A praticar desporto todos se entendem

No Desporto Escolar, ninguém é descartado. Todos podem chegar mais alto.

Portugal tem um problema particular.
Os hábitos de atividade física deixam muito a desejar.

É o país da União Europeia com mais habitantes a referir nunca praticar atividade física - 73%, de acordo com o Eurobarómetro de 2022.

São hábitos culturais com impacto negativo direto na saúde pública. Não é novidade. Todos o sabem. Ainda assim, a resposta é insuficiente.

40€ para promover atividades desportivas. É este o valor atribuído, em média, a cada português, segundo o Instituto Nacional de Estatística. A média da UE fixa-se nos 113€.

Além disso, apenas
0,041% do Orçamento do Estado 2025 se destinou ao Desporto.

Sensibilizar para a importância da prática desportiva é uma tarefa facilitada se direcionada aos jovens. O Desporto Escolar pode não ser solução absoluta. É, certamente, um bom começo.

Em 2022, Portugal registava pouco mais de 1,7 milhões de estudantes. Mas só 22% desses optaram por usufruir da oferta desportiva extracurricular das escolas. É um dado apresentado pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência.

Além disso, no 1º ciclo, a legislação não garante uma carga horária mínima de atividade física. A tentativa que mais se aproxima remete para o Decreto-Lei n.º 55/2018, que exige cinco horas para um conjunto de disciplinas de promoção de valores culturais (das quais Educação Física consta). Definir horários dedicados para o contacto com o desporto, nas crianças entre os seis e os nove anos, fica a exclusivo cargo das direções de agrupamento. Torna-se, por vezes, numa barreira a alunos sem meios para aderir a um clube ou projeto desportivo externo ao contexto letivo.

O paradigma não eleva o estatuto nacional, mas Carlos Dias, representante do desporto nas escolas do distrito de Braga, não deixa de realçar o molde utilizado no desenvolvimento do projeto desportivo. Com a iniciativa do Desporto Escolar em todos os estabelecimentos de ensino de Norte a Sul do país, Portugal dá um grande atributo a todos os alunos: a prática de atividade física de forma gratuita.

"A missão do Desporto Escolar é fazer bons atletas, bons alunos e boas pessoas."
Carlos Dias

Ilustração: Beatriz Braga. Narração: David Braga.

A escola como meio

BECA - Bastinhos Escola Clube de Andebol

20 minutos de sobra no horário de um professor e paixão pelo desporto. Foram estes os ingredientes necessários para criar um projeto escolar de referência para um município. Mais tarde, tornar-se-ia num clube a formar atletas para as seleções nacionais de andebol.

João Varejão é "pai" do projeto Bastinhos Escola Clube de Andebol- ou BECA, como todos o tratam. Pelas mãos deste professor e treinador passaram quase 700 crianças de Celorico de Basto. Hoje, orienta 12,5% dos estudantes no município, o equivalente a cerca de 250 atletas. Todos o adoram e celebram o papel que teve nas suas vidas.

Carlos Dias reconhece que “os grandes projetos nascem de professores diferenciadores”. Não consegue falar do assunto sem referir o avanço projetado pelo professor Varejão em Celorico. Louva o cargo que ele próprio ocupa: “ser professor de Educação Física não é uma profissão, é uma missão”.

Pelos caminhos de Celorico de Basto, vê-se BECA em todo o lado. Passeiam dois jovens junto da estrada principal. Envergam o símbolo ao peito. A meio, fazem uma paragem para contemplar um placar alusivo ao clube, no qual constam dez produtos da formação que atingiram o mais alto nível no andebol nacional. Quem sabe, um dia, serão, também, atletas relembrados na sua cidade natal.

Todos os celoricenses reconhecem o impacto que o BECA tem na comunidade.

Todos os celoricenses reconhecem o impacto que o BECA tem na comunidade.

Seguem viagem para a Secundária de Celorico de Basto. Trata-se do destino de muitas crianças celoricenses (quase todas, na verdade). Mais que uma escola, é o epicentro do BECA, onde toda a gestão do clube é efetuada.

É pela relação com a escola que o BECA se distingue das outras equipas de andebol do país. O clube formou-se com o apoio do Agrupamento de Escolas de Celorico de Basto, primeiramente sob a forma de projeto extracurricular. Mais tarde, expandiu-se para a competição federada e marca, agora, presença nos vários escalões de formação, nas vertentes masculina e feminina.

Carlos Dias acredita que os clubes devem aproveitar oportunidades com as escolas, “desenvolvendo estratégias de cooperação e de continuidade de carreira desportiva”. Em Celorico de Basto tem-se esse cuidado. A "ponte" entre clube e escola permanece firme. Os alunos podem escolher representar o BECA, a equipa de Desporto Escolar ou, até, ambos.

Ainda assim, dá-se primazia a que os atletas numa fase ainda mais embrionária da sua formação sejam convocados para a competição da Coordenação Local de Desporto Escolar (CLDE) de Braga. À medida que vão evoluindo, passam a ter mais oportunidades nos quadros federados.

Com muita experiência a comandar equipas de formação, o treinador prioriza atribuir aos mais novos vários momentos de jogo - e de aprendizagem - perante resultados. É-lhes transmitido esse princípio desde cedo. “Sabemos que, em dez anos, conseguiremos catapultá-los para outros patamares", afirma Varejão. "Esta fase é só mais um step.”  

Os treinos são planeados de acordo com a carga horária dos alunos, privilegiando espaços de tempo livres entre aulas. Assim, às 18:00, os jovens podem regressar a casa já com atividade física realizada.

Um dia como qualquer outro

São 13:45, quarta-feira. Não há aulas, mas a escola não para. Está prestes a iniciar-se um jogo de Desporto Escolar de andebol feminino. Ninguém se atreve a não vestir a camisola da casa. O exemplo começa exatamente nas crianças que pelo recreio brincam.

João Varejão espera, no seu escritório, pelo retomar das atividades. Faz-se acompanhar de mais três treinadores: Mário, Sérgio e Catarina. Todos eles preparam-se para fomentar a paixão pelo andebol a dezenas de crianças. Pelo menos neste horário, já que outras tantas têm treino marcado para as 18:00.

