20 anos de Euro

O ESCUDO
DA MOEDA ÚNICA

O euro veio substituir o escudo há 20 anos, embora o seu aniversário tenha passado despercebido. Muitos afirmam que a moeda única veio estrangular a nossa economia, outros preferem dizer que sem ela não podíamos ter alcançado o desenvolvimento que temos.

É certo que o euro se tem defendido do teste do tempo, mas depois da crise e da austeridade, de uma pandemia e com uma guerra a acontecer, o que fica? O que representou para os portugueses a maior transição monetária de sempre? E será o digital opção?
Talvez sim, mas ainda há questões por responder.


A TRANSIÇÃO AOS OLHOS DE QUEM A VIVEU

"O escudo desapareceu.
Morreu, fez-se-lhe o funeral
e adeus"

Carlos Sarmento Pereira tinha 76 anos quando o escudo caiu. Até ao primeiro dia de 2002, toda a sua vida tinha usado a antiga moeda, e era naturalmente em escudos que falava nas aulas de Contabilidade que deu durante mais de 30 anos. Quando o euro veio então para ficar, a mudança adivinhava-se mais difícil, mas, na verdade, passou ligeira aos olhos do então professor. “Os conteúdos que lecionava sofreram alterações e eu tive de estar pronto para isso, o que acredito que possa ter ajudado à minha adaptação.”

“Mal senti [a mudança]. Na qualidade de professor não podia sentir”
Carlos Sarmento Pereira, ex-docente universitário

Mas não foi só pelas portas do ensino que o euro entrou na vida de Carlos. É também responsável, há mais de 50 anos, pela Casa Pereira das Violas, uma retrosaria centenária localizada em plena Avenida Central, em Braga. No início, refere que havia a necessidade de se fazer “equivalências de valor e toda a gente estranhava isso”, mas com o passar do tempo tudo foi ficando mais fácil. “Todos nós colaborávamos e ajudávamo-nos uns aos outros, ao mesmo tempo que estávamos a ganhar experiência.” Até que “ao fim de 30 ou 60 dias”, afirma, já ninguém pensava em escudos.

Carlos Sarmento, comerciante, viveu a mudança para o euro com "relativa facilidade". | PPJ 20 anos de euro

Carlos Sarmento, comerciante, viveu a mudança para o euro com "relativa facilidade". | PPJ 20 anos de euro

E não era mesmo o único a pensar assim. Lurdes Barroso recorda que não houve um momento em que sentiu efetivamente a mudança: “foi tudo muito imediato”. Tal como Carlos, a alfarrabista de 54 anos – 34 na altura – ensinava Contabilidade, o que a ajudou logo a “tentar pensar em euros e a esquecer os escudos”. Mas admite que foi a idade jovem que pesou mais na equação. “Tinha muito mais acesso à informação do que as pessoas mais velhas; a mentalidade era outra.”

Lurdes Barroso, alfarrabista, elogia a iniciativa da dupla circulação temporária do escudo e do euro. | PPJ 20 anos de euro

Lurdes Barroso, alfarrabista, elogia a iniciativa da dupla circulação temporária do escudo e do euro. | PPJ 20 anos de euro

Para estas pessoas que “resistiam mais” ou que não entendiam ainda a nova moeda, sublinha a “boa ajuda” desempenhada pela dupla circulação do escudo e do euro, que funcionou em Portugal até ao final de fevereiro de 2002. “Para os meus pais, por exemplo, era complicada a conversão, e esse período ajudou bastante a acertar as contas.”

Depois disso, não havia volta atrás, mas a alfarrabista garante que “muita coisa melhorou” com a nova moeda. Dá o exemplo da experiência de viajar. “Ia sempre passar férias fora do país e era muito aborrecida a questão do câmbio, de ter de trocar a moeda. Só por isso foi uma vantagem enorme.”

“20 anos passaram e parece que foi ontem”
Sofia Afonso, livreira

Numa outra livraria da cidade, Helena Veloso e Sofia Afonso lembram também esta facilidade nas viagens, mas a sua experiência foi bem diferente da dos outros comerciantes. Na altura, tinham aberto o espaço há apenas três anos e, por isso, confessam que lhes “soube mal” ter de “reetiquetar os livros todos” e habituar-se a converter os preços. Até o sistema informatizado que já utilizavam lhes deu algumas dores de cabeça.

“Havia muitos preços diferentes”, explica Helena, “sobretudo de livros que vinham do estrangeiro e que o próprio sistema não informatizava com os valores corretos. Certa altura, quando fomos fazer um inventário, apareceram livros a rondar os mil e os três mil euros, livros que, na verdade, custavam apenas três ou 30 euros.”

Helena Veloso e Sofia Afonso, livreiras, ainda encontram etiquetas nos livros com o preço em escudos e em euros. | PPJ 20 anos de euro

Helena Veloso e Sofia Afonso, livreiras, ainda encontram etiquetas nos livros com o preço em escudos e em euros. | PPJ 20 anos de euro

Apesar dos percalços iniciais, a mudança não lhes trouxe preços muito diferentes daqueles que praticavam - salvo algumas exceções. “Houve casos em que um livro que valia 100 escudos passou de repente a valer um euro - aí a sensação [de aumento] foi muito clara.” O que as faz pensar que a introdução da moeda única poderia ter sido mais ponderada.

