociais desta crise, tem-se desvalorizado o efeito multiplicador", declara o investigador. "Este efeito prende-se com as proporções que a crise pode tomar, dado que o lay-off e o desemprego afetam setores específicos, mas podem afetar toda a economia."

De acordo com o estudo divulgado pelo Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR), o número de trabalhadores em lay-off aumentou, nos períodos compreendidos entre 31 de março e 14 de abril, cerca de 13 vezes. No mesmo período, o número de empresas em lay-off aumentou 20 vezes.

“Nós temos aqui este paradoxo: as vítimas principais e imediatas da covid-19 são os grupos de risco e os idosos; as principais vítimas do confinamento serão os jovens adultos e aqueles que estão no mercado de trabalho”, enfatiza Pedro Silva.

Segundo António Cândido da Silva, presidente do Banco Alimentar do Porto, houve um aumento “brutal” nos pedidos de ajuda. “Estamos a receber diariamente mais de 60 pedidos de ajuda individual", quando "os pedidos não passavam de 40 por ano”, afirmou.

Para o investigador, enfrentar o efeito "multiplicador" que esta crise pode gerar, demanda a "recuperação da confiança", na medida em que se denota um medo generalizado causado pelo contexto de pandemia. Fortalecer a confiança é fundamental para que haja "um efeito agregado na economia que contrarie estas tendências, que são aterradoras".

"A normalidade é regressar em práticas quotidianas rotineiras. O problema é que as pessoas, neste momento, têm muito receio de voltar a essas práticas. Se isso não acontecer, não é só a questão económica e social que se tornará insustentável, é a nossa própria vida em sociedade que será difícil de suportar", evidencia.

Fotografia: Markus Spiske

Fotografia: Markus Spiske

União Europeia, crise e direitos laborais: desafios e respostas

Contrariando "algumas ideias mais pessimistas" sobre a atuação da União Europeia (UE) num contexto de crise e pandemia, Pedro Adão e Silva considera que já foram tomadas medidas fundamentais. Apesar de ainda não terem produzido efeitos, o investigador destaca duas: a suspensão das restrições no acesso ao mecanismo europeu de estabilidade; e a possibilidade, que foi aberta, de a própria Comissão Europeia se financiar junto dos mercados para emprestar dinheiro aos Estados-Membros.

A 23 de abril, os dirigentes da União Europeia comprometeram-se a trabalhar no sentido de estabelecer um fundo de recuperação. Face o apelo, no dia 27 de maio, a Comissão Europeia apresentou a sua proposta relativa a um fundo de recuperação temporário (Next Generation EU) e ao orçamento de longo prazo. A proposta será avaliada a 19 de junho.

Segundo o órgão europeu, o orçamento de "longo prazo" terá a duração de 6 anos, começando já no próximo ano (2021 - 2027). O fundo de resolução temporário, por seu turno, "mobilizará uma série de instrumentos destinados a investir numa UE verde, digital e resiliente".

Baseando-se em três pilares, o fundo pretende: apoiar os Estados-Membros na recuperação económica face a crise; relançar a economia e ajudar o investimento privado; e "tirar ensinamentos da crise", com destaque para o setor da saúde.

Do ponto de vista da resolução dos problemas do mercado de trabalho, Aguiar e Silva considera que o mais importante, para além da proteção e regulação dos direitos laborais dos trabalhadores, é refletir sobre os setores de investimento aplicados pelos Estados.


"A chave para nós ultrapassarmos a crise é perceber que critério é que vamos ter para investir. Em que setores vamos investir? Vamos aproveitar este momento para fazer alguma transição digital para reconverter, do ponto de vista ecológico, as nossas economias? O que é que isso significa do ponto de vista do perfil de qualificação e da formação da força de trabalho?" Pedro Adão e Silva


Para Ricardo Paes Mamede, será necessário assegurar condições de financiamento adequadas aos Estados, para que não paguem juros muito elevados, e a garantia de que essas condições se vão prolongar "durante muitos anos". Outra proposta passa pela elaboração de um pacote de fundos para "promover a retoma económica para quando as coisas se normalizarem".

Como chegamos aqui?

O antes e o agora

Foto: AFP

Foto: AFP

Existem situações evitáveis e uma pandemia não é uma delas. Mas há fatores que tornam Portugal um caso especialmente problemático, nomeadamente a natureza precária da maioria dos empregos, e a dependência no setor do turismo.