O professor está encarregue de orientar o grupo de meninas que vai a jogo. Apressa-se, pois as jogadoras já se preparam para começar o aquecimento. Pelo caminho, explica um pouco da dinâmica da casa, com direito a uma visita ao palmarés do clube, ao mesmo tempo que recorda a fase de arranque do projeto.

Tudo começou em 2012. Motivado pela sua paixão, o professor Varejão uniu um grupo de estudantes do 5º ano para, com eles, partilhar o "bichinho" do andebol.

Nem sequer eram seus alunos, mas defende que "fazia sentido começar cedo, no primeiro ano de escolaridade do agrupamento". Não tardou, depois, a dar-se a expansão para a competição federada.

Os resultados são de excelência. A Escola em Celorico de Basto foi distinguida como Centro de Formação Desportiva de Desporto Escolar. É o único agrupamento com esta distinção no andebol e um de apenas dois a incidir sobre desportos coletivos.

No federado, o BECA atingiu o estatuto de Entidade Formadora de Nível 3, o patamar mais elevado segundo a avaliação da Federação de Andebol de Portugal.

Vamos a jogo

As atletas chegam ao recinto, prontas para representar a escola celoricense. Pela frente têm uma comitiva de Braga composta pela junção das escolas Carlos Amarante e Francisco Sanches. Estava planeado que cada instituição competisse de forma singular, num torneio a três, mas muitas alunas bracarenses, por estarem em época de testes, viram-se obrigadas a faltar.

Os orientadores educativos que vieram representar as escolas de Braga lamentam isso mesmo. Partilham da opinião que "o Desporto Escolar não toma em atenção essas pequenas coisas que atrasam o desenvolvimento da vertente". Fazem, por isso, "os esforços necessários para que as atletas não percam a oportunidade de competir".

Para quem joga pouco importa, desde que tenham uma bola na mão.

Entraves externos não impediram as jogadoras de protagonizarem um jogo fisicamente intenso e aguerrido.

Os treinadores focaram-se em garantir a rotatividade. Todas as atletas participaram no jogo.

A liderança parecia não querer afiliar-se a nenhuma das equipas. Uma competitividade que, aos olhos dos professores, "é favorável para a aprendizagem das atletas".

Desde então, a escola de Celorico de Basto alterou a narrativa do duelo. Assumiu as rédeas do jogo e catapultou-se para a vitória.

Com os 60 minutos concluídos, o marcador pintava-se de rosa celoricense.

Para os pais, ter um filho enquadrado num projeto desportivo com estas características “é um privilégio”, defende Varejão. Não despendiam de tempo extra do seu dia. Os treinos estavam marcados para a hora de almoço e, por isso, não precisavam de aguardar pelo fim das aulas. Mais que isso, o estudo não era afetado, intenção que governava aquando do planeamento do projeto ideal.

Novos atletas foram recrutados e uma maior carga de treinos era inevitável. Tornava-se difícil para Varejão e a escola acompanharem o desenvolvimento do BECA. "Sozinhos já não conseguíamos dar resposta ao crescimento que estávamos a ter", relembra. A solução centrou-se em novas parcerias.

Numa fase inicial, surgiu a Associação de Andebol de Braga e a Federação de Andebol de Portugal com um empurrão para a entrada na competição federada. O órgão nacional isentou o pagamento de inscrições. A instituição bracarense fez o mesmo com as arbitragens. Para a qualificação dos professores na modalidade , o Centro de Formação de Basto e Barroso ganhou preponderância e, na logística, o município facultou transportes para as deslocações .

É na autarquia que o BECA encontra o seu principal apoio financeiro. Com ela está estabelecido um protocolo de desenvolvimento desportivo, no qual é disponibilizado um orçamento que permite ao clube cobrir despesas associadas, por exemplo, à inscrição de atletas, seguros desportivos e contratação de treinadores. João Varejão sorri e caracteriza o projeto como "uma pequena-média empresa".

Formar seres humanos pelo desporto

João Varejão tem o grande objetivo do projeto bem traçado: promover um bom contexto educacional para os jovens de Celorico de Basto. Em conjunto com os restantes professores, compreende que “o andebol é só um veículo", cujo destino tem continuado a ser "os excelentes resultados no desenvolvimento de seres humanos”.

Numa fase inicial, lançaram uma iniciativa de combate ao insucesso escolar, sob a forma de protocolo com a Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa. Uma aposta nos recursos humanos, com o recrutamento do professor Mário Nery, permitiu que fosse "possível interferir na educação, traçando, pelo andebol, linhas para moldar a aprendizagem". Assim, "crianças mais irrequietas e irreverentes receberam o impulso para atingir o 9º ano e, mais tarde, o 12º".

A presença no contexto de escola invoca diferentes implicações. Trata-se de uma equipa, mas o enquadramento levanta outras necessidades: o recorrente e cuidadoso contacto com os encarregados de educação e o olhar atento na transmissão de princípios fundamentais sociais e humanos.

"Somos um clube diferente. Estamos dentro de uma escola. Os alunos sabem disso. Falam com um professor e existe uma base de respeito." Enquanto orientador educativo, realça que com o contexto surge um conjunto de valores - respeito, educação e resiliência - que são fomentados nos mais novos. Esta é a prioridade, mesmo dentro de campo.

“Que outra ambição pode ter um professor que não ver os seus alunos serem bens sucedidos e os pais satisfeitos com a educação que os filhos levam?” É por estes caminhos que se direciona a reflexão de Varejão. Fá-lo enquanto lamenta não contemplar, com mais frequência, o efeito do andebol no desenvolvimento académico dos seus atletas.

O BECA formou dez jogadores para as seleções nacionais de andebol português. Desses, nove enveredaram para o Ensino Superior. O décimo cumpre funções como oficial da Guarda Nacional Republicana. No ano passado, todos os alunos que concluíram o 12º ano decidiram seguir com os estudos, com a grande maioria na universidade escolhida como primeira opção. Para o coordenador, tudo isto "é extraordinário e deve ser adjetivado dessa forma".

“Nem tudo é perfeito. É um caminho, mas o resultado tem sido espetacular.”
João Varejão

O sucesso ultrapassou fronteiras municipais e encantou grandes personalidades do desporto português. Atingir o nível de reconhecimento nacional, para Varejão, deve-se apenas a um motivo: a dedicação das pessoas envolvidas.

