Da tranquilidade da mesa à incerteza do futuro
A gastronomia está a mudar em todo o mundo e Portugal não é exceção. Entre tradições que se perdem e novas tendências que surgem, o panorama da cozinha portuguesa está em plena transformação
Um projeto gastronómico tinha de começar numa cozinha e José Dias contribuiu para esse início. Convidou-nos a entrar e começou a preparar a especialidade da casa, o Bacalhau à Braga. Procura os primeiros ingredientes enquanto explica que “todos os pratos da cozinha portuguesa traduzem no tempo uma longa história de vida". Os seus pratos são confecionados da mesma forma que eram há setenta anos. Sublinha a vontade pessoal em que os clientes "usufruam dos sabores e os palatos do prato para terem a curiosidade e o bom senso de perceber a história do prato”.
José explica com orgulho o início desta aventura que nasceu de uma iniciativa da sua sogra, Joaquina Soares Gomes. "Estamos a comemorar setenta e um anos de vida. Na altura, a senhora não fez mais para abrir este negócio do que muitos jovens precisam para tirar a carta".
"Setenta anos é um tempo que perdura no tempo", frisa José Dias enquanto coloca os primeiros ingredientes em cima da banca. O restaurante foi fundado a 1 de Janeiro de 1953, “ainda se trabalhava nesse dia". Ao longo dos anos, o restaurante manteve-se, mas os seus vizinhos mudaram.
“Tudo é importante”, enfatiza José Dias ao refletir sobre as mudanças no centro de Braga. "Todas as mudanças no centro histórico são importantes. Acrescem valor àquilo que é a movimentação do consumidor e do turismo em geral, isto é, de todos aqueles que convivem e nos visitam”.
“Hoje em dia não há concorrência, precisamos uns dos outros”
Para o gastrónomo, a colaboração e o espírito de comunidade são vitais para a continuidade do centro histórico. “Esta casa é uma pessoa que não tem concorrentes, quanto muito tem parceiros e amigos". Não existem concorrentes, porque "desiludam-se aqueles que querem fazer um bairro sozinhos”.
O influxo de estudantes com a presença de diversos polos universitários, que "trazem gente de fora”, e os turistas aumentam o consumo local. A vinda destas pessoas acrescentam “valor a esta cidade”, sendo que “as movimentações do centro histórico aproximam-se daquilo que é a modernidade do consumo”, destaca.
Defensor desta evolução “necessária” no centro histórico, preserva a existência de espaços como o seu. "Os diferentes players de consumo encontram-se, perfeitamente, neste casco velho. Ainda bem que existem”. Entre os meses de outubro e dezembro de 2022, fecharam, em média, 14 restaurantes por dia, de acordo com os dados mais recentes da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP).
O fechar de portas dos restaurantes portugueses e a não-substituição dos mesmos são o único lamento do cozinheiro em relação ao atual estado da cozinha tradicional portuguesa. “Se eu perguntar a uma pessoa na rua sobre um restaurante de comida local que tenha aberto nos últimos tempos, as pessoas irão pensar um bom bocado de tempo e não se vão lembrar".
Continuava à procura dos ingredientes que compõe um dos pratos mais vendidos da casa a par do Cabrito no Forno e o Polvo Assado. A fama destes pratos resume-se ao "respeito pela tradicionalidade e os valores gastronómicos da região". Há trinta anos, o restaurante era frequentado pelo “burgo, entenda-se como burgo zona ou da região” que definia, em primeiro lugar, o que iam comer e apenas depois o local.
José revela que a sua primeira “missão” foi contrariar esta tendência. “Transformar o desígnio da casa num desígnio universal, isto é, deixar de ser uma casa famosa abastada e de contento de alguns para ser uma casa de contento para todos”. A mudança surgiu da aposta de comunicação e divulgação, "em que se desenvolveu uma série de projetos, desde o marketing à comunicação diversa”.