Dinis Lourenço, da direção nacional da Interjovem, sublinha que o pacote de medidas destinado ao combate à precariedade, implementado no governo PS, empurrou muitos jovens e outros trabalhadores para uma situação ainda mais precária. "O que estamos a ver a acontecer é que muitos dos jovens trabalhadores têm vínculos precários, seja através de contratos a termo, através de empresas de trabalho temporário, através de falsos recibos verdes, e que foram logo os primeiros a serem descartados quando começou a estalar o surto."

Na série de medidas aprovadas, e que vieram modificar pontos do Código do Trabalho, destaca-se a alteração do período experimental, previsto na Lei n°93/2019, de 4 de Setembro de 2019. O diploma em questão veio a alongar o período experimental para 6 meses (180 dias) e contribuiu para o processo de precarização dos postos de trabalho, especialmente para os trabalhadores jovens, explica Lourenço.

Alexandre Serra, de 21 anos, foi despedido da Fabrica Features, uma filiada da Benetton, e encontrava-se em regime experimental. O jovem refere a alteração da lei e o alargamento para 180 dias, como o "precedente" que possibilitou "as situações vulneráveis que muitos trabalhadores vivem agora."

Quando a direção se apercebeu da quebra significativa nos rendimentos, exerceram pressão sobre os trabalhadores, para que vendessem e tivessem mais contacto com os clientes que entravam na loja. "Uma situação paradoxal", afirma Alexandre, "estarmos numa situação de pandemia e ser-nos pedido para ter mais contacto".

Poucos dias antes de entrar em vigor o estado de emergência, a colega de Alexandre foi aconselhada pela empresa a tirar férias, enquanto o jovem se mantinha a trabalhar sozinho. No seu último dia de trabalho, ao terminar o turno, foi-lhe dito pela gerente para não regressar ao posto no dia seguinte. Dias depois, foram ambos informados da não renovação dos seus contratos, levando-os a deixar Lisboa e a regressar a Guimarães, sem aviso prévio. "É um choque muito grande, estar habituado a viver há 4/5 anos em Lisboa e agora, de repente, ser obrigado a voltar para casa dos pais, forçosamente, e mudar radicalmente a minha vida."

"Francisca" (nome fictício) também viu o seu contrato a termo terminado durante a pandemia. A Sogevinus havia prometido a sua efetividade no próximo contrato mas, perante o surto pandémico, decidiram dispensá-la. A jovem fica apenas com o sentimento de "ser mais um número", apesar de todo o esforço que dedicou ao seu trabalho.

Pedro Adão e Silva, investigador do ISCTE, argumenta que a pandemia expôs "alguns elementos do mercado de trabalho que podiam ser marginais e se tornam centrais, nomeadamente um traço estrutural do nosso mercado: o elevado grau de precariedade, que afeta desproporcionalmente os jovens".

Dados atualizados Livro Verde das Relações Laborais, divulgado em 2018, apontam que "a proporção de trabalhadores por conta de outrem com contratos de trabalho de carácter temporário tem aumentado paulatinamente ao longo das últimas duas décadas", superando a média europeia.

Esta tendência, segundo o documento, está assente num modelo que privilegia a contratação por tempo determinado, e é "particularmente elevada" entre os jovens trabalhadores.

Turismo: mais postos de trabalho ou mais precariedade?

O investigador aponta o setor do Turismo como um dos mais afetados pelo surto pandémico, realçando que este setor "serviu para a criação de muitos postos de trabalho em Portugal nos últimos anos." Um dos maiores desafios será, portanto, lidar com a massa de despedimentos neste setor, sendo que a recuperação do mesmo será das "mais morosas".

Os números saltam à vista: em 2019, o setor do turismo foi responsável por mais de metade das exportações de serviços (52, 3%) e por 19,7% das exportações totais. Em termos de receitas, o setor representa 8,7% do PIB (Produto Interno Bruto). O aumento do emprego no turismo, por sua vez, constituiu um peso de aproximadamente 7% na economia nacional.

Apesar destes números, Maria Gomes, coordenadora nacional da Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT), refere que este aumento das receitas no setor turístico não se reflete nos salários dos trabalhadores, sendo que "a maioria recebe o salário mínimo nacional".

A situação precária dos trabalhadores deste setor levou a que fossem as primeiras vítimas de atropelos laborais: suspensão dos contratos a termo, emissão de licenças sem vencimento, imposição de férias, despedimento dos trabalhadores em período experimental e cortes nos subsídios de alimentação foram as principais denúncias que a FESAHT recebeu diariamente.