“O euro acelerou uma atualização com um custo social muito grande, especialmente quando temos uma relação complicada com o desenvolvimento que se torna patente nos anos de crise”, comenta Sofia. “A moeda comum facilitou ainda mais a circulação - era esse o objetivo”, acrescenta Helena, “mas há outros pontos onde a aproximação devia ter sido maior e onde deveriam ter sido tidos em conta países como o nosso, com menos capacidades de se impor”.

“Ficámos sujeitos aos interesses dos outros, quando esses interesses deviam ser comuns.”
Helena Veloso, livreira

Carlos Oliveira, 52 anos, esperava que a mudança “fosse muito pior”, quer para o seu lado “quer para o do cliente”. Há 20 anos, o comerciante de discos de música também não sentiu “muita diferença” em relação aos preços que praticava antes. “O que se vendia até à entrada do euro manteve-se, porque a própria indústria da música teve o cuidado de colocar a margem em euros próxima do valor do escudo.” O que não aconteceu com outros produtos. “No café, por exemplo, notou-se logo essa duplicação”, referindo-se a uma efetiva subida dos preços.

Quadro comparativo de alguns preços em escudos e em euros | PPJ 20 anos de euro

Quadro comparativo de alguns preços em escudos e em euros | PPJ 20 anos de euro

Mas o vendedor de discos prefere guardar outras histórias desta transição. Especialmente as que aconteceram com pessoas “mais velhas'' - as quais, recorda, “não tinham muita noção” do valor do dinheiro. “Lembro-me, por exemplo, que se o preço de alguma coisa era de dez euros, havia pessoas que pagavam com dez notas de dez euros”.

Carlos Oliveira, comerciante de discos de música, afirma que os preços não mudaram muito neste setor. | PPJ 20 anos de euro

Carlos Oliveira, comerciante de discos de música, afirma que os preços não mudaram muito neste setor. | PPJ 20 anos de euro

Ou então comparavam mal as duas moedas. “Como um euro era, sensivelmente, 200 escudos, a primeira reação de muitos foi a de pensar que os preços tinham baixado: ‘então diziam que ia aumentar, mas afinal até baixou - e baixou bastante’.” O que, de facto, não aconteceu, e Carlos lamenta: “o euro dobrou tudo, mas não dobrou os ordenados”.

No final do dia, a maior parte destas dificuldades acabariam por ser resolvidas pela ação pedagógica e de sensibilização de algumas organizações, sobretudo ao nível local. Exemplo disso foi a Associação Empresarial de Braga (AEB), que assumiu na transição para o euro a “preparação dos empresários” e comerciantes, como conta o diretor-geral Rui Marques.

Rui Marques, diretor-geral da Associação Empresarial de Braga, destaca a proatividade de alguns empresários em conhecer a moeda única. | PPJ 20 anos de euro

Rui Marques, diretor-geral da Associação Empresarial de Braga, destaca a proatividade de alguns empresários em conhecer a moeda única. | PPJ 20 anos de euro

“Demos a conhecer aquilo que eram as particularidades da nova moeda, a forma de distinguir as ‘notas boas’ das que eventualmente pudessem ser falsificações, bem como outros problemas que poderiam surgir”. Entre os quais o da atualização dos sistemas, sentido pelas livreiras. “Todos os programas de gestão tiveram de ser convertidos e também se fizeram alterações ao nível dos sistemas de faturação”.

“A dúvida é normal quando se introduz alguma alteração àquilo que é o modo comum de fazer as coisas”
Rui Marques, diretor-geral da Associação Empresarial de Braga

A associação esclarecia, mas havia também empresários que pediam ajuda. “Não só surgiram dúvidas como resistências”, sublinha, “mas, em tudo o que sabíamos, respondíamos e informávamos”. O que, nas palavras do responsável da AEB, permitiu esbater “alguma discrepância inicial” entre o pequeno e o grande comércio e potenciou a atividade das empresas.

“O euro trouxe enormes mais-valias nos negócios”, garante, “sobretudo ao nível do crescimento do comércio intracomunitário. A partir do momento em que passámos a ter esta moeda única, notou-se claramente um crescimento muito significativo do volume de vendas das empresas portuguesas para o exterior e também um aumento no turismo.” Que no caso particular de Braga, “com um potencial turístico muito marcado”, trouxe benefícios mais “evidentes”.

O escudo: uma parte importante do passado

Comum a todas estas pessoas é mesmo a relação que agora têm com o escudo: já faz parte do passado. Alguns até têm moedas e notas antigas guardadas, como é o caso de Carlos Sarmento, mas, tal como elas, a recordação da antiga divisa ficou dentro da gaveta. “Já não penso em escudos nem posso pensar”, afirma o comerciante de 96 anos. “O escudo desapareceu. Morreu, fez-se-lhe o funeral e adeus”.

Para outros, a lembrança da antiga moeda ainda surge de vez em quando, sobretudo na hora de refletir sobre o custo de vida ou de fazer contas ao dinheiro.

“Às vezes faço esse exercício”, diz Helena Veloso. “Quando chego à padaria e vejo que um pão custa 2,50€, por exemplo, fico a pensar: 2,50€ eram 500 escudos, e pagar 500 escudos por um pão, na altura, era impensável. Com esse valor quase dava para pôr gasolina no carro”. Lurdes Barroso acrescenta. “O meu marido, que tem a minha idade, ainda fala muito em contos, sobretudo quando quer comprar coisas mais caras. Eu já não.”


A CHEGADA DA MOEDA ÚNICA NA COMUNICAÇÃO SOCIAL

"Tornámos o euro uma prioridade"

O euro chegou e trouxe consigo muitas certezas, mas também muitas dúvidas. As iniciativas locais ajudaram a comunicar e a esclarecer sobre a moeda única, mas foram sem dúvida os meios de comunicação que, de uma forma geral, desempenharam esta tarefa com grande rigor.

