A Cultura entra
em Cena
Os efeitos da pandemia no sector

Espectáculo #VensDeCarrinho de Pedro Abrunhosa - imagens: Estúdio 33 Drive in
Espectáculo #VensDeCarrinho de Pedro Abrunhosa - imagens: Estúdio 33 Drive in
"A cultura declara o país aberto"
Face à chamada "nova normalidade", a cultura tem encontrado soluções criativas para retomar os espectáculos, pretendendo, desta forma, salvar um sector fortemente afectado pela pandemia. Após mais de dois meses de confinamento por força da Covid-19, a cultura voltou a "dar música" ao país.
No dia 23 de maio, em Ansião, no distrito de Leiria, Pedro Abrunhosa voltou a pisar um palco, em formato drive in. Num parque de estacionamento, o músico reuniu uma pequena multidão de carros num espectáculo a céu aberto. Com respeito (ou quase) pelas novas regras impostas pela Direcção Geral de Saúde (DGS), tanto o artista como os fãs sentiram, de novo, a emoção dos espectáculos ao vivo.

Concerto #vensdecarrinho- by Estúdio 33
Concerto #vensdecarrinho- by Estúdio 33
Já antes disso, a 1 maio, Cuca Roseta, numa versão portuguesa do famoso trem eléctrico brasileiro, percorreu com os seus músicos as ruas de Lisboa. Num verdadeiro palco sobre rodas, sempre em movimento, a fadista quis, com a iniciativa "Cidade à janela" ( que integra o movimento Portugal entra em cena), quebrar o isolamento social ocasionado pela pandemia e animar a população emocionalmente afectada. Desde as varandas ou janelas, os lisboetas confinados desfrutaram do concerto da artista.
No dia 1 de junho, as salas de espectáculo nacionais tiveram a autorização para reabrir, mediante certas restrições. A estreia dos espectáculos ao vivo fez-se no Campo Pequeno com o espectáculo DEIXEM O PIMBA EM PAZ. Ainda no rescaldo do seu estrondoso sucesso no Instagram com o #comoéqueobichomexe, que chegou a juntar mais de 170 mil seguidores, Bruno Nogueira esgotou a sala com Manuela Azevedo.

Cartaz Deixem o pimba em paz
Cartaz Deixem o pimba em paz
Após ter celebrado o seu 105º aniversário online, o Theatro Circo, de Braga, reabriu as suas portas ao público para um concerto ao vivo na noite de 18 de Junho.

Regras de segurança do Theatro Circo
Regras de segurança do Theatro Circo
Cerca de uma centena de pessoas, espalhada pela sala devido à distância de segurança obrigatória, assistiu à celebração do 10º aniversário da banda Birds Are Indie. Dada a pouca afluência (condicionada pelas regras da DGS) a plateia foi brindada com um serão "intimista".
Uma das particularidades foi o facto de todas as portas da sala de espectáculos estarem abertas, fazendo com que os bracarenses, do lado de fora do Theatro Circo, pudessem desfrutar da música que provinha do palco.

Reabertura do Theatro Circo, em Braga, pós- confinamento (by Isabel Moura)
Reabertura do Theatro Circo, em Braga, pós- confinamento (by Isabel Moura)
Para marcar o arranque da nova realidade, o festival "Regresso ao futuro", no dia 20 de junho, agendou 24 actuações em 24 teatros de norte a sul do país (21 cidades).

Cartaz do festival Regresso ao futuro
Cartaz do festival Regresso ao futuro
O organizador do evento, Vasco Sacramento, referiu à Rádio Comercial ser este festival "desenhado para, como o próprio nome indica, festejar o regresso aos palcos e esta reabertura das salas de espectáculos. Mas por outro lado, com uma perspetiva de futuro, [é importante] passar uma mensagem ao sector cultural: de resiliência e de esperança em tempos menos conturbados do que aqueles que estamos a viver".
Também a reabertura da Ópera de Barcelona, a 22 de junho, teve direito a uma noite de estreia em que a casa de ópera do Gran Teatre del Liceu esgotou, mas com público pouco comum: 2292 plantas na plateia. Em comunicado, a organização declarou que pretendia "oferecer uma perspetiva diferente para o regresso às actividades", aproximando o público de "algo tão essencial quanto o relacionamento com a natureza".