No setor da hotelaria em particular, 90% das empresas recorreram ao regime de lay-off simplificado, afetando cerca de 51 mil trabalhadores. Maria Gomes alerta para a "situação extremamente fragilizada" em que se encontram estes trabalhadores, dado o valor já reduzido dos salários no setor.

Corroborando esta ideia, Pedro Adão e Silva, salienta a questão da precariedade estrutural do mercado de trabalho português, acrescentando que não se cinge apenas ao vínculos laborais, mas também aos rendimentos.

Ainda sobre o lay-off, Maria Gomes afirma que é "uma medida incompleta, porque deixa cerca de 200 mil trabalhadores das micro-empresas da restauração e do alojamento local de fora", dado que estas empresas não têm forma de recorrer ao lay-off.

No entanto a grande preocupação da FESAHT "são os milhares de trabalhadores que ficaram sem emprego", declara a coordenadora nacional. Acrescenta ainda que muitos destes trabalhadores "não tinham contratos de trabalho ou não tinham feito ainda o tempo necessário de descontos para aceder ao fundo de desemprego", ficando desta forma "sem trabalho e sem qualquer apoio."

"A ACT não existe para ensinar as empresas a cumprir a lei"

Outro precedente que coloca os trabalhadores em especial fragilidade está relacionado aos meios parcos que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) possui para fazer fiscalizações. Andrea Araújo, líder sindical da CGTP, denuncia a falta de investimento na ACT e a falta de fiscais para fazerem trabalho no terreno.

Apesar das medidas recentes do Governo para investir em recursos humanos na ACT, Andrea refere que esta formação não é possível concretizar-se "em 2 ou 3 meses", e que a abordagem à questão é insuficiente. Para a sindicalista, o problema do mecanismo não se prende só com a falta de recursos, mas também a falta de "orientação". Andrea enfatiza que uma ACT fraca não pode defender os trabalhadores, mantendo-se apenas "ao serviço dos grandes grupos económicos".

"Sabemos que em muitos sítios a ACT não está a fazer fiscalização no terreno. E não estando no terreno, não sabemos como é que pode fazer o seu trabalho", refere Maria Gomes, coordenadora da FESAHT. Gomes declara ainda que a Federação vai levar estas questões à Ministra do Trabalho, uma vez que não obteve resposta na maior parte das denúncias que faz chegar à Autoridade para as Condições do Trabalho.

Outras críticas tecidas à ACT são feitas no âmbito da imparcialidade e "não ouvir apenas a entidade patronal, mas também os trabalhadores", como refere Fátima Messias, coordenadora nacional da Federação Portuguesa dos Sindicatos da Construção, Cerâmica e Vidro (FEVVICOM). "A ACT não existe para ensinar as empresas a cumprir a lei, a ACT existe para fiscalizar e para sancionar as empresas que muitas vezes não cumprem a lei e não é por desconhecimento, é por opção", remata a sindicalista.

O Decreto n.º 2-B/2020, que prolongou o Estado de Emergência até ao dia 17 de abril, garantiu novos poderes aos inspetores do trabalho. Nomeadamente, o direito de suspender imediatamente despedimentos que violem o Código de Trabalho, como se pode ler no artigo 24º.

As normas da Organização Mundial do Trabalho (OIT), recomendam um rácio de um inspetor de trabalho para cada 10.000 trabalhadores. De modo a respeitar esta norma, a ACT deveria ter 491 inspetores, quando na realidade tem apenas 443, restringindo a presença da ACT no terreno. No entanto, os 43 inspetores em estágio colocarão os números da Autoridade para as Condições do Trabalho muito mais próximos do recomendado.

Um por todos e todos por um

Entre sindicatos, organizações e iniciativas nas redes sociais, são vários os agentes que somam forças para prestar apoio aos trabalhadores afetados

Tarsila do amaral (1933)

Tarsila do amaral (1933)

"Pilares da democracia" em queda? O papel dos sindicatos em tempos de pandemia

Créditos: Carolina Martins e Ana Margarida Nogueira

Há quem diga que o sindicalismo está para morrer, e há quem diga que ele sairá reforçado de todas as situações de crise.

Por um lado, dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) indicam que Portugal apresentou, entre 1978 e 2016, a segunda maior quebra na taxa de sindicalização. Se em 1978 se registava uma participação sindical de 60,8%, em 2016 esse valor desceu para os 15,3%, configurando uma queda de 45,5%.