“Quem faz uma casa são os clientes”
A comunicação entre os restaurantes e os clientes alterou-se nos últimos anos com o crescimento da internet que, para José, torna mais fácil, mas, “na maioria das vezes, errática”. Num tom assertivo, justifica esta sua visão, afirmando que “na altura, dizia- se ‘eu gostei, eu isto, eu aquilo’. Hoje, as pessoas contemporizam as coisas de uma forma muito simplória”.
Plataformas como o “TripAdvisor ou o google” abrangem um leque de utilizadores que “não sabem o que escrevem nem o que dizem”. O dono do restaurante menciona que “as pessoas saberem aquilo que dizem”, sendo que “antigamente, as pessoas sabiam o que diziam. Hoje, comenta-se, critica-se, muitas vezes, sem o saberem.
As portas abertas do restaurantes devem-se a outro fator que se sobrepõem aos restantes. “Não é a crítica online que vai afetar o meu negócio. Os meus familiares diziam-me que a sustentabilidade de uma casa comercial na área da gastronomia, sobrevive com aquilo que é transmissível, o boca a boca”.
No meio dos ingredientes, José pega no óleo e coloca na frigideira para começar a fritar o bacalhau. Um dos peixes mais utilizados na comida portuguesa e José revela que o prato mais conhecido da sua casa é o bacalhau Racheado. Procede a disser “ra” em vez de “re, é Bacalhau Racheado”. O prato mudou de nome para “Bacalhau Narciso e nós demos um toque pessoal que decidimos chamar de Bacalhau a Bem me Quer, e, hoje, Bacalhau à Braga”.
Com o bacalhau já dourado, partilha connosco a sua ideia que os chefes portugueses tem de perceber como respeitar e “fazer respeitar” os elementos na cozinha. “Entender quais são os seus elementos, os seus produtos, as tradicionalidades, as regionalidades e aquilo que a dieta mediterrânica e a dieta atlântica nos impõe enquanto cozinha portuguesa”.
Para José, a autenticidade é crucial. "Quando se passa a inventar o que não se sabe, entramos em prejuízo e isso é uma derrota, porque tudo mais é um acrescento de valor". Enquanto que prepara os restantes elementos do prato, José refere que a sua presença na cozinha passa por “produzir sabores e partilhar saberes, no fundo, acrescentarmos mais uma palavra, um dizer, um conto sobre aquilo que é a gastronomia tradicional”.
O forno apita e o chef apressa-se para retirar a comida do forno e começar o empratamento. Este processo é “fulcral”, mas o problema é “quem quer revolucionar a cozinha” e não o faz de forma progressiva e cuidadosa. “Há trinta anos, via empratamentos muito amorfos, básicos e sem vida. Uma das coisas que fiz sem adulterar a receita, foi mudar um bocadinho para dar uma outra graça.
"A vista também come”
Com um sorriso no rosto, finaliza os últimos preparativos do prato e destaca que o restaurante manteve a essência da cozinha tradicional portuguesa ao longo da sua história. “Nós soubemos e temos sabido aguentar e sobreviver perante todas as situações com a permanência de um receituário próprio que nós transpomos e pomos nos pratos para qualquer consensal poder apreciar”.
Mas afinal o que é a gastronomia? Maria José Araújo explica que “a gastronomia é uma palavra que é a composição de duas. Uma que é o estômago e a outra que é nomos, do grego, relativo às normas e as regras”
Pós-graduada em “Alimentação: fontes, culturas e sociedades” e doutorada em “Patrimónios alimentares: culturas e identidades”, a especialista gastronómica compara a sua área de estudo ao futebol, porque “todos falam, mas ninguém percebe nada do assunto”.
É uma área de estudo com muitas particularidades que tem estado em constante mudança devido ao fenómeno da globalização, mas, para Maria José Araújo, a gastronomia ainda não é o principal fator de atração turística, “É um ativo qualificador, não é diferenciador, mas é algo que as pessoas apreciam como produto turístico. Há reconhecimento da existência de uma história por trás da gastronomia”.
Não vê um perigo na globalização, mas sim uma potencialidade para desenvolver a cozinha tradicional e marcar a diferença. “Nós vivemos num mundo de globalização alimentar e, apesar das pessoas usufruirem da mesma, têm cada vez mais necessidade de encontrar aquilo que é diferente que se encontra a um nível mais pequeno, não no global”.