Da televisão à rádio, passando pelos jornais e atravessando o domínio público ou privado dos média, a cobertura jornalística que se fez em Portugal sobre a chegada do euro foi bastante intensa e variada.

“O euro era incontornável - estava em todo o lado.”
Margarida Neves de Sousa, jornalista

Margarida Neves de Sousa, jornalista, lembra que a adaptação ao euro não foi fácil para quem vivia mais isolado. | PPJ 20 anos de euro

Margarida Neves de Sousa, jornalista, lembra que a adaptação ao euro não foi fácil para quem vivia mais isolado. | PPJ 20 anos de euro

“Naquela altura, o jornalista foi, de facto, o motor da informação”. Margarida Neves de Sousa, que em 2002 trabalhava para a RTP, recorda-se vivamente da responsabilidade que sentia ao falar da nova moeda, especialmente porque tinha consciência de que “estava realmente a esclarecer” as pessoas.

“Acima de tudo, acalmámos muitas dúvidas e receios ao tentar ajudar as pessoas a perceber melhor o que viria a ser o euro, porque elas também confiavam em nós”. O maior desafio, no entanto, era alcançar toda a gente. “Eram outros tempos”, admite, “em que tentávamos fazer com que a informação chegasse a cada casa, aos 10 milhões de portugueses, mas havia pessoas que não tinham os acessos [necessários]”.

Há 20 anos, chegar aos meios de comunicação – e até mesmo à educação - não era, de facto, para todos. “Havia muitas pessoas que o máximo que conseguiam fazer era assinar o próprio nome”, num país em que, segundo estima a Pordata, o analfabetismo atingia cerca de 800 mil pessoas no ano da introdução do euro.

Viviam sobretudo no “interior empobrecido”, como caracteriza a atual jornalista da CNN Portugal, “onde trabalhavam no campo e não tinham acesso à escola”. No fundo, “estavam longe”, sublinha. “Longe dos centros urbanos, da informação e do entendimento do que seria passarem a fazer as contas de uma maneira completamente diferente”.

“O euro foi uma revolução para estas pessoas.”
Margarida Neves de Sousa, jornalista

Foi sobre e para estas pessoas que Margarida decidiu então falar. Longe do euro é o nome de uma das reportagens que produziu para a televisão pública e que ilustra, precisamente, as dificuldades sentidas por quem estava mais isolado. “Algumas pessoas nem sabiam o nome da moeda, quanto mais o que ela valia”. O que resultava, não poucas vezes, em burlas. “Havia quem fosse a casa de idosos para supostamente trocar-lhes os escudos pelos euros, mas depois enganavam-nos.”

A informação fidedigna, por outro lado, acabava por chegar de várias maneiras. “Lembro-me de uns folhetos que circulavam nas ruas com a fotografia das notas e o respetivo valor, a fazer corresponder o escudo ao euro”. Ou então eram as crianças que ensinavam em casa o que aprendiam na escola, já que o euro passou a ser contemplado nos manuais. “Foram um importante veículo de transmissão da informação para as casas”.

“Havia uma preocupação quase pedagógica, uma missão que se mantém no jornalismo de hoje”
Rita Siza, jornalista

Na cidade do Porto, Rita Siza também acompanhou a mudança da moeda enquanto jornalista. Mas a atual correspondente do Público em Bruxelas, que na altura já trabalhava para o jornal, obteve testemunhos bem diferentes. "As pessoas andavam todas com cábulas e calculadorazinhas, mas a ideia com que fiquei dos trabalhos que fiz é que a maior parte da população estava bem informada."

"Todos sabiam o que ia acontecer e do que se tratava o euro”. Isto porque a moeda única era “tema de conversa diário” – e os média também contribuíram para que isso acontecesse.

Da secção de economia, Rita recorda as “reuniões exaustivas” para preparar a cobertura sobre a nova moeda. “Toda a redação contribuía” com ideias, desde os vox pops - “onde se perguntava às pessoas, por exemplo, se sabiam quanto ganhariam em euros” - até aos “trabalhos diários”, que retratavam de uma forma geral a preparação para o “dia zero”, o dia em que os portugueses deixariam definitivamente o escudo.

Rita Siza, jornalista, saía à rua para testar os conhecimentos das pessoas sobre a moeda única. | PPJ 20 anos de euro

Rita Siza, jornalista, saía à rua para testar os conhecimentos das pessoas sobre a moeda única. | PPJ 20 anos de euro

Em Lisboa, Paulo Pinto dava os primeiros passos na carreira jornalística quando o euro chegou. Lembra-se da “operação especial” na passagem do ano, que fez para a Rádio Renascença, e do primeiro dia - “chuvoso” por sinal - de 2002. “Estava um dia muito desagradável, mas fui fazer reportagem para a rua. Vi o primeiro contacto físico das pessoas com a moeda, tentando perceber como faziam os levantamentos no multibanco”.

Paulo Pinto, jornalista, sublinha o contraste entre a "euforia" com o euro nas cidades e a "desconfiança" nas aldeias. | PPJ 20 anos de euro

Paulo Pinto, jornalista, sublinha o contraste entre a "euforia" com o euro nas cidades e a "desconfiança" nas aldeias. | PPJ 20 anos de euro

“Os portugueses têm uma grande apetência pela novidade”
Paulo Pinto, jornalista

Mas a euforia que se fazia sentir um pouco por todo o lado na capital contrastava, de facto, com a vivência da aldeia. Em Quintã de Jales, concelho de Vila Pouca de Aguiar - a terra natal de Paulo - as pessoas mostravam-se bastante desconfiadas com a nova moeda.