Andrea Araújo, membro do Conselho Nacional da CGTP-IN, por outro lado, sublinha os 115 mil novos sindicalizados em quatro anos como exemplo da força crescente dos sindicatos em Portugal.


Chegou a covid-19 a Portugal, as empresas começam a fechar, o Governo viu-se obrigado a propor legislação extraordinária de trabalho em prazos recorde, fazendo sucessivas alterações a essas leis, posteriormente.

Os telefonemas e e-mails, por impossibilidade de visitas presenciais, começam a chegar a todos os sindicatos do país. Começam os despedimentos, os lay-offs simplificados, o término dos contratos a prazo, a imposição de férias. Para Dina Carvalho, secretária-adjunta da UGT, "num contexto destes, mais do que nunca, os sindicatos estão reforçados."

A líder sindical da UGT refere que os sindicatos são "pilares da democracia" e que "qualquer país democrático tem de ter sindicatos livres que representem os trabalhadores e que sejam a voz de todos os trabalhadores".


"Acho que ninguém sai reforçado desta situação, mas é uma ocasião onde os sindicatos se mostram essenciais, assim como foi na crise de 2008." Dinis Lourenço (InterJovem)


A secretária-geral adjunta menciona o papel da UGT na denúncia pública dos casos de abuso patronal através dos meios de comunicação social, o meio predileto para informar os trabalhadores não sindicalizados sobre possíveis atropelos aos seus direitos. A organização sindical recorre ainda aos Ministérios e a outros mecanismos como a ACP e o IGAI para reforçar a luta pelos direitos laborais e pelo cumprimento da lei.

Dina Carvalho ressalva que o mais importante "é manter os postos de trabalho", de modo a que "quando sairmos da crise, termos condições para que a economia renasça, para que a economia volte a funcionar e para isso precisamos de empresas e as empresas precisam dos trabalhadores".

Por sua vez, Andrea Araújo refere a importância da "não distinção, na informação que produzem e disseminam, entre sindicalizados e não-sindicalizados", por considerar que "é essa informação que faz os trabalhadores aproximarem-se dos sindicatos".

A responsável pelo departamento de propaganda e informação da CGTP expôs também que as denúncias mais frequentes são de despedimentos em que os trabalhadores ficaram sem acesso ao subsídio de desemprego e a questão da parentalidade, em que os pais são obrigados a manterem-se em casa, sem qualquer rendimento, tanto por parte da Segurança Social, como das empresas em que trabalham.

Entre os atropelos laborais, Joaquim Rodrigues destaca também a questão da imposição de férias, afirmando que “as empresas irão acabar por pagar o preço”, dado que as férias forçadas “impossibilitam o descanso físico e mental dos trabalhadores, ainda por cima num contexto de pandemia”. O coordenador da União dos Sindicatos de Braga explica que os trabalhadores irão regressar ao trabalho “mais cansados e debilitados” e que isso afetará a produtividade.


"Por mil habitantes, Portugal continua a ter um dos rácios mais baixos de enfermeiros na Europa." Guadalupe Simões, dirigente sindical do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP)


Dina Carvalho salienta a situação penosa dos trabalhadores do setor da saúde, que se encontram na linha da frente contra "um bicho com a qual ainda não sabemos lidar", ao mesmo tempo tem que são "continuamente desrespeitados pelas instituições em que trabalham".

Na mesma linha, Guadalupe Simões diz que o cenário dos enfermeiros é "extremamente preocupante", dado o perfil sócio-demográfico da profissão "maioritariamente feminina e jovem", mas também porque "muitos enfermeiros são casados com outros enfermeiros ou profissionais de saúde".

A delegada sindical do SEP relembra também a questão dos baixos salários, dado que no quadro dos países da Europa ocidental, os enfermeiros portugueses são dos que recebem menos, tendo, no entanto, altos níveis de formação.

Outra questão enfatizada é a de falta de material de proteção individual e sua escassez, como salienta Guadalupe Simões do SEP: "numa fase inicial o equipamento de proteção individual só existia nas unidades de cuidados intensivos".

A dirigente sindical menciona questões relacionadas com a carência de enfermeiros em Portugal, uma situação que em contexto de pandemia se agrava "tanto pelo número de enfermeiros infetados, como os que se encontram em isolamento profilático, por terem entrado em contacto com doentes infetados". Guadalupe Simões afirma que “faltam cerca de 20 mil enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde”.