Mais BECA! Mas de que maneira?

A personalidade do projeto tem muito do seu fundador. Por sua vez, o BECA rubrica a identidade de Celorico de Basto. Não podemos desenhar o mapa do município sem colocar um ponto vermelho na "casa" do andebol.

É por isto que Varejão se recusa a alargar o clube a outras modalidades. Lança o desafio a outros agrupamentos de escolas, inseridos em autarquias com uma identidade que propicie o avanço de uma iniciativa como o BECA.

O crescimento do projeto mantém-se como um objetivo, mas sob outros contornos. Alveja-se, agora, a construção de uma academia com mais espaços de treino, mais balneários, salas de musculação e, até, alojamento e cantina para receber atletas provenientes de outros pontos do país - e do mundo. No fundo, com as condições para maximizar o impacto social associado a ter uma bola na mão.

Até onde vai o BECA? A resposta revela tanta ambição como a que fez Varejão começar do zero. "Só paramos quando tivermos uma 'BECA Arena', a mobilizar cinco mil pessoas para apoiar a equipa, com um espetáculo de cultura no final do jogo e restaurantes cheios pelas redondezas. Quero o desporto como veículo para tudo isto."

Às 18:00, o dia ainda não acabou. Está prestes a começar o treino conjunto das equipas sub16 e sub18 masculinas. João Varejão, mais uma vez, estará presente. Não revela um único lamento. A alegria pela qual guia o seu discurso apenas comprova que não trocava isto por nada.

Uma ponte firme

Daniel Vasconcelos

“O Desporto Escolar não se mede por tabelas ou por excel. Mas temos casos. E os casos retratam o potencial que isto tem.”
Carlos Dias

Daniel Vasconcelos vestiu a camisola do BECA por oito anos, de 2013 a 2021. Enquadrou-se no lote de melhores atletas do país e seguiu para o ABC Braga, um histórico do andebol nacional.

Do projeto BECA saltou Daniel Vasconcelos. Será, para sempre, relembrado por ter pertencido à primeira equipa da história do clube. Integrou, também, o lote de dez internacionais eternizados por todo o município.

Nascido e criado em Celorico de Basto, fez todo o seu percurso no agrupamento de escolas do município. Sem saber, tinha tão perto a modalidade que viria a comandar a sua vida.

Começou o ensino básico um ano mais cedo do que o habitual. No BECA, correspondeu ao segundo ano de história. Estava matriculado no 4º ano quando, para sua sorte, participou numa demonstração de andebol, orientada por João Varejão. A paixão pelo desporto ganhou forma e o seu percurso arrancava.

Olhar para trás implica recordar, com saudades, os primeiros passes com a bola na mão. Neste caso, assumiram contornos pouco habituais. Daniel era o único presente nos treinos. "Juntava-me com o professor Varejão e ia aprendendo com ele. Alternávamos na baliza, rematávamos um ao outro e trabalhávamos técnica individual."

Dani - como todos lhe chamam - sabia que a hora de almoço estava reservada para o andebol. Chegava sempre pontual, mas sozinho, já que a única equipa, com atletas mais velhos, não tinha disponibilidade para treinar naquele horário. Além disso, ainda ninguém da turma em que estava matriculado se tinha juntado ao clube. Mas por pouco tempo. Um mês depois, Vasconcelos já passava a bola a outros colegas.

A presença do andebol no programa curricular motivou a adesão de mais jovens ao BECA. Não foi, contudo, a única razão. As conversas diárias com os seus amigos tornaram inevitável que, com o tempo, Daniel adquirisse companhia para treinar. Brinca, dizendo que "já estava farto de jogar sozinho".

Dar tudo, no federado e na competição escolar

Dani optou por um caminho diferente. Ingressou no andebol pelo BECA e só depois representou a sua escola.

Não encontra grandes diferenças, pelo menos no que ao espírito de comunidade diz respeito. Defende que "o BECA é um só". Praticamente todos jogam em ambas as vertentes e os treinos não fazem distinção. Assim é desde os tempos em que Daniel começava a jogar.

Numa análise à componente competitiva, não esconde a diferença evidente no nível. A representar a sua escola, deparava-se, muitas vezes, com adversários a experimentar a modalidade. A experiência acumulada dos atletas celoricenses proporcionava outros argumentos. Argumentos esses concretizados, muitas vezes, em vitórias volumosas.

Daniel, o atleta mais à direita, numa das suas primeiras provas no Desporto Escolar. (Foto cedida pelo Daniel).

Daniel, o atleta mais à direita, numa das suas primeiras provas no Desporto Escolar. (Foto cedida pelo Daniel).

Participou nos quadros do Desporto Escolar até à conclusão do escalão de infantil, altura em que venceu a competição regional e se qualificou para o Campeonato Nacional. Lembra-se com especial apreço da última, já que, tal como relata, "nunca tinha estado longe de casa". Mesmo assim, revela não ter sido difícil, porque pôde "estar com amigos e jogar andebol".

Findada a prova, Dani já possuía qualidades suficientes para se cingir ao BECA.

Estudo e o desporto, sempre compatíveis

Daniel testemunha as vantagens de pertencer a um clube inserido numa escola. O estudo nunca era colocado de parte. Ainda assim, faz questão de realçar que o andebol nunca foi impeditivo.

Não possuía tanto tempo quanto outros estudantes, mas refere ter aprendido cedo a organizar o dia. "Se tinha uma hora para estudar, sabia que era isso que tinha de fazer."

Os horários orientavam-se de modo a facilitar essa gestão. O clube intervinha para agendar os treinos no período letivo, de forma a libertar os momentos fora da escola.

Do BECA além fronteiras

O BECA foi, para Daniel Vasconcelos, mais que um começo. Pôde, também, assinalar duas das suas principais conquistas no andebol.

No que diz respeito a títulos com o emblema celoricense, a época 2018/2019 culminou no triunfo na segunda divisão nacional de juvenis masculinos. Trata-se de uma conquista que Daniel caracteriza como "o melhor momento" do seu percurso no andebol".