“As pessoas lá da minha aldeia achavam que isto ia correr tudo muito mal, que ia ficar tudo muito caro e que ninguém se ia conseguir entender com as alterações da moeda”, o que levou a fazerem-se algumas campanhas de informação “muito específicas” para a população, mais idosa. “Estando na cidade, havia informação por todo o lado - era constante na rádio, na televisão e nos próprios jornais.”

António Tavares, em Ponte de Lima, já não tinha essa facilidade. O animador da rádio local Ondas do Lima não esquece as horas que passou à procura de fontes “muito variadas” para informar corretamente os seus ouvintes, que se dividiam no sentimento em relação à moeda única. “Havia pessoas mais eufóricas porque naquele momento passaríamos a ‘estar na Europa’ e poderíamos transacionar com uma mesma moeda.”

António Tavares, animador de rádio, criou um programa para ajudar os seus ouvintes a entender melhor o euro. | PPJ 20 anos de euro

António Tavares, animador de rádio, criou um programa para ajudar os seus ouvintes a entender melhor o euro. | PPJ 20 anos de euro

“Por outro lado, havia as pessoas mais conservadoras que se mantinham reticentes”. Um comportamento que o locutor justifica pelo “significativo défice de literacia financeira” na região e pela "falta de envolvimento” com as instituições da Europa. “Ainda hoje é difícil estabelecer uma ligação direta com os órgãos decisores, como as comissões do Parlamento Europeu”.

“As pessoas sentiam-se algo revoltadas; não estavam a encarar o euro com naturalidade”
António Tavares, animador de rádio

Perante a necessidade "muito grande" de informação sobre a nova moeda, António decidiu então criar A Voz da Europa, um programa onde apresentava as decisões tomadas ao nível do euro pelas altas entidades europeias. A prioridade “era levar até aos ouvintes a informação”, que provinha de fontes como o Banco de Portugal e as representações europeias sediadas no país, para “preparar para o impacte que viria com a efetiva transição da moeda”.

No programa, participavam vários “representantes máximos” das entidades europeias em Portugal, que ajudavam a esclarecer as dúvidas de quem os ouvia. Um trabalho que o animador hoje reconhece como fundamental. “Consegui criar uma ligação de informação mais facilitadora e fluente e, assim, fazer perceber às pessoas a função da moeda e aquilo que Portugal beneficiaria com esta adesão”.

Já aquilo que o país perderia com o euro ficou por explicar. Isto porque os “riscos de ter uma moeda única só vieram a materializar-se mais tarde”, explica Paulo Pinto. De facto, nos anos anteriores à entrada do euro, a maioria dos partidos com assento parlamentar era a favor da mudança - à exceção do PCP e do CDS-PP - embora, mais tarde, “toda a gente" tenha falado da desvalorização dos salários e da competitividade. “As pessoas achavam que a partir daquela altura seria tudo ótimo”. Mas sabe-se que não foi bem assim.

O entretenimento que foi também informação

A jogar também se aprende: e, na transição para o euro, isto foi uma realidade. Há 20 anos, era preciso simplificar as contas, tornar a relação com a moeda mais fácil, e nada melhor do que aprender passando, ao mesmo tempo, um bom bocado.

Provavelmente já não se lembra, mas foi isto que fez o conhecido programa de televisão O Preço Certo, atualmente apresentado por Fernando Mendes, que em tempos já teve outra cara e outro nome. O Preço Certo em Euros estreou a 11 de fevereiro de 2002 e, até ao ano seguinte, Jorge Gabriel foi o rosto do concurso que, segundo a RTP, pretendia “informar sobre os preços de mercado e sobre novos produtos, com uma vasta lista de jogos especialmente criados para o euro”.

'Preço Certo em Euros' nas palavras de Jorge Gabriel

Uma aposta da estação pública que, segundo o apresentador, não podia ter sido mais natural. “A transição estava a ocorrer e os portugueses tinham de se adaptar o melhor possível à nova moeda. No fundo, era um serviço público que estávamos a prestar com entretenimento.” E, estando a conduzir o programa, também Jorge Gabriel aproveitou para se “adaptar”.

O que no início começou com algumas dificuldades, porque as pessoas “insistiam em fazer as suas avaliações em escudos”, rapidamente se tornou um sucesso, acabando por “conciliar” as pessoas com a nova realidade. “Conforme avançava o programa, notámos uma perceção gradualmente mais clara do euro face ao escudo”. Até que ao fim de cinco anos de emissão, já com Mendes ao comando, O Preço Certo voltou à sua imagem original - a “dose certa” para Jorge Gabriel.

“As pessoas já estavam preparadas para lidar com a nova ordem monetária.”
Jorge Gabriel, apresentador de televisão

“Com esta versão do programa, a RTP fez o que era suposto: serviço público”. Um investimento que o atual apresentador da Praça da Alegria destaca também pela “entrada horária assinalável” do euro noutros programas da estação. “Embora todas as televisões tenham tido iniciativas e campanhas de introdução do euro, a RTP só pode estar orgulhosa do exemplar trabalho que fez”.

Margarida Neves de Sousa, por sua vez, recorda a “prioridade” informativa que a estação pública deu à chegada da moeda única em programas distintos. “Tínhamos o Grande Informação, o Telejornal e o Jornal da Tarde, mas também o País, País, que juntava o trabalho de várias delegações concentradas em localidades mais interiores". Para a jornalista, “o retrato real do país”.