A falta de enfermeiros acaba por criar uma situação em que os que se encontram a laborar tenham turnos de carga horária ilegal, de 12 ou até 24 horas. Simões ressalva que esta questão é já anterior à pandemia, e vem do facto das “instituições quererem sempre fazer mais com menos, ou pelo menos com os mesmos”, levando a que sejam “sempre os mesmos a pagar a fatura e a trabalhar mais, ainda que esse trabalho não seja pago, como trabalho extraordinário, como deveria ser”.

“A saúde mental dos enfermeiros acaba altamente danificada, pelo medo de ser infetado, pelo medo de infetar outras pessoas e pelas horas excessivas de trabalho que fazem”, remata a sindicalista. Apesar de referir que o Ministério da Saúde criou uma linha de apoio psicológico, acredita que “o cansaço e o medo, vão ter certamente consequências naquilo que é a disponibilidade física e mental dos enfermeiros”.


"Há da parte das empresas, de facto, uma grande desorientação, e diria um aproveitamento, para porem em prática muitas questões que estão fora da lei." Maria Gomes, coordenadora da FESAHT


No setor da alimentação e da hotelaria, que é marcado por um grande número de trabalhadores temporários ou com contratos a termo, os efeitos da pandemia fizeram-se sentir de forma colossal. Apesar do setor ter crescido exponencialmente em Portugal, a coordenadora da FESAHT (Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal), argumenta que os trabalhadores não vêm este crescimento refletido nos seus salários.

Neste âmbito, Joaquim Rodrigues refere a questão do período experimental e descreve-a como “uma cedência do governo PS aos interesses dos grandes grupos económicos, especialmente da hotelaria”, dado que este setor é sazonal e pode “contratar e de seguida despedir trabalhadores dentro do período de 180 dias”.

Sobre a questão do lay-off, a mais comum no setor hoteleiro, Gomes salienta a descida dos salários, já baixos, e o número de trabalhadores que não são abarcados por esta medida, por pertencerem às pequenas e médias empresas.

Defende ainda a criação de um fundo social para os trabalhadores destas empresas, dado que muitos "estão completamente desprotegidos", não conseguindo sequer aceder ao subsídio de desemprego.

Maria Gomes expõe também que muitos hotéis não pararam de laborar durante o estado de emergência, aceitando reservas de pessoas que iriam para os estabelecimentos "fazer quarentena". A coordenadora da FESAHT referiu que a quebra de 40% de lucros deste setor levará à falência de "muitas empresas familiares" e que apenas "as grandes cadeias de restauração e hotelaria estão salvaguardadas".

A líder sindical pontua que a maior dificuldade prende-se com o facto dos sindicatos "não terem voz nos meios de comunicação social", o que impossibilita "chegarem a mais trabalhadores", principalmente os que não se encontram sindicalizados.


"Nenhuma das nossas empresas parou." Marcos Rebocho, coordenador nacional do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Alimentar do Centro, Sul e Ilhas (STIAC)


Marcos Rebocho apresenta um panorama diferente no setor Alimentar. O coordenador do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Alimentar do Centro, Sul e Ilhas (STIAC) afirma que em muitas empresas deste setor “tem havido um acréscimo de produção”, e portanto, “não se sentiu muito o impacto do corona-vírus”

O dirigente sindical afirma que a função do sindicato tem sido a de informar o maior número possível de trabalhadores, dado que “não há respostas por parte da Segurança Social, nem da ACT”.

Sendo que os trabalhadores deste setor são considerados trabalhadores essenciais e não puderam interromper a sua atividade laboral, o seu risco de contágio era elevado. Marcos Rebocho releva as dificuldades que muitas empresas tiveram em implementar planos de contingência.

O coordenador nacional do STIAC reflete também sobre a mudança de atuação do sindicato, referindo que “se calhar noutras alturas não estaríamos sempre em cima da falta de condições nos locais de trabalho, noutras alturas não estaríamos tão preocupados com a saúde física dos trabalhadores e, acima de tudo, se calhar não estaríamos em contacto constante com os nossos delegados sindicais, para saber como estão a correr as coisas”.


"As questões laborais não estão a ser devidamente tratadas pelo Governo." Fátima Messias, FEVVICOM


As denúncias mais frequentes que chegam à Federação Portuguesa dos Sindicatos da Construção, Cerâmica e Vidro (FEVVICOM) vão desde a imposição de férias à alteração dos horários de trabalho, sem acordo com os trabalhadores.