Inusitada plateia para a Ópera de Barcelona Daniel Guinart
Inusitada plateia para a Ópera de Barcelona Daniel Guinart

Arte confinada

Mas nem só de música vive a cultura. A dança, a pintura, o teatro, entre outras artes têm-se reinventado e tirado partido da internet para chegar aos seus públicos.
"Tem sido um momento de grande generosidade e de grande criatividade para encontrar novas formas de comunicação cultural e artística", disse Maria Calado, directora do Centro Nacional de Cultura (CNC), à TSF, quanto às inúmeras manifestações culturais que se têm visto na internet e nas redes sociais.
Museus do mundo inteiro ofereceram visitas virtuais às suas salas. O Louvre, o MoMa, o museu Van Gogh ou Musée d'Orsay foram alguns dos que disponibilizaram as suas colecções online para combater o isolamento e promover o acesso à cultura.
Aberto somente para visitas virtuais, entre 12 de março e 22 de maio, o Louvre recebeu cerca de 10,5 milhões de visantes, quando no ano completo de 2019 tinha recebido 14,1 milhões.
A artista plástica e professora de pintura, Patrícia Ferreira, aproveitou o confinamento para, através das redes sociais, lançar um desafio semanal aos seus alunos: refletir sobre determinado tema e "dar-lhe uma forma visual". As obras foram sendo expostas no facebook do atelier, enquanto "galeria gratuita e sem horários". "O facebook está invadido de criatividade e é o que me está a salvar por estes dias", diz a artista que acredita que "ao passarmos este filme dantesco, as pessoas vão valorizar, outra vez, a arte".
Patrícia Ferreira lança desafios artísticos online
Foi através do seu canal de Youtube que o ilustrador, actor e contador de histórias Pedro Seromenho chegou ao público mais jovem.
O artista, através da leitura/ interpretação de contos infantis da sua autoria, despertou as crianças para esta forma de arte.

Atentos ao conto- from facebook do ilustrador
Atentos ao conto- from facebook do ilustrador
Para os amantes da literatura ou do cinema, plataformas online disponibilizaram acesso livre a vários conteúdos. Aliás, mesmo pós quarentena, a editora Leya e a Amazon ainda permitem o download gratuito de ebooks.
Mas para os fiéis ao papel, a recém-criada RELI – Rede de Livrarias Independentes, lançou as acções “Livraria às Cegas” e “Fique em Casa”, procurando, simultaneamente e num espírito colectico entre as livraria associadas, oferecer serviços personalizados e promocionais aos seus clientes e manter em movimento o negócio dos livros para fazer face à actual conjuntura.
Nem a dança ou o teatro deixaram de marcar presença online durante esta quarentena.
Peças de teatro foram sendo oferecidas por vários teatros portugueses, nomeadamente o Teatro Aberto e o Teatro D. Maria II, tendo este último mantido o programa D.Maria II em casa até à reabertura (que se deu nos dias 20 e 21 de Junho).
O encenador Rafael Rodrigues acredita que a cultura seja "a alma de um povo". "Numa altura em que todos nos sentimos limitados no acesso à cultura, a transmissão de programas culturais é, sem dúvida, de extrema importância, promovendo não só o acesso gratuito a todos mas servindo também como veículo de entretenimento e de enriquecimento pessoal."
Salas fechadas e pessoas confinadas remeteram a dança às quatro paredes de casa, mas isso não desanimou os bailarinos, professores e escolas de dança que inovaram e multiplicaram as aulas de dança online. Ainda com limitações, esta alternativa tem sido o recurso para a sobrevivência de muitos.