O QUE O EURO MUDOU EM PORTUGAL E NA EUROPA

"A circulação da mesma moeda
é um elemento de proximidade
entre os países"

“O escudo circula, mas já não existe; o euro existe, mas não circula”. Era este o cenário a poucos meses da entrada do euro quando o então Governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, disse estas palavras na conferência Campanha de Informação - Euro 2002. Naquela altura, muitos portugueses já sabiam da existência da moeda única, mas poucos tinham a consciência de alguma vez ter contactado diretamente com ela.

É certo que, desde o final da década de sessenta, já se planeava o que seria a "moeda da Europa", mas apenas se passou do papel à realidade no dia 1 de janeiro de 1999, quando o euro foi lançado para efeitos de contabilidade e pagamentos eletrónicos. Por essa razão, a moeda única começou a mudar o país e a Europa bem antes de chegar aos bolsos das pessoas.

Francisco Veiga, professor catedrático de Economia na Universidade do Minho, não podia estar mais de acordo - e explica porquê. “O habitual para um país é ser o banco central nacional a gerir a política monetária, mas esse instrumento de política macroeconómica deixou de estar ao dispor das autoridades portuguesas a partir de 1999, o que é uma alteração muito significativa”.

Francisco Veiga, economista, defende que Portugal aderiu "cedo demais" à moeda única. | PPJ 20 anos de euro

Francisco Veiga, economista, defende que Portugal aderiu "cedo demais" à moeda única. | PPJ 20 anos de euro

Por isso não hesita em afirmar que houve uma “perda” de autonomia monetária, algumas vezes “prejudicial” para o país. “Em situações de crise, por exemplo, até dava algum jeito [Portugal] ter o controlo da política cambial”. No entanto, salienta também pontos fortes da adesão, tais como “a eliminação de muitos custos de transação, uma maior transparência dos preços, a redução do risco cambial para as empresas” e ainda a entrada para uma área monetária “de grande dimensão”. O que, segundo o especialista, ajudou na “concretização do mercado único” europeu.

“Há agora uma maior proximidade entre o processo da União Europeia e o cidadão comum”
Ana Paula Brandão, doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais

Ana Paula Brandão, doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais, acredita que o euro ajudou a reforçar a "união política" entre os países aderentes. | PPJ 20 anos de euro

Ana Paula Brandão, doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais, acredita que o euro ajudou a reforçar a "união política" entre os países aderentes. | PPJ 20 anos de euro

Do ponto de vista político, Ana Paula Brandão salienta que o facto de passarmos a pertencer a um espaço de circulação de uma mesma moeda foi “um elemento de proximidade entre os países”. A investigadora e professora de Ciência Política destaca sobretudo a “comodidade” da moeda única para os cidadãos dos 19 países aderentes (até à data). “O facto de termos uma moeda que circula num espaço tão amplo e significativo de Estados é, naturalmente, um aspeto de facilidade, principalmente nas deslocações”.

Mas nem tudo foi um mar de rosas. Com a adesão ao euro, a professora universitária afirma que Portugal perdeu também alguma da sua “relevância política”. Apesar de “consciente e voluntária”, considera que a decisão de “prescindir-se da política monetária e cambial” - e, como tal, de parte da “soberania do Estado” - expôs ainda mais a economia portuguesa “comparativamente mais frágil”.

Ainda assim, deixa uma nota positiva. “Temos sempre a oportunidade e o lugar para defender os interesses nacionais através dos nossos representantes, em sede de instituições como o Conselho Europeu, entre outras”.

Sobre a maneira como o euro foi desenhado, os dois especialistas também têm uma palavra a dizer. Ana Paula Brandão destaca um “layout pensado pelas e em função das grandes economias”, como a Alemanha e a França. E que, apesar de ter introduzido alguns “elementos de flexibilização”, acabou por trazer à luz “grandes assimetrias” entre os países aderentes.

Francisco Veiga vai mais longe ao afirmar uma união monetária “incompleta”, notando a ausência de uma união bancária e de um “mecanismo europeu de garantia” do género de um emprestador de última instância. “Se há problemas no sistema bancário de um país ou se algum banco vai à falência, por exemplo, a responsabilidade de resolver as situações recai sobre as autoridades do próprio país”.

“Falta-nos um verdadeiro mecanismo de estabilidade ou de apoio para ajudar países que estejam em crise de forma quase automática”
Francisco Veiga, economista

Fazendo as contas, ambos concordam que estes 20 anos com o euro nos trouxeram bons resultados, mas que se podia ter avançado mais em algumas questões. Para o professor de Economia, é difícil perceber se o balanço é positivo ou não, já que considera que Portugal aderiu “cedo demais” à moeda única.

“A nossa economia não estava suficientemente preparada para ser competitiva num quadro de absoluta estabilidade cambial”. O que acredita ter condicionado o desenvolvimento económico do país, que mesmo hoje se mantém “na cauda” da Europa. “Boa parte dos países tem um PIB maior do que o nosso, isso é deprimente”, lamenta - e destaca que países como a Irlanda “já nos passaram à frente”.

Para a especialista em Ciência Política, pelo contrário, os “ganhos” são mais evidentes do que as “fragilidades”. “Penso que [o euro] foi positivo para Portugal em todas as dimensões, pois nunca conseguiríamos o que conseguimos se estivéssemos fora”. Mas não deixa de salientar que há “grandes desafios” a cumprir, especialmente os que já estão em vias de ser implementados: a união bancária, a reforma “adequada à diversidade das economias nacionais europeias” e o reforço da união política.