Fátima Messias admite que o setor que se encontra num estado “mais preocupante” é o da construção civil, tanto porque não houve interrupção do trabalho, apesar da coordenadora nacional considerar que “não é uma atividade que se justifique manter a laborar”, mas também porque “continuam a trabalhar nas mesmas condições”. Acrescenta ainda que “se a inspeção do trabalho estivesse no terreno, muitas obras e empreitadas já tinham ficado transitoriamente suspensas”.

Sobre os planos de contingência, Fátima declara que “a maioria deles só existem no papel” e que nos locais de trabalhos onde não existem delegados sindicais é impossível terem “noção da gravidade do incumprimento”.

A sindicalista afirma que as medidas do governo “não protegem a totalidade dos trabalhadores” e que “as leis têm de ter em conta todas as partes envolvidas e não só a entidade patronal”.

A coordenadora nacional da FEVVICOM enfatiza ainda algumas das consequências da pandemia na vida dos trabalhadores, relacionando com as medidas “insuficientes” que têm vindo a ser tomadas pelo Governo português.


"Nós entendemos que tem de deixar de haver uma perspetiva de lucro nestas instituições." Sebastião Santana, coordenador da Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais


No quadro da função pública, Sebastião Santana, coordenador da Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais (FNSTFPS), menciona os cortes salariais nos “trabalhadores que tiveram de ficar em casa, por causa dos seus filhos.” Mas também nos restantes trabalhadores que viram o seu rendimento reduzido, assim como a questão da falta de funcionários, motivada pelo “desinvestimento na Administração Pública”.

Em relação ao setor social, Santana menciona o caso das Misericórdias e IPSS, afirmando que estes são setores onde existem “mais atropelos aos direitos dos trabalhadores”. Refere o desrespeito ao “conteúdo funcional”, ou seja, trabalhadores a cumprir funções que não são próprias do seu cargo. O dirigente sindical acrescenta ainda que “estas funções deveriam ser asseguradas pelo Estado e não por IPSS’s, estamos a falar de cuidar de população desprotegida e devia ser o Estado a assegurar isso com toda a força, e não o faz”.

“Nós entendemos que tem de deixar de haver uma perspetiva de lucro nestas instituições, o lucro maior que se tira daqui é um lucro social, não pode ser nunca um lucro monetário”, remata Santana.

Em relação ao teletrabalho, o dirigente sindical afirma que “só pode ser usado em situações limite”, como é o caso do surto pandémico. Acrescenta ainda que espera que “não se torne uma realidade”, dado que “desvincula o trabalhador do seu local de trabalho e tira-lhe a relação social que o próprio trabalho implica”.


"Os pescadores não têm um salário mínimo nacional e nós não sabemos porquê." Josué Tavares Marques, membro da direção do Sindicato das Pescas do Sul


O setor piscatório entrou na categoria do trabalho essencial durante a pandemia. Contudo, Josué Tavares Marques afirma que “não há medidas que protejam os pescadores”, remetendo ao Fundo de Compensação Salarial para os Profissionais de Pesca que continua a não ser aplicado, mesmo num contexto em que seria essencial para a sobrevivência da categoria.

As medidas em relação ao risco de contágio ou à criação de planos de contingência para este setor são nulas, tanto pela impossibilidade de distanciamento social, como pela inação do governo, afirma Marques. Acrescenta que a frota devia ter parado durante algum tempo; porém, entende que essa paragem poderia afetar a "soberania alimentar”.

Josué Marques comenta, em tom jocoso, a invisibilidade do setor, nomeadamente nas forças políticas. Dá o exemplo da não referência do setor da pesca, no discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no qual o Presidente se dirigia “a todas as profissões".

“Quanta mais valorização tiver o pescado, melhor serão os rendimentos dos pescadores”, afirma. Porém, o dirigente do Sindicato das Pescas do Sul refere que as medidas propostas para a valorização do pescado durante a pandemia, a restrição da pesca aos fins-de-semana é uma medida insuficiente e que “nada faz pelos trabalhadores da pesca”.

Marques menciona também a questão da precariedade ao nível salarial, dado que os pescadores não têm um salário fixo, nem um salário mínimo nacional. Esta questão leva ao envelhecimento das tripulações, dado que os jovens não se sentem motivados para trabalhar num setor tão instável.