Longe dos holofotes

A pandemia veio reforçar a precariedade dos trabalhadores das artes
Com milhares de espectáculos cancelados, adiados ou suspensos em Portugal por causa das medidas de contenção da epidemia da Covid-19, o impacto económico no sector revela-se desastroso. Nem só os artistas são afectados. Existe toda uma indústria atingida pelos efeitos da crise pandémica.
Manuel Gama, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) e co-coordenador do Observatório de Políticas de Comunicação e Cultura do CECS admite que "a contaminação do sector cultural pela Covid-19 está a revelar-se dramática um pouco por todo o mundo". "Em Portugal, aos constrangimentos provocados pelo inesperado da situação, acrescem as debilidades estruturais que se têm traduzido de múltiplas e variadas formas ao longo dos anos", acrescenta.
Um espectáculo, quer seja de dança, música ou teatro não vive só dos artistas que dão a cara, corpo e voz no palco. Existe toda uma indústria por detrás da cortina. São produtores, encenadores, realizadores, mas também técnicos de som, de luz, roadies, maquilhadores, cabeleireiros, apelidados várias vezes de "inivisíveis" mas cuja presença física é imprescindível.
A maioria desses técnicos não possui sequer contrato de trabalho, estando apenas ligados por um contrato de prestação de serviços- os recorrentes "recibos-verdes" (em muitos casos, "falsos recibos verdes"). Devido a essa condição, os apoios do Estado durante a pandemia foram praticamente inexistentes, deixando muitos destes trabalhores em situações precárias.
"Invisíveis" encontram-se sem rendimentos e sem ajudas do Estado
Jorge Buco, técnico de backline de Sérgio Godinho e Rita Redshoes, entre outros, conta 42 concertos cancelados. Está sem trabalho ou rendimento desde março e sem qualquer previsão de retoma. "Talvez em julho", espera, mas "incerteza" é a palavra de ordem. A viver em casa dos pais, com a mulher, que se encontra de baixa, e os dois filhos menores, valem as pequenas pensões do pai e da baixa da mulher para resistirem.
O músico recorreu a vários apoios, nomeadamente da Segurança Social (S.S), da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação Gulbenkian. Porém, o único apoio que irá receber provem da Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA) enquanto direitos conexos relativos à sua carreira anterior de músico durante 17 anos.
"Como técnico, o apoio é inexistente". Com uma profissão não reconhecida, Jorge vê-se obrigado a emitir recibos enquanto músico. Confessa ainda que o "dinheiro amealhado praticamente já foi" e que não sabe quanto tempo aguenta na situação atual.
Em situação semelhante encontra-se Rute Brissos, uma das raras mulheres que trabalha como técnica de som e em freelance, em Portugal. Também ela pediu os apoios a que recorreu Jorge Bucco. De todas as tentativas, contou apenas com 290€ em março e 560€ em abril, da S.S. O último dia de trabalho foi a 5 de março e as perspectivas de retoma são inexistentes. Admite ainda a possibilidade de que colegas mais jovens, em início de carreira, estejam "a passar fome" e tenham de "recorrer a bancos alimentares".
Face aos recursos sem respota, alguns técnicos ou artistas chegam a vender instrumentos para conseguirem sobreviver, como nos contou o músico Tuniko Goulart. Dos 68 concertos que tinha agendado para o ano, Tuniko viu metade deles ser cancelada. Desses cancelamentos, o músico recebe zero.
Tuniko Goulart elenca concertos cancelados
Mas Tuniko já se estreou nos palcos após o confinamento obrigatório, já que foi um dos músicos que acompanhou Cuca Roseta no seu concerto itinerante pelas ruas de Lisboa. O músico, que adorou passar mais tempo em casa, em família, encara este confinamento como "um bom momento de reflexão que veio sacudir os conceitos, os títulos e os pseudo-nomes".
Hugo Carriço, técnico de iluminação numa empresa e operador freelancer de bandas ao vivo, assume-se como um "privilegiado" relativamente a muitos dos seus colegas. Apesar de ter sofrido uma "forte queda" nos seus rendimentos, o técnico ainda recebe um salário (mesmo que reduzido) oriundo do lay-off do seu contrato de trabalho. Porém, Hugo conhece situações de colegas que, "desde o primeiro mês, se depararam com grandes dificuldades".
Prova da precaridade destes profissionais foi a postura assumida pela fundação de Serralves que, logo no início das medidas de distanciamento social, a 16 de março, descartou trabalhadores do serviço educativo da instituição que se encontravam em prestação de serviços, bem como todos os técnicos externos responsáveis pela montagem das exposições, sem qualquer aviso prévio, no próprio dia em que a instituição suspendeu actividade.

Trabalhadores precários manifestam no Porto, by Salomé Leal
Trabalhadores precários manifestam no Porto, by Salomé Leal
O mesmo ocorreu com a Casa da Música, no Porto, que dispensou funcionários que se manifestaram contra a perpetuação da precariedade laboral. Tal postura levou ao repúdio da decisão e boicote do espaço por parte de vários artistas e particulares, como foi o caso de Manuel Cruz, membro da antiga banda Ornatos Violeta.