Cada vez atraímos mais pessoas de fora através de fatores diferenciadores que tornam isto possível como o regionalismo ligado aos pratos, mas é importante perceber o que acrescenta este valor gastronómico. “Os turistas valorizam o aspeto, não o aspeto material, mas sim o aspeto imaterial. É a hospitalidade, o sabor, o gosto da nossa comida e a abundância também”.
A resistência da tradição
Se há alguém que está a fazer de tudo para o fim dos tascos não chegar, é o Grupo dos Amigos das Adegas e Tascos do Porto. Foi criado há doze anos no Facebook e já conta com quase dezassete mil membros, mas como é que surgiu?
A ideia foi de Raul Simões Pinto e o objetivo inicial era muito simples, formar uma comunidade de apoiantes dos tascos. O grupo é aberto a toda a gente, mas quem participa nos jantares são os "aderentes", que pagam cinco euros para adquirir este estatuto. Para além disso, há membros que são homenageados pela sua participação ativa na cidade do Porto e na comunidade ligada aos tascos.
Apesar de já ter alguns anos de vida, o grupo não conseguiu evitar aquilo que já se previa, uma queda abrupta do número de tascos na cidade. Raul já escreveu três livros sobre as tabernas e construiu um roteiro de tascos na cidade do Porto, mas recentemente lançou uma versão atualizada do livro “Novo Roteiro dos Tascos do Porto e Arredores”.
Isto acontece porque, na cidade do Porto, são poucos os estabelecimentos que se mantêm abertos. Raul obteve estas informações na pesquisa para o seu novo livro. “Cheguei à conclusão que, em 8 anos, mais de 20 tasquitos tinham fechado. E, portanto, fui para os arredores como Gaia, Maia, Gondomar ou Matosinhos para conseguir apanhar cinquenta tascos e adegas”.
Nas últimas décadas, a queda no número de tasco tem sido abrupta. Estima-se que, há cem anos, existiam mais de mil e duzentos tascos no Porto, enquanto que, hoje, existem apenas trinta na cidade. "Foi uma coisa catastrófica, a renovação do centro histórico veio acabar com muitas das tradições”, enfatiza Raúl.
As alterações da cidade trazem com elas mudanças nos costumes alimentares que não são bem recebidas por todos. Raul é um desses exemplos com uma postura muito crítica em relação às novas cadeias alimentares, mais concretamente o fast food. “Esse tipo de alimentação diferente, o que eu chamo de alimentação de plástico. A comida já está feita e a qualidade, às vezes, é altamente deficitária".
A mudança faz parte da sociedade e há a constante necessidade de inovar, mas as grandes cidades sofreram mudanças radicais e as rendas que são exigidas tornam impossível a sobrevivência de certos estabelecimentos. Os tascos estão dentro deste problema e isso também explica a sua mudança para a periferia.
Se este aumento não tiver um travão, vai acontecer o mesmo nas redondezas e vão ser ainda mais as adegas a fechar portas. “Há uma renda de trezentos ou quinhentos euros. Depois, num novo contrato, sobe para cinco mil e o homem a vender sandes de presunto ou de queijo não consegue pagar isso.”
Restam três palavras para definir a cidade na opinião do escritor, que ama e luta diariamente para que evolua sem esquecer o seu lado cultural e tradicional. “Hostels, low cost e gourmet”, são as três expressões que melhor descrevem a nova faceta da cidade invicta para o atual presidente deste grupo.
Esta é, sem dúvida, uma visão mais conservadora, mas nem todos os membros do grupo dos amigos das adegas e tascos do Porto têm esta visão dos acontecimentos recentes. Hélder Pacheco esteve ao lado de Raul Simões Pintona na criação desta comunidade, mas vê com bons olhos esta nova fase da cidade.
O professor de história social e cultural do Porto é um dos cidadãos que mais sabe e conhece a cidade. Investigou as culturas populares e escreveu diversas obras. Da teoria à prática, teve sempre um papel ativo e isso aplica-se à gastronomia ou aos “comeres” como gosta de lhe chamar.