Ainda assim, o seu palmarés começou a ganhar forma anos antes, com a primeira convocatória às seleções jovens. Em 2016, representou Portugal no Torneio 4 Nações, no qual conquistou o ouro.

Para melhorar a experiência, fez-se acompanhar do tão familiar professor Varejão, aqui a cumprir a função de selecionador nacional. A gratidão volta-se por completo à casa que o viu crescer. Daniel sabe que sem o BECA e, especialmente, sem João Varejão, nunca teria atingido a elite dos escalões de formação.

Em 2021, o sucesso do camisola três do BECA proporcionou uma nova etapa, no ABC Braga. A mudança deu-se, acima de tudo, pela sua entrada no Ensino Superior, na Universidade do Minho.

Juntou o útil ao agradável. Mudou-se para Braga, garantindo a proximidade às aulas e ao pavilhão, onde representou um histórico da modalidade. Fê-lo por três anos. Hoje, continua a habitar na cidade dos arcebispos, mas, agora, ao serviço do Arsenal da Devesa.

Daniel saiu de casa há cinco anos. Revela que são os amigos que deixam mais saudades. "O ambiente era muito bom, super divertido e competitivo."

Sempre que a oportunidade se apresenta, visita a Escola Secundária de Celorico de Basto. É recebido como o "bom filho que a casa torna".

Fonte: BECA

Afonso Silva - formado entre os postes

Afonso chega com entusiasmo ao Complexo Desportivo da Universidade do Minho. O estado de espírito correspondeu ao sol que banhava o edifício, mas foi dentro das instalações que mais sorriu. A alegria amplificou-se imediatamente após pôr olhos na baliza. Afinal, mesmo sendo natural de Braga, é entre os postes que se sente em "casa".

Veste uma camisola alusiva aos tempos de tenra idade, nos quais competia ainda no Desporto Escolar. Justifica a escolha, simplesmente por fazer "todo o sentido". "Estou aqui para contar a minha história, como tudo começou. Porque não mostrar uma referência a esse começo?"

Mas antes disso, tempo para tirar proveito do campo. Afonso é o primeiro a levantar-se. Ajeita o bigode, prende a camisola dentro das calças e apressa-se para a baliza. Demonstra que não havia pensado noutra coisa durante todo o dia que não estar entre os postes.

Não se conhece sem uma bola na mão. O seu irmão mais velho, Francisco, praticava a modalidade e fazia questão de partilhar em casa a sua paixão. Inevitavelmente, o "bichinho" pelo andebol adquiriu cedo um lugar cativo na mente do, agora, jogador de 22 anos.

Ter a bola na mão já era princípio adquirido nas brincadeiras de Francisco e Afonso. Já cumpria a função de guarda-redes quando o irmão "queria alguém para defender os seus remates em casa".

Afonso sempre foi o adepto mais assíduo de Francisco, desde os tempos a competir pela escola até à decisão de seguir a rota profissional da modalidade. Hoje, disputa competições europeias com o RK Alkaloid, da Macedónia do Norte. Contudo, para o mais novo dos irmãos Silva, o momento que relembra com mais carinho deu-se no Desporto Escolar.

Como sempre, Afonso marcou presença na bancada. No intervalo, com o campo desimpedido, deixou-se levar pelo atrevimento e desceu para imitar os mais velhos.

O talento era notável já aos nove anos. De tal forma que o treinador do seu irmão convidou-o a experimentar a modalidade. Como o andebol não constava no programa de Desporto Escolar da escola que frequentava, passou a deslocar-se a Maximinos para semear uma importante componente da sua vida.

À frente de muitos outros

O arranque pautou-se pelos moldes do Desporto Escolar. Para muitos, uma porta para, posteriormente, especializar a prática nos quadros federados. Afonso não fugiu à regra.

Não foi, contudo, preciso esperar muito tempo. A qualidade era de tal forma notável que, meses depois, recebeu um convite do ABC Braga para participar num treino. Relembra que "tudo fez sentido". Treinava pela escola no Pavilhão de Maximinos e, quando terminava, vestia a camisola amarela dos academistas, que entravam no campo imediatamente a seguir.

O estudo não era posto de parte. Conviveu sempre em harmonia com o andebol e, por isso, nunca precisou de abdicar de nenhuma das atividades mais importantes da sua rotina.

Estava montado o enquadramento ideal para o guardião evoluir. Horas para aprimorar o engenho nunca eram insuficientes, tanto no trabalho diário como nos momentos "a doer" ao fim de semana. A qualidade das infraestruturas, na sua experiência de treino, "nunca foi um problema". Quanto aos jogos, admite não poder dizer o mesmo. "Alguns pavilhões no Norte não têm as melhores condições."

A chegada tardia à competição federada - comparativamente a muitos colegas que já acumulavam anos de prática - não foi uma desvantagem para Afonso. Todos os momentos a defender remates do seu irmão haviam servido, afinal, para muita coisa.

Enquanto representava as cores da Escola de Maximinos, não viveu muitas experiências vitoriosas. Apenas um dos seus colegas tinha currículo no desporto federado e, quando se deparava com equipas mais experientes, sabia que vencer era tarefa difícil. Nunca aconteceu.

Compreendeu, desde sempre, as diferenças de competitividade entre os quadros federados e escolares. Partilha da opinião de Daniel quanto ao grau de especialização da modalidade, ainda limitado nos duelos entre escolas, do ponto de vista individual e coletiva. Para seu azar, calhou-lhe o "outro lado da moeda", praticamente só com colegas desassociados da competição de clubes.

Mas uma arma, segundo Afonso, nunca faltou: motivação. Nem que fosse para "mostrar aos adversários que não é por jogarem federado que são superiores".

Nunca menosprezou uma troca da camisola do ABC para a da Escola de Maximinos. Sabia, contudo, que "era diferente" - "os objetivos eram outros". No final, a vontade de demonstrar ao olhar alheio que o trabalho realizado era digno de reconhecimento trazia o melhor de Afonso e companheiros.

As memórias que ficam

São já 13 anos de andebol. Tempo mais que suficiente para que a sua mente desenvolvesse um álbum de recordações bem recheado. O de Afonso expõe muitas paisagens diferentes.