Post do Facebook de 19 de junho do artista Manuel Cruz
Post do Facebook de 19 de junho do artista Manuel Cruz
Promotores, realizadores e encenadores vêem os seus projectos cancelados
Com a decisão do Governo de cancelar todos os festivais até final de setembro, o promotor João Carvalho (NOS Primavera Sound e Vodafone Paredes de Coura), viu-se, a contra-gosto, obrigado a adiar os dois festivais para 2021.
Os cancelamentos ocasionados por esta"desgraça", como o promotor apelidou a pandemia, gerou vários prejuízos uma vez que "já se foram pagando alguns adiantamentos a bandas, investindo em comunicação e na própria estrutura do festival". Nem o "festival dos afectos" (Paredes de Coura)", que o promotor, no início da quarentena tinha esperança de ver realizado em Agosto, irá acontecer este ano.
A Covid-19 "apanhou o sector completamente descalço", confessa João Brilhante, promotor cultural. Se numa primeira fase a esperança residia em adiamentos, rapidamente a palavra de ordem foi "cancelar", tendo um "impacto gigante tanto na indústria como no pequeno artista que ficou sem trabalho ou recurso a lay-off". Brilhante lamenta o facto de a "cultura não ser uma prioridade para o Governo" e mostra-se preocupado com a "falta de confiança" que possa existir na população em voltar às salas de espectáculo.
"Existem pessoas que ficaram sem rede."
Também Pedro Neves, realizador, produtor e documentarista, se questiona sobre a confiança e sobre o "tempo que será necessário para as pessoas voltarem aos sítios". De um dia para o outro, a agenda do cineasta ficou vazia, com reuniões desmarcadas, viagens e festivais cancelados e ainda rodagens adiadas.
Confinado a casa, na impossibilidade de filmar, diz que a única coisa que poderia fazer seria escrever, "embora sinta os níveis de concentração estarem muito estranhos". "Os trabalhos futuros estão, no mínimo, suspensos" lamenta Pedro Neves.
O cineasta mostra-se preocupado com o ramo, nomeadamente quantos aos chamados "recibos verdes" já que vê "muitas pessoas deixadas para trás" com os fracos apoios concedidos pelo Estado para a cultura. Existe, segundo o documentarista, "pessoas que ficaram sem rede."
Rafael Rodrigues, encenador, estava igualmente cheio de trabalho. Em cena com a peça "Eu... Variações" e em ensaios não só de uma nova comédia como também para as marchas de Lisboa. Naturalmente, "todos os espectáculos do "Eu...Variações" foram cancelados, assim como a apresentação das Marchas populares em 2020, tendo os projectos dos respectivos bairros transitado para 2021 mas sem que tenham sido liquidados quaisquer valores relativamente a este ano."

Rafael Rodrigues- foto cedida pelo próprio
Rafael Rodrigues- foto cedida pelo próprio
Quanto aos reagendamentos, Ana Fernandes, da Associação Portuguesa de Empresas de Congressos Animação Turística e Eventos (APECATE) fala em "falsos adiamentos porque o custo da oportunidade nunca irá ser recuperado", mas que dá a ideia de continuidade que pretende cativar o cliente.



A "união faz a força"

Acções solidárias, movimentos e manifestações marcam luta dos trabalhadores da cultura
O cancelamento dos espectáculos privou toda uma classe de trabalho e, consequentemente, de rendimentos. Face às dificuldades económicas, os profissionais da cultura uniram-se, levantaram a voz e manifestaram na rua.
A crise que assolou o ramo levou os profissionais da cultura e em particular os "invisíveis" a organizarem-se e a entreajudarem-se. Para fazerem face às dificuldades financeiras, nasceram vários grupos de ajuda alimentar, alguns deles com foco local, como é o caso da União Audiovisual.
Embora tenha começado com um pequeno grupo de Facebook, em Lisboa, a União Indivisual cresceu e as contribuições chegam já a mais de 1200 pessoas, espalhadas por Setúbal, Porto, Alentejo, Algarve e Açores. A incerteza temporal relativamente ao fim da procura desses bens de primeira necessidade faz com que os grupos se mantenham activos indeterminadamente, espalhando pequenos núcleos de ajuda por todo o país.