“Não sei como é que se aplica o lay-off no setor da pesca”, afirma o sindicalista. Dada a não existência de um salário garantido, questiona como será calculado o valor do lay-off: “será com base no ano anterior, nos últimos 6 meses? Sinceramente não sei”.

"Os direitos não entraram em quarentena"

Para além da ação dos sindicatos, o Bloco do Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) criaram mecanismos de denúncia para a exposição pública de casos de atropelos laborais.

Todos os dias, através das suas páginas nas redes sociais, expõem inúmeros casos, maioritariamente de grandes empresas que cometem todo o tipo de ilegalidades ou situações irregulares: imposição de férias, despedimentos, faltas de condições de segurança no trabalho, recusa do pagamento do subsídio de alimentação, e tantas outras.

Um dos objetivos dos projetos é pautar na agenda pública o tópico dos direitos laborais numa altura em que manifestações e atos públicos encontram limites. Na visão de João Frazão, membro da Comissão Política do Comité Central do PCP, "os direitos não entraram em quarentena".

Para José Miranda, militante e ativista do Bloco de Esquerda, o site despedimentos.pt foi uma resposta criada após o entendimento de que esta crise "não seria meramente sanitária, mas iria ter graves consequências económico-sociais".

A questão dos términos dos contratos a termo e os despedimentos em período experimental são das mais preocupantes para o Bloco de Esquerda, afirma Miranda. Faz também questão de salientar a "hipocrisia" das medidas do Governo.

Outro objetivo, para o militante do PCP, é através da denúncia pública e do contacto com os trabalhadores que sejam vítimas de atropelos laborais, articular com os sindicatos da CGTP-IN "para conseguir reverter algumas das situações". Frazão salienta que "não querem ocupar o espaço que é do movimento sindical, e que é de ação direta junto dos trabalhadores".

No entanto, João Frazão relembra que, através da receção de denúncias e a categorização das mesmas, o Partido Comunista Português tem a oportunidade de compreender quais são as denúncias mais frequentes e propor projetos-lei que vão ao seu encontro.

A pandemia "deixa a nu" uma questão frequentemente denunciada pelo PCP: "a brutal injustiça que existe nas relações laborais". Frazão acrescenta que a precariedade "não é apenas laboral, mas sim uma precariedade na vida de cada um. Porque cada um não sabe se amanhã, não é apenas se tem trabalho, mas se não tendo trabalho consegue pagar a renda, a luz ou os estudos dos filhos".

Na mesma linha, o militante do PCP considera que a surto pandémico demonstra claramente "as fragilidades do sistema capitalista" e a forma que está direcionado para servir apenas "os interesses do grande capital, descartando facilmente milhares de trabalhadores e condenando-nos à pobreza".

Em relação às denúncias que lhe chegam por todos os meios, mas principalmente o digital, João Frazão assume que, apesar dos tempos não serem fáceis para ninguém, esta não é razão para se entrar num registo de "selvajaria" em matéria laboral.

"Queremos dar visibilidade porque sabemos que a injustiça e as discriminações ocorrem e têm espaço para crescer no segredo, no silêncio e na invisibilidade", finaliza José Miranda.

Patrícia (nome fictício) trabalhava para a Amorim Luxury, num dos restaurantes do grupo, desempenhando o cargo de sommelier, e foi um dentre vários testemunhos que compuseram a lista de denúncias destes mecanismos.

Quando se começaram a confirmar os primeiros casos de covid-19 em Portugal, a jovem começou a temer as condições de trabalho e a exercer pressão para a chefia tomar medidas concretas.

Após ter recebido a informação, através de outros colaboradores, de que haviam casos positivos dentro da empresa, que não estavam a ser comunicados às equipas, Patrícia decidiu recusar-se a trabalhar. Posta esta tomada de posição, foi-lhe descontado um dia de falta injustificada no salário e, a 24 horas de se tornar automaticamente efetiva na empresa, foi-lhe anunciado de que o seu contrato não iria ser renovado.

A jovem de 23 anos defende que o comportamento "altamente perigoso e nocivo de uma empresa deste calibre não pode ser tolerado". Patrícia seguiu com queixa nos respetivos mecanismos de denúncia, junto da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e na página do PCP. "Não há qualquer arrependimento, faria tudo outra vez", rematou.

"Se se continuam a prostituir (durante a pandemia), é porque têm clientes"

"O Ninho" não nasceu para lidar com a atual crise, mas com uma outra crise centenária: a do tráfico sexual e prostituição. Criada em 1967, "O Ninho" é uma Instituição Privada de Solidariedade Social (IPSS), que visa ajudar e acolher pessoas em situação de prostituição ou tráfico sexual.