O Pavilhão Flávio Sá Leite terá sido o cenário invocado com maior frequência. Foi lá que passou toda a sua formação até ao escalão sénior. Por essa altura, pertenceu a um plantel a caminhar pela Europa fora.

Nesta época, em busca de mais tempo de jogo, regressou a outra casa que o viu crescer: o Pavilhão de Maximinos. Desta vez para tomar conta da baliza do Arsenal da Devesa. É totalista do posto que ocupa. Lidera toda a sua equipa em minutos, num ano marcado pela luta acesa pela subida à primeira divisão.

Afonso ao serviço do ABC Braga. (Fonte: Porfírio Ferreira)

Afonso ao serviço do ABC Braga. (Fonte: Porfírio Ferreira)

Entre camadas jovens, o sonho de representar o clube que o viu crescer e a passagem para o Arsenal da Devesa não restam dúvidas: é do federado que Afonso armazena mais memórias.

Revela-se, contudo, incapaz de esquecer o impacto do Desporto Escolar na sua vida. O "ambiente descontraído e sem pressão" permite uma mais forte união do grupo. "Fiz amizades e acumulei recordações que levo para a vida", afirma.

Afonso e Daniel - dupla para todas as batalhas

Uma amizade floresceu em 2021, que só o andebol tornou capaz.


Juntam-se no pavilhão (como bem estão habituados) para recordar o percurso que partilharam - e que partilham. As câmaras não interferem com a alegre dinâmica, notavelmente consolidada. Assumem uma naturalidade de quem ultrapassou, há muito, a conversa fiada.

Já se conheciam, antes como adversários, sem nunca imaginarem que viriam a passar tanto tempo juntos. Claro está, (quase) sempre com a bola na mão.

O atleta celoricense deslocou-se para Braga com o intuito de representar o histórico ABC, conciliando com uma licenciatura em Engenharia Eletrónica Industrial e Computadores. Afonso estava presente para lhe apresentar "os cantos à casa".

Partilham balneário desde então. Foram três épocas, em conjunto, a vestir de amarelo, mais uma com a camisola do Arsenal da Devesa. Nesses quatro anos, ambos representaram a Associação Académica da Universidade do Minho (AAUM) na competição universitária.

Afonso (12) e Daniel (9) em Podgorica, capital de Montenegro, no Campeonato Europeu Universitário. (Fonte: EUSA Handball)

Afonso (12) e Daniel (9) em Podgorica, capital de Montenegro, no Campeonato Europeu Universitário. (Fonte: EUSA Handball)

À conversa, refletem sobre as alegrias que o Desporto Universitário foi proporcionando. De experiências idênticas surgiram testemunhos bastante semelhantes.

Daniel prefere destacar os triunfos dentro das quatro linhas. Arrecadou, acompanhado do guarda-redes, três campeonatos nacionais, com o último a representar o sétimo "ouro" consecutivo da AAUM em andebol masculino. Além disso, gritaram o nome da academia além-fronteiras, com uma medalha de bronze no Campeonato da Europa de 2023.

Afonso opta por valorizar as relações consolidadas fora de campo. Faz, até, um paralelismo com o Desporto Escolar, pelo "ambiente leve e descontraído que facilitava esse contacto", materializado em conversas, muitas vezes, completamente externas ao andebol.

Fases distantes, mas semelhantes

Já lá vão muitos anos desde a última vez que a dupla disputou um encontro de Desporto Escolar. Surpreendem-se, quase uma década mais tarde, por voltarem a deparar-se com um ambiente desportivo tão amigável, mas, ao mesmo tempo, aguerrido.

Optam por fazer um paralelismo entre estas vertentes desportivas. Daniel, por um lado, mantém-se na componente de jogo. Afonso não altera a narrativa e continua a seguir a sua análise pela rota do companheirismo.

Em julho deste ano, voltarão a representar Portugal nas provas europeias. Desta vez em solo luso, na Covilhã.

Chegar (ou não) além fronteiras

Gustavo Oliveira

São 13:00 e Gustavo já saiu da escola. Vive em Vila Nova de Famalicão, mas, depois das aulas, ruma ao Ginásio Clube de Santo Tirso para treinar ténis. Caminha em direção à entrada com a raquete ao ombro. Fá-lo todos os dias num gesto automático. Há oito anos, pegava nela para jogar na praia com o pai. Não sabia, ainda, que aquela brincadeira se tornaria numa paixão e projeto de vida.

Começou por treinar aos sábados, em Guimarães, mas o talento depressa o levou à competição. Quando o grupo se desfez, encontrou um novo rumo em Santo Tirso.

Fonte: Federação Portuguesa de Ténis

Fonte: Federação Portuguesa de Ténis

A evolução de Gustavo reflete-se nos resultados. Competiu dentro e fora do país. Enfrentou vitórias e derrotas até chegar aos Masters, em que foi destaque entre os oito melhores nacionais.

Em 2024, provou que merecia mais. Voltou para casa com o troféu de campeão nacional de pares. Gustavo confirma que não há título ao qual atribua mais significado. “Pude partilhá-lo com alguém que também vive o ténis como eu”, explica.

Gustavo Oliveira e João Silva após se sagrarem campeões nacionais de pares. (Fonte: Ginásio Clube de Santo Tirso)

Gustavo Oliveira e João Silva após se sagrarem campeões nacionais de pares. (Fonte: Ginásio Clube de Santo Tirso)

O título não mudou a rotina. Com o troféu, não advieram quaisquer mudanças nos treinos. “Pelo contrário”, garante. O primeiro lugar é a motivação para melhorar e “dar tudo” dentro do mesmo rigor que o levou até ali.

Um desporto só para alguns

Fala-se do preço a pagar pelo sucesso. Não é só esforço. Também existem custos associados. Entre roupa de treino, raquetes ou bolas, o ténis “é difícil para quem tem dificuldades económicas”. “Não é um desporto barato”, confirma o atleta.

Conta com os dedos a quantidade de serviços que é necessário pagar num torneio internacional. “Viagens, refeições, estadia, inscrição, cordas, fisioterapia”. Já lá vão seis. Ainda lhe sobram dedos, mas Gustavo remata após a enumeração: “também depende do país, mas são orçamentos caros.”