Cartaz União Audiovisual
Cartaz União Audiovisual
"Eu criei esse grupo, juntamente com alguns colegas, porque percebemos que havia muitos [colegas], logo no primeiro mês, que não tinham dinheiro para comprar bens essenciais. Inicialmente nós criámos o grupo de forma a que as pessoas que precisassem de ajuda publicassem no grupo de Facebook e, localmente, a malta organizava-se e ajudava essa pessoa", contou Hugo Carriço, fundador da União. .
Com o tempo e com a subida do número de despedimentos e cortes salariais neste sector, são muitos os profissionais que temem o futuro. "Estou sinceramente a preparar-me para não trabalhar este ano", explica Hugo Carriço. Jorge Buco, membro da União, menciona que, para além dos audiovisuais, este grupo já se alargou a "todos os que vivem da Cultura", como maquilhadores, actores, etc.
Face às dificuldades dos seus técnicos, alguns artistas tomaram a iniciativa, a título individual, de realizar concertos solidários online em que solicitavam a "colaboração" dos seguidores. As receitas destinavam-se exclusivamente aos técnicos. Tiago Bettencourt criou o encontro semanal "Tiago na toca", no Instagram, que continua a realizar-se pós-confinamento.

Cartaz Tiago na toca
Cartaz Tiago na toca
Com o mesmo objectivo de limitar o impacto e auxiliar os profissionais das artes afectados pela pandemia, também as receitas de bilheteira do festival "Regresso ao futuro", que ocorreu em 24 teatros nacionais, reverteram para o Fundo de Solidariedade para a Cultura, criado pela Audiogest (associação que representa produtores musicais) e pela GDA.
"Não cancelem a Cultura!"
No dia 9 de Abril, mais de 1600 autores, artistas e profissionais do espectáculo decidiram subscrever uma carta aberta endereçada a António Costa, à Ministra da Cultura Graça Fonseca e a todos os deputados da Assembleia da República.
A mensagem era clara: "Não cancelem a Cultura!". Eram, nesse sentido, pedidas medidas urgentes e excepcionais de apoio à cultura: para além da criação de um fundo de emergência, exigiam a garantia que as entidades públicas contratantes procedessem a pagamentos no caso de cancelamento ou adiantamento de preços acordados e se estabelecesse um prazo para o reagendamento dos espectáculos ou eventos e que os valores pagos a título de adiantamento ou pagamento parcial fossem distribuídos pela cadeia de valor aos profissionais.
Poucos dias depois, nos dias 19 e 26 de abril, reuniram-se várias estruturas representativas do sector, formais e informais, nomeadamente a GDA, o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE) ou Precários Inflexíveis. Do encontro saiu a clara afirmação de que estavam unidas e empenhadas em dialogar para encontrar as medidas urgentes necessárias a implementar neste panorama de emergência, mas consideravam fundamental agir com responsabilidade cívica, não deixando o futuro para trás.
Nasce, assim, o movimento #unidospelopresenteefuturodaculturaemportugal, ao qual imediatamente aderiram artistas nacionais e cujas fotografias referentes ao movimento invadiram o Instagram. A 3 de junho, o colectivo foi recebido, em Belém, pelo Presidente da República.
“Parados, nunca calados”
"Apesar de atravessarmos um momento mau, acaba por ser pertinente no que toca a lutar pelos direitos relativamente aos audiovisuais em Portugal, que não existem. A profissão não é reconhecida. As leis laborais são nulas" diz a técnica de som Rita Brissos. Por esse motivo, alguns sindicatos convocaram protestos e manifestações no sentido de ouvirem uma resposta do Governo relativa aos efeitos da pandemia na cultura.
O CENA-STE, por exemplo, saiu à rua no dia 4 de junho, em Lisboa e no Porto, para denunciar a falta de condições para a reabertura de muitas salas de espetáculos. Dizem estar “parados, nunca calados” e que “este é o momento de reforçar a unidade e a luta", afirmando "com clareza" aquilo que pretendem para "a cultura e os seus trabalhadores".