Em relação às novas vertentes alimentares existentes na cidade, Hélder vê com bons olhos e não só, também adere aos mesmos. Aos 87 anos tem por hábito pedir fast food, “como muitas vezes hambúrgueres do McDonalds”. Este novo costume é um reflexo da sua opinião sobre o assunto. “Sou a favor do turismo, porque é essencial neste momento. Ainda há muitas casas de grande qualidade, onde se come à moda do Porto como antigamente, por isso, não está a afetar muito as ementas tradicionais da cidade".
A forma como falou do grupo das tascas foi emocional, como se soubesse que o fim está próximo. No entanto, uma possível extinção destes espaços será vista pelo próprio como uma evolução positiva da sociedade e nunca o contrário. A comunidade faz os possíveis, mas não há dúvidas que “dentro de pouco tempo, não haverá tascos".
As mudanças na sociedade afetaram a manutenção das Tascas. "Tiveram dificuldade em adaptar-se a uma sociedade em mudança. Eram gente pobre, analfabeta. Além do mais, as comunidades que eles serviam também desapareceram. Os tascos eram lugares de homens. Com a sociedade de hoje, isso não funciona”.
A sabedoria que o professor e autor demonstrava ter era em parte explicada pelo seu escritório. Rodeado de livros, prémios, diplomas e um computador, onde complementa as suas pesquisas. Percebe-se o carinho que sente pela cidade e pelo F.C. Porto que vai viver sempre com ele, "independentemente do que aconteça".
Em relação aos “comeres” , deu a sua visão sobre uma particularidade que distingue a cidade invicta das demais. “É uma cidade muito arrozeira. Nós, no Porto, comemos arroz com quase tudo. Se me servirem feijoada, eu peço logo arroz. Se me servirem cozido à portuguesa, eu peço arroz. Se me servirem carne assada, eu peço arroz.”
Hélder Pacheco foi, recentemente, homenageado pelo seu grupo e, assim como outros membros, aconteceu já numa fase muito avançada da sua vida. É a retificação que deixa para o futuro do grupo, começar desde cedo a dar valor aos membros que mais contribuem e que essa escolha nunca seja feita com base em classes sociais. “Tenho pena que, do povão, não seja ninguém homenageado”.
O Porto está a passar pelos problemas relacionados com o turismo, mas o outro lado da moeda também pesa. “653 milhões é o volume de negócios do setor do turismo. Quer dizer que é, atualmente, a maior fonte de rendimento económico da cidade”. Este fator torna a atividade turística indispensável para o desenvolvimento da cidade e os restaurantes também beneficiam com este fluxo.
Independentemente do que aconteça com a região, o grupo dos amigos das adegas e tascos vai manter sempre o mesmo objetivo de dar vida a estes estabelecimentos. Independentemente da opinião de cada um e da sua visão do futuro, uma boa conversa acompanhada por um bom petisco vai estar sempre na ordem do dia. Um grupo de amigos que já conquistou quase dezassete mil pessoas mostra que o tradicional ainda tem força e que, apesar dos indicadores serem negativos, ainda é possível reviver os tascos e adegas.
O Lanchinho da Vitória é um dos estabelecimentos que ainda sobrevive nos dias de hoje. É aquele clássico tasco de entrar e ver os bolinhos de bacalhau e os rissóis pela vitrine e ir para a mesa já a pensar no que pedir.
Fernando Carneiro é o atual gerente. Assumiu o comando em 1998 e transformou ligeiramente o espaço, mas ainda assim mantém-se fiel ao que é ser um tasco. A mudança de paradigma na cidade é exatamente a mudança que é descrita pelo responsável.
Segundo o próprio, a maior parte dos turistas não faz ideia de quais são os pratos tradicionais portugueses, apenas uma pequena parte conhece a francesinha. E este prato já perdeu a essência na visão de Fernando, “é como diz o Nuno Ribeiro: ´a francesinha já não tem picante´, agora é doce".