Por sorte, o pai, que lhe colocou em mãos a primeira raquete, continua a apoiá-lo, assim como a mãe. "Sei que sou um privilegiado. Os meus pais dão o máximo em termos financeiros."

"É muito"

A Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão abate muitas das suas despesas. Reconhece o mérito desportivo de Gustavo e ajuda de alguma forma. Ele apresenta os gastos dos torneios em que participa e lá lhe dão um plafond que, apesar de não cobrir tudo, ajuda. Em Santo Tirso, dão-lhe o dinheiro em mão.

No Ginásio, o aluguer do espaço para treinos passa pela boa comunicação com o treinador. Quanto aos custos, tudo depende dos clubes e dias da semana. Na terra dos jesuítas, treina tranquilamente, apesar do espaço ser muito quente.

Gustavo reforça que os valores elevados muitas vezes não correspondentes às condições oferecidas. Recorda uma situação pela qual passou, em tempos, ao lado de um colega tenista: “uma vez tive que pagar 20 euros para treinar uma hora num campo em terra batida. Treinamos duas horas cada um, portanto, 40 euros a cada. É muito.”

As condições nem sempre são as melhores, o desporto fica caro e é complicado conciliar a vida académica com a de atleta. Gustavo considera-se trabalhador e focado nas suas conquistas, que passam, também, em grande parte, pelos estudos. É bom aluno, mas sente que é impossível, em Portugal, dedicar-se tanto quanto queria.

Tem 18 anos e está a acabar o ensino secundário. O passo seguinte é a faculdade. Visualiza os gastos. Alojamento para estudar fora da cidade natal, propinas, comida e as despesas adicionais que advêm. “É muito.”

O sonho americano

Admira o trabalho feito nos Estados Unidos pela “dedicação ao desporto sem abandonar a escola”. Para o que quer da vida, seria o modelo ideal a ser adotado em Portugal. Mas não vai ser preciso, pelo menos para Gustavo. Ao peito enverga o símbolo da All-Star Recruits USA College Sports - agência que estabelece a intermediação com a universidade. Em breve, estará entre os alunos atletas da Drury University – destino que conquistou com esforço e talento.

Já escolheu o curso: Ciência Computacional de Desenvolvimento de Softwares. Sabe onde vai morar e onde vai treinar. O clube não fica no campus, mas é perto. Com 30 courts à disposição para apenas duas equipas, uma masculina e a outra feminina, Gustavo vai ter a oportunidade de realizar o sonho em Springfield.

Não há apenas um oceano a separar Portugal dos Estados Unidos. Quem é atleta sente as restantes barreiras. “Em Portugal, seria mesmo muito difícil conciliar a vida académica com a desportiva”, confirma. Com treinos bidiários e cinco disciplinas para fazer, Gustavo sente dificuldade. Nos EUA não terá esse problema. As aulas são marcadas em função dos treinos, torneios e competições, para que tudo funcione de forma harmoniosa.

Vai receber a bolsa desportiva, mas também a académica, com as propinas pagas a 100%. Nos Estados Unidos, a componente académica é “tão ou mais importante do que a desportiva”. “Esse foi o conforto que eu precisava para ir para lá. É algo que valorizo”, explicou. Não foi por acaso que escolheu a Drury University. A nível de ensino é “uma universidade que está sempre à frente das outras”.

Sem as bolsas de estudo, “seria impossível” pagar o curso completo. Gustavo não teme em falar de valores. Por ano, vai receber 36 mil dólares (o equivalente a 31.629,60 euros). 22 mil da bolsa académica e 14 mil da desportiva.

Ainda assim, sabe que algo sairá do seu bolso: entre seis e oito mil dólares. São valores tabelados pela universidade, discutidos com os diretores e previamente definidos.

E se não corresponder às expectativas?

“Se não gostar, tenho de fazer a matrícula em Portugal e congelar a de lá”, explica o tenista. Está tranquilo quanto a isso. Conhece alguns casos que já passaram pelo processo. Estão a adorar a experiência e confirmam que “nem se compara” ao país natal. “Dizem que só se corresse mesmo muito mal é que voltariam a Portugal.” Gustavo pensa o mesmo. Sente-se privilegiado por poder ascender a sua carreira escolar e desportiva nos Estados Unidos. “É uma oportunidade única.”

Apressa-se. Já só tem uma hora para treinar. Despe a camisola da agência que fará dele um dos mais de cinco mil atletas com formação nos Estados Unidos. Deixa de lado o relógio de pulso. Quando treina, permite que os golpes na bola se desassociem da velocidade dos ponteiros. Equipa-se e começa o treino. Afinal, só assim mantém o rigor que o levou tão longe.

Luna Nunes - assente em solo luso

O caso de Luna difere por completo do de Gustavo.
O seu sucesso no voleibol foi tanto que teve, também, a oportunidade de jogar nos Estados Unidos.
Mas recusou.

Tinha dez anos quando começou a praticar desporto. O voleibol não surgiu de uma paixão, mas antes de uma recomendação médica. Com dez anos, começou por treinar no escalão adequado à sua idade. Era talentosa. Duas semanas depois, já estava no escalão acima. O percurso começava a desenhar-se depressa.

Tornou-se hábito treinar com as mais velhas. Luna recusa-se a caracterizar esta dinâmica como um bom sinal ou uma boa oportunidade para se sobressair no desporto. Apesar de ter amadurecido, sentiu que não pôde desfrutar da infância. “Não foi uma boa fase”, afirma.

De veste lusitana

Aos 11 anos, surge a convocatória que viria a mudar a sua perspetiva sobre o voleibol, pelo menos em parte. Foi chamada para a seleção nacional. Era muito nova e nem sabia que existia uma seleção de outra modalidade além do futebol. Nesse ano, torceu os pés e não competiu. Nos seguintes, não falhou um jogo.

Luna e equipa no segundo dia do torneio WEVZA 2022 (Fonte: Federação Portuguesa de Voleibol)

Luna e equipa no segundo dia do torneio WEVZA 2022 (Fonte: Federação Portuguesa de Voleibol)

O ambiente no clube não podia ser mais diferente da seleção. Era como se existissem duas versões de si: a Luna que se sentia deslocada e a que se sentia em casa.