Outros parecem mais distantes, sobretudo quando apontam para uma “dimensão supranacional”. Porque “basta um Estado estar contra para não haver unanimidade”, explica Ana Paula Brandão, o que dificulta o progresso de algumas propostas. Ainda assim, mantém-se otimista. “Os contextos críticos têm sempre uma dupla dimensão: se por um lado têm efeitos negativos no plano político, económico e social, são também janelas de oportunidade para a mudança”.

Mudar de moeda não é fácil, mas o Banco de Portugal esteve lá

Primeiro os réis, depois os escudos e finalmente os euros. Há mais de 170 anos que o Banco de Portugal (BP) vê passar moedas, mas cada mudança é diferente e traz os seus desafios. A transição para a moeda europeia não podia ser exceção e o banco central nacional assumiu neste período um importante papel de liderança.

Uma ação que, apesar de tudo, “não diferiu muito” do que já se fazia com o escudo, explica o diretor-adjunto do Departamento de Emissão e Tesouraria da instituição, Pedro Paredes. “Com a chegada do euro, o emissor legal deixou de ser o BP e passou a ser o Banco Central Europeu, através de todos os 19 bancos centrais nacionais, mas somos nós quem ainda colocamos as moedas em circulação” - ou seja, o emissor físico.

Pedro Paredes, do Banco de Portugal, salienta a "maior responsabilidade" que a instituição assumiu com o euro. | PPJ 20 anos de euro

Pedro Paredes, do Banco de Portugal, salienta a "maior responsabilidade" que a instituição assumiu com o euro. | PPJ 20 anos de euro

“O BP continua a ter outras funções: substituímos as notas que já se encontram degradadas e acompanhamos o fenómeno das contrafações”
Pedro Paredes, Banco de Portugal

Mas ao contrário do que se podia esperar, o Banco de Portugal passou a ter com o euro “muito mais controlo” do processo monetário. Apesar de se tratar de uma “moeda partilhada”, o banco central português começou a produzir as notas de euro que circulam no país. “O que não acontecia com o escudo”, comenta o responsável, em que “a moeda era nossa, mas não éramos nós quem produzíamos as notas”.

No domínio da emissão também se notaram mudanças. A partir de 2002, as regras para o processamento e a escolha das notas passaram a ser “tendencialmente uniformes em todos os países do Eurosistema”, a autoridade monetária que junta todos os bancos centrais nacionais da zona euro. O que quer dizer que, por exemplo, o Banco de Portugal passou a ter de emitir apenas as séries de notas autorizadas pelo Banco Central Europeu - como é o caso da série “Europa”.

Com estas novas responsabilidades, o BP conseguiu assim delegar algumas operações noutros parceiros. Mas também por isso, Pedro Paredes garante que foi necessário passar a exercer “mais autoridade” através de uma maior “regulação e controlo”. “Com o euro, já não é apenas o BP quem processa notas; outras entidades, como os bancos ou empresas de transporte, passaram a poder fazê-lo por forma a alimentar as ATMs [máquinas “multibanco”] de forma autónoma.”

“Desde que temos o euro, os nossos níveis de inflação são muito baixos”
Pedro Paredes, Banco de Portugal

Mas, afinal, a entrada do euro foi positiva na vida dos portugueses? O funcionário do Banco de Portugal diz que sim. “A moeda única veio facilitar as viagens e os câmbios associados a elas”, sublinha, não esquecendo também que hoje,mesmo utilizando os cartões bancários noutros países, não pagamos comissões de processamento”.

Esse foi um “ganho imediato”, admite, “tanto para as pessoas como para as empresas que, sem risco cambial, vivem com mais segurança”. E recorda ainda a descida das taxas de juro e da inflação, que apenas aumentou ligeiramente quando a moeda única começou a circular e “pontualmente em alguns produtos” - retoma o exemplo do café.

“Já o mesmo não se podia dizer do escudo”, o que, para Paredes, reforça ainda mais a convicção de que o euro é uma “moeda estável”. Apesar das recentes crises, mostra-se confiante para os próximos anos, que deixam antever “mais mudanças”.

Assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia por Mário Soares - 1985 | Alfredo Cunha / Lusa

Assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia por Mário Soares - 1985 | Alfredo Cunha / Lusa

Ex-ministro das Finanças de Portugal, António de Sousa Franco (ao meio), no Conselho dos Assuntos Económicos e Financeiros - 1998 | Serviço Europeu de Audiovisual

Ex-ministro das Finanças de Portugal, António de Sousa Franco (ao meio), no Conselho dos Assuntos Económicos e Financeiros - 1998 | Serviço Europeu de Audiovisual

Para se familiarizar com o euro, a população em geral teve a oportunidade de adquirir kits de euro nos bancos - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Para se familiarizar com o euro, a população em geral teve a oportunidade de adquirir kits de euro nos bancos - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Cartoon humorístico sobre o euro - 2002 | PPJ 20 anos de euro

Cartoon humorístico sobre o euro - 2002 | PPJ 20 anos de euro

O Euroconversor desempenhou um importante papel no auxílio das conversões entre escudos e euros | PPJ 20 anos de euro

O Euroconversor desempenhou um importante papel no auxílio das conversões entre escudos e euros | PPJ 20 anos de euro

Cartaz ilustrativo do euro, produzido pela Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Monetários da Comissão Europeia - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Cartaz ilustrativo do euro, produzido pela Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Monetários da Comissão Europeia - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