Lembra com saudade outros tempos em que a francesinha era diferente. "No meu tempo, comia-se uma francesinha daquelas e tinha de se beber 4 ou 5 copos de cerveja e, mesmo assim, saía de lá como quando saía do dentista. Agora, há francesinhas em todo o lado, passou a ser uma coisa normal”.
Também deixou o apelo para que se respeite a tradicionalidade dos pratos. “Antigamente, a francesinha era pão de forma, queijo, fiambre, bife, salsicha linguiça e molho. Quanto mais simples, melhor. Agora há de bacalhau, marisco, frango”.
Talvez seja por estarem tão presos aos costumes passados, tal como disse Hélder Pacheco, que os tascos vão desaparecendo. É necessário evoluir em conjunto com a sociedade e acompanhar as novas tendências mantendo, obviamente, a essência do tasco. Acima de tudo, é uma questão de mentalidade, de aceitar novas versões dos pratos e de perceber que a sociedade valoriza outro tipo de coisas.
Rampa de Lançamento
Nem só de tascos se faz a tradição. Há outros restaurantes que conservam a cultura da cozinha portuguesa, mesmo que sejam menos acessíveis economicamente. O Restaurante Tia Xica é um desses casos. É um espaço recente localizado em Pevidém e, apesar de ser um restaurante gourmet, procura ser fiel ao tradicionalismo. Para isso, conta com a contribuição da chef Fernanda Magalhães. A finalista do Masterchef Portugal abraçou este projeto com a ambição de tornar o Tia Xica num dos maiores restaurantes do norte do país.
O programa foi impulsionador daquilo que já era o maior gosto da chef, a culinária. “O Masterchef para mim foi o top dos Tops. Fiz lá várias formações e aprendi a lidar com as câmaras que eu gosto muito. Entendemo-nos muito bem”.
Apesar de ser um programa de entretenimento, é muito útil e são inúmeros os chefs que aproveitam o programa para lançar uma carreira na área. É um impulsionador, mas por si só não é suficiente, é preciso a paixão. “Sou apaixonada. Em casa, só me sinto bem na cozinha, mesmo nas folgas”.
O pós-Masterchef também foi fundamental na sua carreira, porque teve direito a uma formação extra. “Escolhi a formação de fazer sobremesas, porque era o meu calcanhar de Aquiles”. Ou seja, entrou no programa com muito gosto naquilo que fazia e transformou-o em enormes competências que hoje lhe permitem estar no Tia Xica.
Quando se fala com chefs de cozinha, há um tema que parece inevitável, o guia Michelin. Portugal teve um aumento substancial no reconhecimento atrbuído ao longo da última década, especialmente no número de Estrelas Michelin.
Para uns pouco importa, para outros torna-se um objetivo. Fernanda fala do tema com ânimo e numa mentalidade bastante clara que tudo se consegue com trabalho. “É uma ambição, porque revejo-me nesse tipo de prémios, mas se nós não trabalharmos, não conseguimos nada. Temos de ter fé e brio no que estamos a fazer e tudo isso chega aos ouvidos do lado de lá".
No panorama internacional, Portugal ainda têm um longo caminho a percorrer para se aproximar das maiores potências deste ramo. França encontra-se no primeiro lugar com 639 estrelas, enquanto que o Japão e Itália completam o pódio com 388 e 386, respetivamente. Números bastante distantes das 39 estrelas que existem em Portugal.
Os seus pratos de eleição são os mais típicos do país, do cozido à portuguesa ao bacalhau, a chef procura trazer os sabores que a própria aprecia aos seus clientes. "Temos de gostar muito do que fazemos, e mostrar isso a quem nos visita. Temos de mostrar em cada prato”.
Não teme que a globalização afete este tipo de confeções, porque tem três exemplos em casa de que é possível haver uma convivência entre as novas formas de comer e a comida portuguesa. “Tenho três filhos. O meu filho mais novo adora ir ao McDonald's, mas valoriza a comida tradicional portuguesa e tenho fé que os outros jovens pensem um bocadinho como ele".