Quando ouve que a conversa ocorre no âmbito de um projeto sobre os direitos laborais em tempos de pandemia, Conceição Mendes prontifica-se a clarificar a posição da instituição em que trabalha há 35 anos: "Não consideramos a prostituição um trabalho."

Para Mendes, a pandemia só veio reforçar "a miséria e a pobreza que já existia", mas não só: a conjuntura atual também pode abrir portas para quem não conseguir encontrar outra saída.

Olhando para o panorama geral da crise social e económica, a assistente social não tem dúvidas: "esta crise que se vai avizinhar coloca em situação de pobreza muitas outras pessoas que nunca iriam para a prostituição".

Conceição Mendes recua para a crise financeira de 2010 e recorda que, face o desemprego e o risco de pobreza, várias pessoas recorreram à prostituição como ganha pão. "Sabemos um caso de um casal em que ambos perderam o emprego, e a mulher começou a prostituir-se sem o parceiro saber".

A assistente social confirma que muitas mulheres continuam a prostituir-se, mas que é necessário analisar este fenómeno por outra lente: "se se continuam a prostituir (durante a pandemia), é porque têm clientes". Afirma também que a situação da pandemia não é uma novidade: "antes da covid-19, houve a sífilis ou a sida e nenhuma destas epidemias diminuiu a procura da prostituição".

Face a situação atual, muitas optaram por interromper a sua atividade, dado o elevado risco de contágio. Em contexto de vulnerabilidade financeira, muitas mulheres recorreram ao Ninho nesta fase para garantir a sua sobrevivência.

Conceição explica que o plano de acção consiste em reencaminhar estas mulheres para os mecanismos criados para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade, e que isto poderá ser uma "oportunidade" para algumas mulheres "criarem laços e experimentarem uma vida nova", levando a que algumas decidam iniciar o processo de saída da prostituição, com o apoio da instituição.

Cabeçalho do site da instituição "O Ninho"

Cabeçalho do site da instituição "O Ninho"

"Conhecimento é poder"

Se é verdade que a pandemia intensificou a crise e gerou um clima nubloso repleto de questionamentos, é também certo que houve quem aproveitasse o momento para estreitar laços de solidariedade.

Claúdia Martins Costa é um dos exemplos nessa frente de batalha. A advogada é uma das participantes de um grupo de Facebook intitulado "Leis COVID-19". O propósito da página é oferecer aconselhamento legal pro-bono sobre a legislação extraordinária que o Governo emitiu face a situação pandémica.

As regras são simples: quem estiver com dúvidas sobre o quadro jurídico atual escreve um post e espera que algum dos advogados administradores ou moderadores explique a questão. Claúdia Costa enfatiza que o papel do grupo não é prestar "consultas jurídicas", mas "informações generalistas que podem dar uma ideia aos cidadãos de como agir e como se protegerem."

A advogada diz que as dúvidas presentes no grupo são "muitas e diversas". No entanto, as mais frequentes estão relacionadas com o lay-off simplificado, a operacionalização da caducidade dos contratos de trabalho, as moratórias e os créditos.

Claúdia refere também que "todos os mecanismos criados face a situação pandémica" são terreno novo "para quem está a legislar, para quem está a interpretar a legislação e é terreno ainda mais estranho para quem lê notícias atualmente." Por essa mesma razão, o propósito do grupo é "chegar aos cidadãos com uma linguagem que eles reconheçam". Para Martins, o Governo deveria ter esta questão mais em conta, optando por comunicações ao país "feitas de uma maneira mais legível para todos e numa linguagem mais coloquial."

"Temos o dever de informar os cidadãos, e especialmente em tempos destes é urgente fazê-lo", é a principal reflexão que Claúdia Costa retira da sua experiência no grupo. Defende ainda que esta ponderação deveria ser transversal a todas as classes profissionais.

"Se todos nós ajudarmos um bocadinho, podemos sair desta situação mais fortes enquanto sociedade, mais informados, mais competentes e acima de tudo, mais solidários."

Printscreen do cabeçalho do grupo de facebook "Dúvidas Legais - Covid 19"

Printscreen do cabeçalho do grupo de facebook "Dúvidas Legais - Covid 19"

Duas cabeças pensam melhor que uma: quem somos

Ana Margarida Nogueira

Carolina Martins