'O balão de ar quente do euro'. Reunião especial da Comissão sobre a introdução do euro - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

'O balão de ar quente do euro'. Reunião especial da Comissão sobre a introdução do euro - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Ministros europeus da Economia e das Finanças, por ocasião da fixação das taxas de conversão do euro - 1999 | Serviço Europeu de Audiovisual

Ministros europeus da Economia e das Finanças, por ocasião da fixação das taxas de conversão do euro - 1999 | Serviço Europeu de Audiovisual

'Monopólio' em euros - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

'Monopólio' em euros - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

"Euro-escultura" por Ottmar Hörl (Frankfurt, Alemanha) | Bruno Neurath Wilson

"Euro-escultura" por Ottmar Hörl (Frankfurt, Alemanha) | Bruno Neurath Wilson

Item 1 of 10

Assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia por Mário Soares - 1985 | Alfredo Cunha / Lusa

Assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia por Mário Soares - 1985 | Alfredo Cunha / Lusa

Ex-ministro das Finanças de Portugal, António de Sousa Franco (ao meio), no Conselho dos Assuntos Económicos e Financeiros - 1998 | Serviço Europeu de Audiovisual

Ex-ministro das Finanças de Portugal, António de Sousa Franco (ao meio), no Conselho dos Assuntos Económicos e Financeiros - 1998 | Serviço Europeu de Audiovisual

Para se familiarizar com o euro, a população em geral teve a oportunidade de adquirir kits de euro nos bancos - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Para se familiarizar com o euro, a população em geral teve a oportunidade de adquirir kits de euro nos bancos - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Cartoon humorístico sobre o euro - 2002 | PPJ 20 anos de euro

Cartoon humorístico sobre o euro - 2002 | PPJ 20 anos de euro

O Euroconversor desempenhou um importante papel no auxílio das conversões entre escudos e euros | PPJ 20 anos de euro

O Euroconversor desempenhou um importante papel no auxílio das conversões entre escudos e euros | PPJ 20 anos de euro

Cartaz ilustrativo do euro, produzido pela Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Monetários da Comissão Europeia - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Cartaz ilustrativo do euro, produzido pela Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Monetários da Comissão Europeia - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

'O balão de ar quente do euro'. Reunião especial da Comissão sobre a introdução do euro - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

'O balão de ar quente do euro'. Reunião especial da Comissão sobre a introdução do euro - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

Ministros europeus da Economia e das Finanças, por ocasião da fixação das taxas de conversão do euro - 1999 | Serviço Europeu de Audiovisual

Ministros europeus da Economia e das Finanças, por ocasião da fixação das taxas de conversão do euro - 1999 | Serviço Europeu de Audiovisual

'Monopólio' em euros - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

'Monopólio' em euros - 2001 | Serviço Europeu de Audiovisual

"Euro-escultura" por Ottmar Hörl (Frankfurt, Alemanha) | Bruno Neurath Wilson

"Euro-escultura" por Ottmar Hörl (Frankfurt, Alemanha) | Bruno Neurath Wilson


PARA UM FUTURO DIGITAL, UM EURO DIGITAL

"Os bancos centrais, criando eles próprios uma moeda digital, estão a minorar infortúnios"

CBDC. Quatro letras apenas traduzem uma ideia ainda desconhecida para a maioria das pessoas: Central Bank Digital Currency (em português, moeda digital emitida por um banco central). Mas mesmo que nunca tenha ouvido falar dela, esta sigla tem definido, desde os últimos quatro ou cinco anos, o foco do Banco Central Europeu (BCE), que pretende tornar o euro uma moeda digital sem que esta deixe de ser controlada pelo Eurosistema.

José Gusmão é vice-presidente da Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários no Parlamento Europeu e, logicamente, está a par deste projeto. “O euro numa forma digital, pelo que se prevê, continuará a chegar às pessoas através dos bancos centrais”. Por isso, não deverá mudar a relação que já temos com a moeda. “É simplesmente a concretização de uma ideia”, garante, “alinhada com as mudanças que temos vivido relativamente à maneira como é transacionado o dinheiro - mesmo sem euro digital, grande parte das nossas transações já são eletrónicas”.

Um argumento bastante usado por quem fala sobre o projeto, que, na opinião do eurodeputado, “passa por dar uma imagem mais moderna” à moeda única. Ainda assim, um euro digital não seria só “fachada”, pois há vantagens a considerar. “Os baixos custos de transação”, por exemplo, e o facto do euro digital “dispensar, em princípio, a intermediação das instituições financeiras”, como os bancos.

“Os conceitos de moeda digital e criptomoeda são frequentemente confundidos.”
José Gusmão, eurodeputado

José Gusmão, eurodeputado, defende que o euro digital só fará sentido se estiver ao alcance dos cidadãos. | PPJ 20 anos de euro

José Gusmão, eurodeputado, defende que o euro digital só fará sentido se estiver ao alcance dos cidadãos. | PPJ 20 anos de euro

Mas se pensa que a versão digital do euro funcionaria como as criptomoedas, desengane-se. Apesar de que o projeto “ganhou força” com o aparecimento destas moedas virtuais, José Gusmão explica a diferença. “As criptomoedas vão contra o mecanismo de criação de dinheiro, já que a ideia é não ter nenhuma relação com uma entidade pública, com os bancos centrais.”