Em comunicado, o CENA-STE explica que, “num sector em que domina a precariedade”, os efeitos da pandemia “são catastróficos e à medida que o tempo passa, sem que sejam tomadas medidas de emergência e de fundo, as consequências são cada vez mais devastadoras e auguram um efeito prolongado sobre a vida dos profissionais e sobre a cultura”.
Segundo um inquérito realizado pelo sindicato, na segunda quinzena de março, 98% dos trabalhadores dos espectáculos viram trabalhos cancelados. Em um terço, este cancelamento prolongou-se por mais de 30 dias, o que soma um total de perdas - apenas neste período e relativo a quem respondeu ao inquérito (1300 respostas) - de dois milhões de euros. 85% destes trabalhadores são independentes, não dispondo de qualquer proteção laboral. Um novo inquérito está actualmente a decorrer no site do sindicato.
Em 30 de abril, o sindicato apresentou propostas de intervenção no sector cultural em resultado da pandemia, nomeadamente a criação de um verdadeiro fundo de emergência social, medidas de retoma pós- confinamento e medidas de reforma de âmbito geral e sectorial-nomeadamente através do reforço do orçamento de Estado para a cultura (atribuição de 1%).
Uma das grandes e antigas reivindicações dos artistas portugueses é a aprovação do Estatuto dos Intermitentes do Espectáculo à semelhança do que existe em França. O objectivo é permitir que artistas e profissionais do ramo sem emprego possam, também eles, auferir de subsíduo de desemprego em caso de inactividade. Em final de maio e após ter reunido com vários profissionais da área, a Ministra da Cultura prometeu legislação até ao final do ano- estatuto que vem sendo debatido desde 2007.
O dirigente do CENA-STE, Rui Galveias, deixou à Renascença ainda algumas preocupações face às regras definidas pela Direção-Geral de Saúde relativamente à abertura de salas de espectáculo e cujo parecer foi remetido à Ministra da Cultura. O dirigente sindical afirma que, em muitos casos, não há dinheiro para cumprir estas medidas: “pode haver salas que não têm condições para fazer os espectáculos porque podem não ter forma de abrir e garantir que existem todos os materiais que são necessários para a higienização”.
Por outro lado, preocupa-o que “as medidas de contingência desaparecem quando se entra no palco e isso é um bocado estranho”. Ou seja, “parece que há um acto de magia: quando se entra em palco já não há risco de contágio e entregam os trabalhadores da Cultura à sua sorte” .
Medidas emergentes da pandemia
Sentindo-se desamparados, os artistas, técnicos e outros intervenientes do sector da cultura aguardam uma posição por parte do Governo. Esperam medidas emergentes que os protejam perante as consequências da crise que se anuncia.
De acordo com a Associação de Promotores de Espectáculos, Festivais e Eventos (APEFE), desde meados de Março e até ao final de Abril foram cancelados, suspensos ou adiados cerca de 27 mil espectáculos (contagem de bilhetes pagos). Quem trabalha a recibo verde fica, assim, numa situação particularmente vulnerável.
A luta e as reivindicações dos trabalhadores da cultura foram muitas e vivas, assim como as iniciativas para suprir as dificuldades que foram surgindo durante o estado de emergência.
Que medidas foram, efectivamente, implementadas para os trabalhadores da cultura?
Em resposta aos apelos dos profissionais da cultura, e após a suspensão do festival TV Fest, o Governo lançou o movimento Portugal #entraemcena.

Campanha Portugal entra em cena
Campanha Portugal entra em cena
Portugal entra em cena é "um movimento nacional, materializado em plataforma digital, onde os artistas podem lançar ideias e recolher investimento para a sua fase de concepção e desenvolvimento, e onde empresas e entidades, públicas e privadas, podem lançar desafios e receber propostas artísticas, escolhendo as que pretendem remunerar já", como se pode ler nas declarações do Ministério.
Muitas foram as entidades que já "entraram em cena": a seguradora
Fidelidade patrocinou o concerto itinerante de Cuca Roseta; a Vodafone tem 100 mil euros para apoiar músicos portugueses, entre outras parcerias.
O violento impacto na actividade levou ainda a GDA a criar um Plano de Emergência de Apoio aos Artistas (AARTE) que "consubstancia um pacote de medidas que se destina a funcionar em complementaridade ou de forma subsidiáaria, com os diversos programas, públicos ou privados que já estão ou estarão em curso", como se pode ler no site da GDA.
O objectivo principal do plano AARTE é "fazer chegar o mais rapidamente possível alguns recursos aos artistas".
Para além de um Fundo de emergência, no montante de um milhão de euros, foi criado o cartão de compras para bens essenciais, cujas novas inscrições decorrem de 26 de junho a 6 de julho.