A predominância dos restaurantes de fast food não afeta o pensamento da chef em relação às escolhas dos mais jovens. "Isso é uma passagem de jovens, porque eles, chegando a uma idade, começam a valorizar outras coisas, por exemplo, deixam de beber Coca-Cola e escolhem antes um copinho de vinho”.
A qualidade dos pratos também não assusta Fernanda, porque “atualmente, temos muitos jovens cozinheiros que estão a seguir esse caminho. Estão a ir com técnicas diferentes, mas sempre com base na nossa tradição da nossa gastronomia”. Há visões bastantes distintas de pessoa para pessoa. Há quem valorize mais os problemas e quem procure mais as soluções. Fernanda vai de acordo com a segunda mentalidade.
O Masterchef Portugal dá azo a um leque de oportunidades dentro do mundo da culinária. Na era do digital, cada vez mais pessoas que aprendem a cozinhar sem sair do sofá ao invés de procurarem um livro de receitas e descobrir como fazê-las. As redes sociais, nomeadamente o TikTok, vieram trazer esta possibilidade de ensinar a cozinhar em formato vídeo. Esta forma traz com ela números superiores a outros formatos como, por exemplo, os programas de televisão.
Impulsionado pela presença no Masterchef Portugal, Rui Tomás decidiu seguir o mundo digital, onde procura ensinar ao seu público todo o tipo de receitas, onde já conta com mais de 24 mil seguidores. No entanto, o que mais se sobressai é o alcance que consegue.
No mesmo segmento, surge uma chef mais jovem, Rita Camoesas. Também participou no Masterchef Portugal e considera que “foi uma grande forma de ganhar visibilidade”. Traduzido em números, essa visibilidade, nos dias de hoje, corresponde a 60 mil seguidores do seu perfil no TikTok.
O papel dos influencers não é só de mostrar os seus dotes e cria-se uma relação de proximidade com o público, tal e qual como a televisão. Inês Cunha diferencia-se na forma como entrou neste mundo. Foram as suas receitas simplistas que ajudaram-na a ganhar notoriedade no meio digital. Funciona como uma guia para reaproveitar sobras, ajudando assim estudantes universitários a melhorar na cozinha. São mais de 190 mil pessoas que a acompanham e seguem as suas receitas.
Todos estes números e formas de inovar no mundo gastronómico trazem uma nova forma de ver a cozinha. "Cria mais proximidade entre nós [cozinheiros] e as pessoas" como diz Rita Camoesas, tal como oferece mais possibilidades aos jovens chefs e, acima de tudo, torna tudo muito mais acessível. Em dois ou três cliques, pode aprender-se a fazer qualquer tipo de receitas e, por ser conteúdo audiovisual, é possível ver todos os passos e recriar a qualquer momento.
A harmonia da comida com a natureza
Numa pequena freguesia de Vila Nova de Famalicão, encontramos o estabelecimento de alojamento local, a casa Ana Monteiro. À entrada, estava o chef e dono do restaurante “Ferrugem”, Renato Cunha. O dia é especial, porque reuniu a família e os amigos na casa para cultivarem os produtos nos meses que se avizinham.
A escolha de Palmela como localização do restaurante deve-se à vontade pessoal de trazer um projeto diferenciador para o meio rural. “Poderia acontecer noutro espaço. Para mim, a condição era que fosse no espaço rural, porque queria que o restaurante fosse de cozinha contemporânea, mas que trabalhasse aquilo que é o nosso santuário, a matriz popular, embora com uma abordagem muito mais contemporânea”.
A cozinha tradicional é muito diversificada e deve-se ao facto de Portugal ter “montanha, floresta, campo, mar, o oceano atlântico, o mar mediterrânico com características muito próprias e diferentes, por isso, nós temos uma diversidade muito grande”. Renato revela ainda que, na sua opinião, a cozinha tradicional portuguesa é a terceira melhor cozinha do mundo, atrás da cozinha japonesa e italiana.
Apresenta os familiares que trabalham, exaustivamente, na horta da casa. Este lugar é simbólico, representando o “lado pedagógico”, tanto para “a minha equipa como para quem vem aos eventos”. Revela ainda que a “aprendizagem e patologia é muito importante para o trabalho que nós fazemos”.