O euro digital, por outro lado, estaria “associado a uma moeda que existe e que tem uma cobertura pública transnacional”. O que, apesar de tudo, não deixa de ter riscos. “Com o euro digital vamos precisar de uma regulação mais estreita do sistema financeiro”, esclarece o eurodeputado. Até porque “grande parte da circulação do dinheiro passou a ser feita através de instrumentos digitais e é preciso controlar isso”.

O que pensam as pessoas sobre o euro digital?

Nesta discussão, há outra portuguesa mais diretamente envolvida. Teresa Mesquita não queria acreditar quando soube, em outubro de 2021, que tinha sido escolhida para integrar o Grupo de Trabalho de Alto Nível sobre o Euro Digital. “Achei que podia dar o meu contributo no projeto do euro digital, por isso candidatei-me para fazer parte da equipa… e fiquei.”

Com mais de 15 anos de experiência à frente de projetos financeiros e atualmente no quadro executivo da SIBS - a empresa que gere a rede Multibanco - Teresa passou a fazer parte de um grupo restrito de 30 gestores que, neste momento, debatem o desenho e a distribuição da possível moeda digital europeia. “No projeto estou em nome individual, mas também represento o nosso país.”

“É algo que as economias mais desenvolvidas estão a fazer neste momento”
Teresa Mesquita, conselheira do BCE para o euro digital

Mais do que uma alternativa às criptomoedas, cuja proteção ao consumidor destaca como “reduzida”, Teresa Mesquita considera que o projeto levanta questões mais altas. “É uma forma de inclusão financeira, pois ainda há pessoas que não têm relação com o sistema financeiro - não têm, por exemplo, contas bancárias. Esse é um desafio importante”.

Teresa Mesquita, conselheira do BCE para o euro digital, é a única participante portuguesa no debate institucional sobre este instrumento. | PPJ 20 anos de euro

Teresa Mesquita, conselheira do BCE para o euro digital, é a única participante portuguesa no debate institucional sobre este instrumento. | PPJ 20 anos de euro

E deixa claro o objetivo da moeda digital. “Seria uma oferta digital do euro complementar às notas e moedas. Quando as pessoas usam menos o dinheiro físico, o BCE explora formas de continuar a prestar serviço”. O que exclui, à partida, que o euro físico venha a ser substituído inteiramente pelo digital.

Mas será que as pessoas vão usar o euro de uma forma virtual? Não há uma resposta clara. “Essa é uma questão que ainda não está completamente definida”. A conselheira esclarece, no entanto, que “os casos de uso priorizados serão os pagamentos de e-commerce (pagamentos eletrónicos), no ponto de venda, pagamentos entre pessoas e para governos.”

“O euro digital tem de ter utilização prática e a sua utilidade será ditada pelas pessoas”. José Gusmão concorda com isso. “Só faz sentido uma moeda digital se as pessoas puderem deter essa moeda diretamente”. Mas, mesmo assim, o eurodeputado sublinha que “estamos numa fase especulativa” e que “há coisas que só vai ser possível perceber quando o BCE partilhar o que quer fazer”.

A verdade é que o projeto encontra-se desde outubro de 2021 em fase de investigação, que só deverá estar concluída em setembro ou outubro de 2023. Entretanto, vão-se pensando algumas questões que têm de ser resolvidas para dar confiança aos utilizadores do euro, como é o caso da privacidade.

“Essa é uma grande prioridade do BCE”, afirma Teresa Mesquita. “Embora ainda sem formatos definidos relativamente a esse tema, o euro digital será certamente um instrumento com grande nível de restrições em termos de utilização da informação.” Mas alerta: “daí a ser anónimo, vai uma certa distância”.

O combate à iliteracia digital é outro dos temas que estão a ser tratados pelo grupo de trabalho. “Esta questão é extremamente importante e desafiante, sobretudo para os mais velhos” - já que existe novamente um “risco crescente de burlas” no mundo digital.

O problema, admite, “não está na falta de ações, mas antes no seu alcance”. E, para resolver isso, sublinha o papel dos média. “Talvez só através dos meios de comunicação mais generalistas será possível concretizar e fazer chegar a informação”.

O euro tem futuro no contexto digital?

Com a possibilidade de digitalizar o euro em cima da mesa, parece não haver problema, para já, com o futuro da moeda. Mas nem tudo é assim tão linear, e José Gusmão insiste que devemos considerar um cenário maior. “No que diz respeito ao papel futuro do euro na economia mundial, a questão da moeda digital pesa pouco. São os alinhamentos económicos reais que vão determinar, no futuro, o peso de cada moeda.”

Os especialistas corroboram esta ideia. “Uma moeda não vive num espaço vazio”, diz Ana Paula Brandão. E Francisco Veiga remata. “Na medida em que a digitalização facilite as trocas entre os agentes económicos, isso é bom para a economia. E se continuar a haver um controlo por parte dos bancos centrais, registando devidamente as transações, isso também é benéfico para os governos, porque quantas mais transações são informatizadas, mais impostos se cobram.”

Mas no meio de todo este xadrez de interesses, a posição das pessoas tem de ser salvaguardada. Somos nós quem utilizamos a moeda, sem nós ela não existe. Com ou sem euro digital, o que importa é que a moeda única não deixe de nos continuar a servir - e não o contrário.

Agradecimentos

Hugo Manuel Correia
Representação da Comissão Europeia em Portugal
Banco de Portugal – Departamento de Comunicação e Museu
SIBS – Gabinete de Comunicação e Sustentabilidade

Aos 16 entrevistados, pela importante colaboração e testemunhos.
Aos professores Luís António Santos e Maria João Cunha, pela orientação e pelo apoio indispensáveis na realização desta reportagem.