Cartão GDA
Cartão GDA
Segundo a GDA, a primeira fase do Apoio Cartão de Compras, que findou no dia 5 de maio, resultou numa "onda de solidariedade entre os cooperadores, uma vez que demonstraram prontidão na ajuda financeira aos seus colegas de profissão."
No dia 4/6/2020, o Governo apresentou o Programa de Estabilização Económica e Social (PEES), que prevê "o quadro de intervenções que garantam uma progressiva estabilização nos planos económico e social, sem descurar a vertente sanitária", que inclui medidas para a cultura:

Sendo esta uma crise global, nem só sector cultural português ficou afectado. Medidas para a Cultura foram tomadas por toda a Europa.
Que futuro para a cultura em Portugal?
"A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda"
Perante a pandemia instalada por causa da Covid-19 e as dificuldades de todo um ramo, o estado da cultura tem sido fortemente debatido. A falta de medidas estruturais e consistentes por parte do Estado gera a incerteza dos seus actores quanto ao futuro.
Os resultados do projecto de investigação de Manuel Gama Impactos da COVID-19 no setor cultural português: Resultados preliminares de março de 2020 "não são muito animadores sobre a situação que o sector está a experienciar e evidenciam que o vírus está a paralisar o sector cultural em Portugal".
O investigador admite que " se não forem tomadas medidas urgentes, substantivas e estruturantes, o sector cultural português poderá sofrer danos irreparáveis fruto da pandemia", como o " agudizar da precarização" e "um incremento no desemprego de profissionais do sector cultural que tinham contratos de trabalho".
Sobre o futuro das artes e da cultura, a directora do CNC, Maria Calado, disse à TSF que é necessário pensar e agir sobre a utilização de novas áreas que podem ser "desafios" para levar as pessoas a "participar mais em actividades culturais".
O festival "Oeiras Ignição Gerador", que decorreu inteiramente online, na plataforma Gerador, reuniu, entre 18 e 20 de junho, mais de 40 personalidades da cultura e das artes num programa que incluiu conversas, debates, masterclasses, apresentações, performances e concertos.
Naquele espaço virtual, reflectiu-se e debateu-se a cultura e a criatividade, nomeadamente, a forma de fazer cultura no futuro.