No Castêlo da Maia, o clima assentou quando se tornou adolescente, mas continuava a sentir que não pertencia àquele grupo. Na seleção, não foi assim. “Foi das melhores coisas que me aconteceu."

Pelos clubes em que passou, era conhecida como “o mau feitio”. Frustrava-se quando não conseguia atingir os objetivos e isso alterava o seu comportamento. Foi nas amigas de símbolo lusitano ao peito que Luna encontrou colo para momentos difíceis. “Na seleção, ajudaram-me a encontrar o equilíbrio. Ajudaram-me a ver o outro lado do voleibol."

Luna ao serviço do Castêlo da Maia (foto cedida por Luna)

Luna ao serviço do Castêlo da Maia (foto cedida por Luna)

Luna e amigas após se sagrarem campeãs nacionais (foto cedida por Luna)

Luna e amigas após se sagrarem campeãs nacionais (foto cedida por Luna)

Luna e a restante seleção na WEVZA 2021 (foto cedida por Luna)

Luna e a restante seleção na WEVZA 2021 (foto cedida por Luna)

As diferenças entre os clubes e a seleção nacional não se limitavam ao ambiente. As condições de treino distintas também se faziam sentir. Por Portugal, treinava numa escola de teto baixo. Aprenderam a jogar assim. Nos jogos, esse fator ajudava-as a ter vantagem com o controlo do tempo de passe. No Castêlo da Maia, tinham preparador físico e nutricionista para o escalão sénior. Ainda assim, Luna confirma que não há equivalência entre “o confortável de uma seleção e o confortável de um clube”. “Na seleção, tínhamos tudo à nossa disponibilidade."

Em Portugal, "não é bem assim"

Agora com 19 anos e a tirar o curso de Design e Comunicação do Produto, Luna traça o seu caminho. Tem, hoje, a segurança e as certezas que lhe faltavam aos 16 anos, quando recebeu a proposta para estudar e jogar nos Estados Unidos.

Gosta de aventura e não se considera “menina dos papás”, mas aceitar não lhe pareceu seguro. O inglês era a sua maior entrave. “Se eu quisesse aprofundar uma conversa, tinha de pegar no Google Tradutor. Não queria ter que ir buscar uma coisa para aplicar.”

Falha-lhe a memória quanto a detalhes, mas não lhe restam dúvidas sobre a posição dos Estados Unidos quanto ao desporto. “Nos EUA são muito mais toleráveis ao desporto e conciliam os horários de treino com as aulas. Os treinadores falam com os diretores da faculdade sobre isso, para estarem todos em concílio. Aqui não é bem assim”, rematou Luna.

Teve, ainda, duas reuniões com a agência. Falou-se de condições, critérios e valores. Assim como a Gustavo, foi-lhe apresentada uma bolsa de estudos que pagaria 100% dos custos académicos e desportivos. Não confiou. “Parecia tudo um mar de rosas e de certeza que os 100% não eram 100%.”

O cenário parecia ouro sobre azul, mas a atleta preferiu manter-se equipada a vermelho e verde. “Não sabia de nada”, nem sequer que curso seguir no estrangeiro. Não arriscou, assim como a maioria das colegas. Todas receberam a proposta, mas apenas duas aceitaram viver o sonho americano.

Na vida em Portugal, aquela que decidiu manter, a paixão pelo voleibol foi desvanecendo. Com a mesma idade que recebeu a proposta de ir para os EUA, foi chamada para o escalão sénior do Castêlo da Maia. Não gostou e pediu para, finalmente, treinar com pessoas da sua idade. Desceu de escalão e passou a ser juvenil. A partir daí, nunca mais foi convocada à seleção. Despe, então, a camisola dos heróis do mar. Guarda-a na gaveta. O equipamento não voltara a ver a luz do dia e Luna nunca mais sentira amor pelo voleibol.

Ao fim de cada época, dizia que ia desistir do desporto, mas manteve-se quatro anos pelas amizades que tinha na equipa. Em 2024, sai do Catêlo da Maia para se juntar ao Projeto Voleibol Colégio Efanor. Com apenas quatro meses de casa, abandona o vólei em dezembro do mesmo ano. Tornara-se impossível conciliar os horários dos treinos com as aulas. Não está nos Estados Unidos.

Apesar de estar fisicamente bem, sentia um grande desgaste mental. Já não via o voleibol como uma prioridade. Faltava a paixão. Sentia-se obrigada e sem vontade de ir aos treinos. Apesar de tudo, e mesmo com todos os fatores que gritam “não” para o desporto em Portugal, para Luna uma coisa era certa: "se [o ambiente de um clube] fosse o ambiente da seleção, ainda hoje continuaria.”

Escassez olímpica, força individual

Tamila Holub

Foi nas piscinas da Rodovia, em Braga (onde se senta a dar esta entrevista), que Tamila Holub começou a nadar aos nove anos. Agora, depois de duas participações olímpicas, Rio 2016 e Tóquio 2021, a nadadora olha para trás e identifica o momento em que tudo mudou: “foi ali na fase de competição, 11, 12 e 13 anos, que eu comecei a perceber que não sou pior do que os outros, pelo contrário”.

Filha de pais ucranianos, criada em Portugal desde cedo, Tamila guarda com carinho os tempos de formação. Mas foi só em 2015, poucos meses antes das provas no Rio, que os Jogos Olímpicos passaram de sonho vago a possibilidade real. “Faltavam 16 segundos e mesmo assim quis tentar”, conta. Conjugou o ano de exames nacionais com treinos bidiários e conseguiu o apuramento.

O momento em que se apercebeu da magnitude da sua conquista foi simples, mas simbólico e repleto de emoção. A partida contrastava com a tranquilidade de quem, até ali, não se deixava entusiasmar antes de tempo.

Portugal chegou aos Jogos Olímpicos de Paris com orgulho, mas também com limitações que se repetem de ciclo em ciclo. A participação nacional, embora digna, é quase sempre marcada por contingências estruturais. A falta de investimento sustentado, a fraca captação de talentos e um sistema de formação que deixa muitos atletas pelo caminho são assuntos que só aparecem nas nossas telas a cada quatro verões. Mas e no resto do tempo?