Com um calor de primavera, plantam feijocas e batatas na horta que não torna o “restaurante autossuficiente, longe disso obviamente”. Renato revela que esta pequena ajuda de produtos do campo ajuda o restaurante em ter uma variedade de hortícolas muito específicos. “Obviamente queremos que a horta nos forneça alimento pra podermos usar nos eventos e no ferrugem na sua atividade regular”.
A horta ajuda a contrariar os problemas de logística dos alimentos para produzir os pratos no restaurante. O chef dá o exemplo da pescada e que precisa de deslocar-se cinquenta quilómetros para ir a Angeiras onde se situa a lota onde compra e “isto é custo-oportunidade”.
No meio da natureza, revela ainda as suas dificuldades com produtos provenientes das transportadoras. “Faço às vezes, encomendas, produtos muito específicos, que vêm por transportadoras e o que acontece é que em vez de receber no dia seguinte, conforme é suposto, só recebemos às vezes ao final de uma semana porque não há circuitos para esta zona, ou seja, a localização tem os seus constrangimentos”, revela o chef.
Estas dificuldades não impediram o restaurante de se tornar uma referência gastronómica a nível regional e nacional. “O município de Famalicão é uma região empreendedora europeia, que é uma distinção da União Europeia. Muita coisa que tem acontecido em termos de reconhecimento pelo trabalho que se faz hoje, meu e de toda a equipa”.
As distinções são uma parte consequencialista na visão do chef Renato. “Os prémios que sejam sempre uma consequência do nosso bom trabalho e não um fim. Nós não trabalhamos pro prémio, nós trabalhamos para os nossos clientes. Obviamente que todos os prémios que estão atribuídos são pra nós motivo de muita satisfação e são uma espécie de calorias para toda a equipa”.
Com uma postura firme, nega o interesse pessoal por uma estrela Michelin, mas “uma estrela é uma vantagem para qualquer restaurante, porque há pessoas que fazem o circuito das estrelas, por isso, não podemos desprezar a importância que uma estrela tem”. Afirma que o restaurante não está formatado nem se preocupa com uma estrela.
O Ferrugem surgiu há dezoito anos por causa de “duas vocações, uma gostar muito de cozinhar, e outra gostar muito de receber”. O chef define o seu restaurante em três componentes que são “o espaço, o serviço e a gastronomia”.
O turismo rural já faz parte da sua estratégia para atrair os turistas para o seu restaurante. “Nós já temos a casa Ana Monteiro, que já tem oito ou nove anos. E vamos ainda reforçar com mais duas suítes na casa principal da propriedade antiga para alojamento local junto mesmo ao ferrugem”.
Este setor turístico está em crescimento no norte de Portugal com um aumento de 34% no número de estabelecimentos entre 2020 e 2022. O número de capacidade de alojamento em turismo rural que aumento de 6862 em 2018 para 9033 camas em 2022.
Para o especialista gastronómico, Ricardo Goja, há um longo caminho a percorrer neste ramo. “É um país pequeno, mas tem muita riqueza e é reconhecido internacionalmente. No entanto, é preciso trabalhar mais esse segmento e criar uma marca gastronómica”.
Essa marca pode ser criada através do "regionalismo subjacente aos nossos pratos" ou por outra especificidade que seja capaz de distinguir a nossa gastronomia e tornar os pratos mais conhecidos internacionalmente.
Segundo Ricardo, o aspeto que mais tem contribuído para este crescimento é a hospitalidade característica do povo português. “Os portugueses recebem muito bem e a nível de culinária é dos melhores países, não podemos dizer o melhor, mas come-se bem e há uma ótima relação qualidade/preço".
O "tempo que perdura no tempo" afeta as vidas dos restaurantes e faz com que necessitem de se revitalizar para manter os seus clientes. "Muitas vezes, temos projetos incríveis que surgem e depois, ao fim de pouco tempo, começam a ter alguma prostituição económica, porque só têm um objetivo económico e deixam de acreditar naquilo que são os verdadeiros valores da gastronomia”.