A plataforma Gerador, onde se desenrola o festival, conhecida como sendo um espaço de acção e comunicação para a cultura portuguesa, concebeu um estudo sobre a percepção da cultura em Portugal (Barómetro Gerador Qmetrics) que permite entender a evolução e a regressão da cultura em Portugal.
Segundo refere o estudo do Gerador, 80% da população portuguesa considera que o orçamento de Estado para a cultura em 2020 deveria aumentar. Isto porque, segundo a mesma investigação, 94% dos portugueses defendem que "uma sociedade evoluída deve investir mais em cultura".
Serão a internet, as redes sociais e as novas tecnologias impulsionadoras da cultura? Serão as iniciativas online alternativas aos espectáculos ao vivo? E de que forma?
Para Ana Fernandes, da APECATE, "não pode ser expectável que os eventos se tornem virtuais. O virtual deve usado como um recurso e não como norma". Anabela Mota Ribeiro, quanto a ela, defende que os computadores e os telemóveis são, acima de tudo, ferramentas de trabalho que, para ela, "não se transformaram, ainda, em lugares de recriação".
Mas a procura desenfreada às redes sociais, nomeadamente ao instagram relativamente ao fenómeno Bruno Nogueira, suscita muitas interrogações. Será aquele espaço apropriado para a partilha da arte habituada às televisões e aos grandes ecrãs?
Aníbal Zola, músico que deu vários concertos online durante a quarentena, tem consciência de que, apesar de utopicamente defender que "a arte deveria ser grátis", no mundo actual é necessário encontrar "uma solução para a indústria se manter sustentável".
Segundo o artista, a internet tornou a música "mais democrática no sentido de se poder mostrar, mas é preciso proteger a indústria para as pessoas terem um ganha pão." Grutera comunga dessa ideia defendendo que a rede pode servir a causa dos artistas "se souberem monetarizar os concertos, se tiverem alguma inteligência de não disponibilizarem todos e mais alguns conteúdos free na internet, porque senão todo o trabalho que temos vindo a fazer de consciencialização de que a cultura deve ser paga, e tem que ser paga para existir, vai por água abaixo".
Até porque, como adianta o encenador Rafael Rodrigues, o online não pode ser a solução porque não permite "o controlo de quantos pessoas estão, de facto, a assistir. Assim, o 'ingresso' de uma pessoa é suficiente para exibir para uma comunidade inteira, se assim o entenderem."
Por outro lado, esta alternativa (pagamento de ingresso online) afigura-se "viável" para o promotor João Brilhante, que se justifica com o sucesso dos concertos propostos pela Fundação Gulbenkian e pela filarmónica de Berlim durante o confinamento.
Vislumbrando-se uma longa quarentena, os artistas portugueses tomaram consciência de que os concertos deviam deixar de ser gratuitos, sob pena de a actividade deixar de ser sustentável. Até mesmo Graça Fonseca, Ministra da Cultura apelou a classe a suspenderem a gratuitidade dos espectáculos online com receio para o futuro do sector.
Assim, vários artistas começaram a "cobrar ingresso" online, indicando os seus iban´s para transferências. À distância de um clique (e de uma transferência), o público pôde assistir aos espectáculos: uns com um objectivo solidário para com instituições; outros solidários para com os próprios técnicos que estão, também eles, a passar necessidades.
Os irmãos Sobral foram dos primeiros a lançar mão dessa ferramenta, mas as críticas negativas foram rápidas e numerosas nas redes sociais. Parcerias com marcas também se destacaram como forma sustentável de fazer arte online. Ana Moura e Carolina Deslandes foram exemplos de artistas que usufruíram dessas parcerias, enquanto que artistas com menos visibilidade ficaram de parte.
"Incerteza" foi a palavra mais usada pelos artistas, técnicos, colaboradores e intervenientes da cultura para definir o seu futuro. O processo de habituação à cultura digital abarca uma adesão e apoios que os artistas não dão como garantidos. O desaparecimento de algumas estruturas ligadas a este ramo e o consequente aumento do número de precários e/ou desempregados deixa a descoberto o mais fulcral pilar da existência de cultura: o público. Em declarações ao programa "Da Capa à Contracapa" da Renascença, Catarina Requeijo, encenadora, considera que o problema não vai ser resolvido enquanto houver esta “vontade de fazer manobras de diversão como se as pessoas não tivessem pensamento crítico para perceber que por detrás disto nunca tomaram uma atitude consistente com visão política”.
“Não está tudo bem. Não se pede a um atleta com uma perna partida para correr a maratona. Primeiro tem que se engessar a perna, fazer fisioterapia a seguir, perceber se os músculos recuperaram e só então pedir que se corra a maratona”, confessa Catarina. Num futuro obrigatoriamente próximo, há milhares que esperam medidas no sentido de preparar os artistas para novos palcos, novos públicos e novas formas de fazer arte. Que futuro para a Cultura em Portugal?
“A cultura não regressou, é propaganda” - Catarina Requeijo



Quem somos?


Isabel Moura
Isabel Moura

José Silva Brás
José Silva Brás

Salomé Martins Leal
Salomé Martins Leal
Fotografia
(por ordem alfabética)
Daniel Guinart: No separador "Palcos reinventados", a imagem da Ópera de Barcelona.
Estúdio 33: imagens do concerto Drive in de Pedro Abrunhosa
Isabel Moura: No separador "palcos reinventados", imagens do concerto do Theatro Circo; capas dos separadores"Bastidores"(longe dos holofotes) e "medidas"; "fundo" do painel redes sociais.
Nicolas Rizzon: No separador "União e Luta", a imagem People holding hands, do banco gratuito de fotos da Canva.
Patrícia Ferreira: No separador "Arte confinada", obra Circo 2- O Acrobata
Salomé Leal: No separador "Bastidores", imagens dos precários; imagens da manifestação dos profissionais da cultura, no Porto.
Vítor Ferreira:
* Imagem de CAPA (Frankie Chavez);
* Separador "Arte confinada": capa-Companhia de Dança Contemporânea de Évora- CDCE), 1a fotografia (Marta Ren ) e 3a (CDCE);
* Separador "Bastidores": Paredes de Coura e Rita Ribeiro;
* Separador "Futuro": capa (Bienal de Arte de Cerveira) e restantes (Viana bate forte e Frankie Chavez).
(Entrevistas realizadas durante o período de confinamento obrigatório derivado da pandemia Covid-19, através da plataforma zoom).
Junho de 2020