Na modesta 20.ª colocação no ranking dos países da União Europeia com mais medalhas conquistadas nos Jogos Olímpicos surge Portugal, atrás de nações com populações significativamente menores, como a Estónia (1,4 milhões de habitantes) e a Eslovénia (2,1 milhões).

Estes números refletem não uma falta de talento, mas sim a ausência de uma estratégia nacional consistente para o desenvolvimento desportivo, capaz de transformar potencial em resultados sustentáveis. Mas não é só isso, é também falta de investimento.

A preparação olímpica exige anos de dedicação e uma rede de apoio que, em muitos casos, não existe. Em Portugal, essa rede é muitas vezes substituída pela vontade individual, pelo sacrifício familiar, por histórias de superação silenciosa. As exceções que se destacam, como medalhas ou finais inesperadas, resultam mais da persistência de alguns do que de um plano coletivo pensado e sustentável.

Tamila Holub é um exemplo claro disso.

Trabalho, sorte e centésimos: a exigência da natação

Para Tamila, estar nos Jogos não é uma conquista divina. “Não diria que é angelical. Conheço tantas pessoas que mereciam e não foram. O que conta é trabalho e sorte”, realça Tamila, lembrando de um amigo seu que falhou o apuramento por apenas 0,03 segundos. Na natação, qualquer detalhe, ou centésimo, pode separar um sonho da desilusão.

O percurso até Tóquio foi exigente, física e mentalmente. Tamila começou cedo com treinos bidiários. Quis sempre mais momentos para evoluir. Mas, após a segunda participação olímpica, o cansaço instalou-se. “A monotonia prevaleceu. É um desporto, infelizmente, monótono e, nos últimos tempos, a chama não estava lá.”

Fonte: Federação Portuguesa de Natação

Fonte: Federação Portuguesa de Natação

Esse desgaste não é exclusivo de Tamila. A nível nacional, sobram exemplos de atletas que abandonam cedo por falta de motivação, reconhecimento ou condições para manter um nível competitivo. Sem apoio psicológico regular, programas de transição ou planos de carreira pós-desportiva, muitos vêem o fim da competição como uma queda abrupta e não como uma nova etapa.

Nessa fase, estava nos Estados Unidos, onde estudava com uma bolsa universitária. O primeiro ano correu bem, com boa estrutura e colegas que puxavam por si. Mas o treinador mudou, a equipa desfez-se e Tamila perdeu o entusiasmo. “Foi como se tivesse voltado aqui um pouco a Braga.”

Regressou antes de terminar o curso.

Ainda assim, reconhece que nos EUA o sistema é mais profissional nos primeiros anos. “O mindset não tem nada a ver. Se fores bom, dão-te tudo. Mas se não fores um Phelps ou uma Ledecky, cortam-te tudo logo ao fim do College.” Uma "lógica agressiva", mas que recompensa o mérito sem hesitação. Carlos Dias reforça que, "nos Estados Unidos, o desporto universitário e social é o maior fornecedor de atletas de elite".

O desafio de formar atletas no país

De volta a Portugal, Tamila olha, agora, para o sistema com espírito crítico. Considera que o país tem talento, mas falta estratégia: faltam mais estágios, mais ações de captação nas escolas e mais ligação entre clubes e instituições de ensino. Defende que a formação deve começar cedo, com projetos integrados e regulares.

O financiamento das federações desportivas difere consoante as necessidades específicas de cada modalidade. O número de atletas por federação e a quantidade de equipas registadas colocam implicações no valor final alocado.

“As crianças desistem cedo porque querem resultados imediatos. Não estão habituadas a pôr esforço em algo durante muito tempo.” A frase resume uma realidade cada vez mais presente nas novas gerações, em que a persistência perdeu espaço para a recompensa rápida.

Este retrato da base desportiva nacional é reconhecido por técnicos e dirigentes, que apontam a ausência de um verdadeiro plano de desenvolvimento contínuo. Faltam mecanismos para manter os jovens motivados entre os escalões de formação e o alto rendimento, bem como incentivos reais para conciliar estudos e desporto. Em muitos casos, o talento esgota-se antes de se transformar em potencial competitivo.

"É preciso mais? Sim. É preciso melhor? Sem dúvida. Mas é preciso que as pessoas digam que 'isto vale a pena!'"
Carlos Dias

Uma nova fase fora da piscina

Hoje, Tamila está em pausa da competição, mas não está parada. Frequenta o mestrado, colabora em projetos e continua atenta ao panorama desportivo. A sua ligação à natação mantém-se mesmo sem treinos bidiários ou metas cronometradas.

A rotina mudou, os objetivos também, mas a disciplina permanece. Para já, vive uma fase diferente, com outras prioridades, mas com a mesma clareza com que sempre nadou: se puder contribuir para mudar algo, não hesitará em fazê-lo.

O desporto é um eixo fundamental social e pessoal. Um meio para incutir valores morais e promover um espírito de comunidade. Se não investirmos nele, corremos sérios riscos de, num futuro a médio e longo prazo, formar uma sociedade fundamentada em valores que não existem.

Com o Desporto Escolar, as preocupações amplificam-se.

Afinal, não se quer apenas formar bons atletas, mas sim bons seres humanos.

Instagram: @desportoescolar.ppj

David Braga

A paixão pela informação acompanha-me há muito tempo. O sentido apurado de "contar histórias" aliou-se à vontade de descobrir o fundamento daquilo com que me deparava. E, desde a primeira experiência no "terreno", cresceu em mim um sentimento de pertença inexplicável. Soube logo que é no jornalismo que devo estar. 

Filipe Lourenço

Escrever e assistir desporto são as duas coisas que mais gosto de fazer nos meus tempos livres. Acredito que o desporto é muito mais do que resultados. É, para mim, a coisa mais importante entre as menos importantes. É isso que procuro transmitir em cada texto. Tenho o sonho de juntar essas duas paixões no meu trabalho profissional.

Maria Costa

Desde cedo soube que a comunicação era o meu caminho. Sempre tive um gosto imenso por expressar-me, quer pela fala interminável, quer pela escrita carregada de sentimento. Sou apaixonada por escrever desde que me conheço por gente e o jornalismo permitiu-me juntar o útil ao agradável. Sei que a comunicação ainda tem muito para me dar.